Na verdade, nem tudo. No espaço de dois meses, três assaltos registados a turistas lançaram o dessossego no pacato município. Má iluminação e o elemento surpresa - num sítio onde o fenómeno da delinquência é quase inexistente - parecem ter feito os ladrões de ocasião. A Polícia garante que já accionou medidas para pôr cobro à “pontual” situação, mas há quem ainda não esteja tranquilo. Numa coisa todos concordam, este tipo de incidentes tem de ser erradicado do “Património Mundial da Humanidade”, que se quer afirmar como destino turístico de excelência.
Quem chega à Cidade Velha sente-se seguro. Galinhas e crianças à solta por meio de ruínas históricas e outros monumentos que melhor resistiram ao tempo. O cumprimento afável de cada pessoa que passa. A roupa a esvoaçar nos estendais e a porta aberta, com o à-vontade de quem sabe morar num sítio de paz. Guerras, que as houve, perderam-se nos séculos e as de hoje estabelecem-se em outras paragens.
A escassos minutos da Praia, parece que os fenómenos da pequena criminalidade não chegaram à Cidade Berço. Assim, quando algum crime acontece, e, ainda por cima, acontece mais do que uma vez, a notícia cai com uma dimensão à escala: um assalto é demais, três são intoleráveis.
Entre Dezembro e Janeiro houve três assaltos, a turistas, que vieram manchar as estatísticas e o bem-receber que aqui se quer promover junto com o título de “Património Mundial da Humanidade”.
As três histórias são iguais. Os turistas, sempre um casal, saem do Hotel Limeira ao final da tarde para irem jantar ao centro histórico. Por falta de transporte, mas também porque o turista que visita a Cidade Velha por norma gosta de andar a pé e de mochila às costas, lá seguem pela estrada.
Chegados ao Centro, jantam e apreciam as actividades culturais com que muitas vezes os operadores hoteleiros os brindam.
E como na Cidade Velha a noite acaba cedo, a partir das 21h muitos já regressam ao hotel, de novo a pé, embora alguns restaurantes, como o Tereru di Kultura, ofereçam transporte a partir de uma certa hora.
Fazem-no por gentileza, mais do que por uma questão de segurança, salienta o responsável deste estabelecimento, Francisco Duarte.
No caso dos três casais, meteram-se à estrada que liga o centro ao Hotel Limeira. A via é deserta e muito escura. Na curva perto da “Fármacia”, nome que muitos dão ao Posto de Saúde, àquela hora não se vê quase nada. Há uma estrutura de poste sem lâmpada, e vestígios de um outro, serrado, que agora mais não é do que um toco sem serventia.
É aí, perto da curva, metro acima ou metro abaixo, que são assaltados. Falam em dois homem, altos e escuros – mas num dos casos é apenas referido um assaltante. Alguém comentou também que havia uma arma branca, mas o que parece mais consensual é que são essencialmente assaltos de esticão. Empurra – puxa - foge, muitas vezes magoando as vítimas. Levam os tablets, portáteis, telemóveis, máquinas fotográficas, dinheiro e até os documentos. Tudo. Apenas um passaporte foi encontrado, deitado fora numa berma.
Ainda em choque, as vítimas chegam ao hotel. Vêm assustadas, com vontade de partir o mais depressa possível. Chama-se a polícia, faz-se o auto. No avião seguinte, deixam a Cidade Velha, segundo dizem, para nunca mais voltar.
“Assim não dá para visitar a vossa terra”, comentam a quem cá fica.
National caçu bodi
Os três assaltos já referidos – dois em Dezembro e um em Janeiro, de acordo com a polícia - não foram os únicos. Antes ainda, há cerca de quatro meses, um outro hóspede do Hotel Limeira foi assaltado. Os danos são imensuráveis. Tratava-se um profissional do afamado National Geographic, que desde há três anos vinha filmar uma determinada espécie de aves, na zona da Cidade Velha, sempre na mesma altura.
Durante a sua estadia, todos os dias deslocava-se a um descampado, relativamente próximo da unidade hoteleira, onde passava horas as fio para apanhar a imagem certa.
Um dia, conforme contou a uma fonte do Limeira, viu aproximar-se dois rapazes que traziam uma cabra amarrada – algo estranho para quem pastoreia, mas que não lhe suscitou suspeitas. Vinham com outras intenções, que pouco tinham a ver com o bicho.
Assaltaram o estrangeiro, levaram o equipamento e todo o seu trabalho. Até o calçado roubaram, deixando-o descalço.
“Foi embora no mesmo dia”, conta a fonte do Hotel. Os funcionários do Limeira ainda tentaram, perguntando, num boca-a-boca que por vezes funciona em sítios pequenos, encontrar os materiais roubados. Nada conseguiram.
Aliás, que saibam em nenhum caso houve objectos recuperados. A polícia também não sabe, uma vez que, por falta de meios investigativos, os casos são entregues à Polícia Judiciária e, até à data, não houve feedback.
Resposta da polícia
“Este é um concelho muito seguro e quando há assaltos as pessoas ficam perplexas, pois não é habitual”, explica o comandante da Esquadra de Ribeira Grande, Luís Santos.
Assim, embora reconheça que os roubos que têm vindo a acontecer na zona sejam preocupantes – “o objectivo é zero roubos” – Luís Santos reclama que isso não justifica declarações de que são recorrentes.
Para combater o recente fenómeno, a polícia inclusive já accionou um plano, de proximidade, que será para manter no tempo, e que consiste em patrulhar a zona a partir das 19h, disponibilizando agentes para acompanhar turistas aos hotéis.
“Desde que adoptámos este sistema, não houve mais ocorrências”, garante Luís Santos.
Além do patrulhamento, o comandante solicitou ao hotel que comunicasse à Polícia, quando os turistas saem para passear, “precisamente para poder ‘estar em cima’”.
Fontes do hotel Limeira confirmam a orientação para esse telefonema, principalmente quando a saída é à noite. Algumas não se mostram muito convencidas de que a medida funcione na totalidade. Isto porque, dizem, por vezes os telefonemas não são atendidos ou a viatura não está disponível. (E falta saber como este sistema poderá funcionar se o número de turistas se elevar a números consideráveis). Outras discordam e consideram que, agora que há polícia – frequentemente à civil - no terreno, a situação irá melhorar.
As medidas ora tomadas, assevera o Comandante, são para continuar, “mesmo que não haja mais assaltos”.
“Queremos zero assaltos, mas com o roubo de Janeiro, essa meta já não vai ser possível”, diz, reforçando que não irão dar tréguas aos larápios.
As questões por trás dos roubos
“Este assunto pode ser resolvido de duas formas: ou pela via coerciva, ou então uma tentativa de inserção dessas pessoas [no mercado laboral]. São pessoas que estão em situação de desemprego e podiam ser desenvolvidos programas no sentido de dar emprego a essas pessoas”, aponta Manuel de Pina.
Para o edil de Ribeira Grande, eliminar esta delinquência ultrapassa, pois, as competências da Câmara uma vez que as áreas em causa são da responsabilidade do governo.
“Nós podemos dar a nossa contribuição desenvolvendo programas”, salvaguarda, mantendo no entanto a responsabilidade primeira do executivo nestas matérias.
Insistindo na questão do emprego, e sobre o que é que a autarquia tem em curso no sentido de ajudar a colmatar esta problemática, Manuel de Pina salienta que, directamente, pouco há a fazer uma vez que a Câmara “não pode contratar mais pessoas”.
“O que nós podemos desenvolver são programas de promoção ao emprego, criar unidades de produção, fomentar actividades ligadas ao artesanato, em que as pessoas podem tirar um rendimento, criar mais espaços comerciais, para bares, restaurantes, na área da gastronomia. Ou seja, nós promovemos as acções e criamos as condições para produzir mais emprego, desde a área de hotelaria e outras áreas”.
Tem sido feito, mas, reconhece, não resolve o problema dos delinquentes. Isto porque, quando uma empresa se instala no município vai recorrer à mão de obra mais qualificada. “Para essas pessoas é necessário um programa mais específico, direccionado”, esclarece.
Um outro motivo referido como potenciador de situações de delinquência deste género é a falta de iluminação pública. Polícia, Câmara e Hotel são consensuais em apontar a escuridão como um maiores aliado dos “amigos do alheio” e reclamam de melhor iluminação.
“Em matéria de iluminação estamos muito mal. Mesmo no centro histórico da cidade velha a iluminação é precária. No trajecto do centro histórico às unidades hoteleiras a Iluminação Pública é praticamente inexistente. É uma coisa que estamos a tentar discutir, é uma outra área que também não está sob alçada dos municípios”, mas sim de uma empresa responsável [a Electra], observa Manuel de Pina.
Também Polícia Nacional aponta a falta de iluminação como um problema de segurança.
A zona que liga o centro aos hotéis Limeira e Pôr-do-sol é muito escura e “quando há falta de iluminação, há mais facilidade dos carteiristas actuarem”, destaca o chefe de Esquadra, Luís Santos.
Cidade Calma
Apesar dos recentes crimes, Ribeira Grande é um local por norma calmo, salientam todos os entrevistados. Praticamente, não se conhecem assaltos a estabelecimentos ou casas particulares e os roubos são algo pontual.
Desde Abril passado que Francisco Duarte se desloca todos os dias para a Cidade Velha onde gere o seu espaço, Tereru di Kultura.
O fenómeno dos “thugs”, “ainda não chegou à Cidade Velha” e o caçu bodi “é muito residual, quase inexistente”, considera.
“Para dar uma ideia: deixamos tudo na rua, desde as cadeiras, os aparadores, (etc) e nunca tivemos nenhum problema.”
Duarte, que não diz não ter conhecimento dos recentes assaltos, salvaguarda que embora “nunca se possa dizer numa comunidade que a segurança é a 100%”, toda a vivência na Cidade Velha – como as roupas a secar na rua – mostra que a pequena delinquência não é uma questão generalizada.
Opinião semelhante tem o presidente da Câmara da Ribeira Grande (Cidade Velha) para quem os assaltos, sobre os quais já tomou conhecimento, são uma situação pontual, controlável e de fácil desmontagem.
Salientando que este é um município com índices de criminalidade muito baixos, dos menores do país, considera que é imperativo resolver este problema recente.
“O nosso município é pacato. De vez em quando surgem algumas coisas que precisam de ser atacadas [rapidamente] para promovermos o turismo como é desejado. Não podemos ter situações que atrapalhem” essa promoção do sítio histórico.
Manuel de Pina avança ainda que os assaltantes foram já identificados e são habitantes da Cidade Velha, apesar de reconhecer que, por questões que ultrapassam a autarquia, ainda estão à solta.
“Também tem havido alguns assaltos a residências, e as pessoas foram todas identificadas, mas continuam soltas”, aponta ainda.
O comandante da esquadra de Ribeira Grande, por seu lado, refuta: “não, não sabemos quem são os criminosos. Há suspeitas e essas pessoas estão a ser investigadas, mas a polícia não sabe quem cometeu o roubo”.
Turismo
A 26 de Junho de 2009, a Cidade Velha era classificada pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade. A distinção atraiu turistas - 70 mil em 2013 – mas ainda há muito a trabalhar em torno do potencial económico que o turismo pode trazer para o local.
Da parte, tanto da Câmara, como dos operadores turísticos e hoteleiros, há o receio de que estas situações manchem a imagem da Cidade Velha.
“Ainda estamos numa fase de desenvolvimento turístico, e não podemos afugentar os que estão a aparecer. Daí que esta é uma situação que tem de ser resolvida o quanto antes como forma de não matar a galinha [dos ovos de ouro]”, indica o autarca Manuel de Pina.
De acordo com uma fonte do Hotel Limeira, o turista que visita a Cidade Velha é na sua maioria francês, mas os visitantes alemães também são frequentes. São turistas adeptos de trekking, que “gostam de subir montanhas e andar a pé”. Colocam “tudo na mochila” e saem para apreciar a História e a paisagem únicas do concelho.
Mesmo à noite gostam de sair a pé, e fazem-no pensando que neste cantinho de Cabo Verde “todos são amigos, todos estão felizes por os receber, tudo é morabeza”. Quando são assaltados, partem desiludidos. Chegam aos seus países e pode-se imaginar a publicidade que fazem.
Conforme uma agência contou à referida fonte do Limeira, não é só na Cidade Velha que se começa a ver este fenómeno contra turistas, há registo de assaltos até na pacata ilha do Maio.
Quem perde é Cabo Verde, terra da Morabeza.