Além disso, a tradição do fanado, da MGF, assenta em várias crenças enraizadas.
Pensa-se que uma mulher circuncisa é mais pura, tem mais facilidade de engravidar e em ter o bebé.
A MGF, acredita-se, desencoraja as temidas traições e a promiscuidade sexual, uma vez que a mulher não tem prazer. Acredita-se ainda que a remoção do clítoris e os lábios vaginais eleva a feminilidade da rapariga, sendo sinónimo da docilidade e obediência feminina.
A limpeza e higiene são outras “justificações”. De facto, em certas sociedades, mulheres não mutiladas são consideradas sujas e não têm autorização de distribuir comida e água.
Muitos homens rejeitam as jovens que não são “cortadas” e assim, ser mutilada é condição prévia do casamento.
Ora isto levanta a questão do empoderamento da mulher. Em África, o casamento continua a ser a única alternativa para as mulheres, e estas não poderão opor-se a uma tradição que condiciona esse casamento, enquanto não conseguirem alguma independência económica do homem.
Esta prática cultural, ancestral e fortemente enraizada, é ainda erradamente conotada como uma prática religiosa, apesar de não constar em nenhum texto religioso.
Muitos “pensam que é uma prática religiosa, muçulmana, que deve continuar, mas não há registo disso no Alcorão. Não tem nada a ver com religião, é superstição”, explica Tony Parker Danso.
Face a tudo o que está por detrás da MGF, é preciso juntar às leis, campanhas e acções de sensibilização e educação, alternativas e empoderamento económico: um trabalho complexo, em rede – juntando vários actores – e, sem dúvida, a longo prazo.
O arquipélago contra a mutilação
A presidente da Associação Crianças Desfavorecidas (ACRIDES), Lourença Tavares participou em Novembro, em Nairobi (Quénia), no Fórum das Organizações da Sociedade Civil da África Subsariana. O tema do evento, que reúne organizações que trabalham com a temática das crianças, foi nesta edição, “A protecção das crianças contra as práticas negativas sociais e culturais: rumo a uma mudança social significativa”. A MGF foi uma das problemáticas abordadas e à chegada a Cabo Verde, a ACRIDES reuniu-se com vários parceiros sociais, nomeadamente a RA-AMAO e a Plataforma.
Juntos têm o desejo expresso de lutar contra a problemática. Alguns constrangimentos foram já apontados e foram esboçadas algumas acções e sugeridas outras, como a solicitação da partilha de experiências de organizações que já actuam sobre a temática em outros pontos de África.
Previsto para Março, por exemplo, está um fórum, com várias ONG e outras entidades presentes na reunião.
Uma vez que o 6 de Fevereiro foi instituído como o Dia Internacional da Tolerância Zero contra a Mutilação Genital Feminina, há também uma grande vontade, pelo menos da parte da RA-AMAO e da Plataforma com quem falámos, de marcar a efeméride com acções que chamem a atenção da sociedade cabo-verdiana contra a MGF.
Tony Parker Danso adianta ainda que a Plataforma irá desde já sensibilizar os associados de origem muçulmana, contra a prática.
“Tentar evitar ou parar, mas não vai ser fácil”, antevê o presidente.
A necessidade de estudos
Antes de qualquer acção contra a MGF é necessário perceber com o que é que se está a lidar. No entanto, é complicado obter informações sobre um assunto tão enraizado e do foro íntimo como a MGF junto das comunidades imigradas.
“As comunidades vivem muito fechadas, sobretudo quando têm que salvaguardar aquilo que lhes é profundo. Para eles é um acto de cultura”, afirma a Presidente da RA-AMAO CV, que trabalha junto a essas comunidades.
Na referida reunião da ACRIDES e ONG que trabalham à volta da criança, género e comunidades imigradas, foi sugerido que se criasse uma rede de esforços e fizesse um estudo socio-económico alargado sobre as comunidades imigradas.
“O próprio governo não sabe quantos imigrantes estão em Cabo Verde”, diz a presidente da RA-AMAO. E esse estudo é importante para que se possam estabelecer programas e projectos para enquadrar essas imigrações, acrescenta.
Ninguém sabe pois ao certo quantos imigrantes estão no país. Estima-se que da costa ocidental sejam entre 10 mil a 15 mil, mas não há dados concretos, o que dificulta todo o trabalho ligado à imigração.
“Quer queiramos quer não, hoje somos um país de imigração. Não podemos estar a fingir que essas pessoas não existem, que não estão cá, que não trabalham, que não fazem parte do desenvolvimento de Cabo Verde e que não vieram alterar o quotidiano do cabo-verdiano.”
Também Tony Parker Danso realça a importância do estudo, que deve ser efectuado não só por cabo-verdianos, mas também envolvendo os imigrantes do continente e que têm essa prática.
A partir desse estudo, será mais fácil encetar o complexo combate contra a MGF.
“O mais importante é fazer algo, não parar. É insistir e continuar a insistir...”, reitera Tony Parker Danso
Mutilação Genital Feminina (MGF)
A mutilação genital feminina (MGF) refere-se, por definição, a diversas práticas nocivas que envolvem o corte dos genitais femininos por razões não médicas.
Há vários níveis de MGF. O primeiro nível refere-se à remoção da parte superior do clítoris, no segundo remove-se completamente o clítoris e parte dos pequenos lábios vaginais. O terceiro nível consiste na remoção completa do clítoris e dos pequenos e grandes lábios. Há ainda um quarto grau, chamado de infibulação que consiste em suturar os dois lados da vulva após a remoção do clítoris e dos pequenos e grandes lábios. É deixado apenas um orifício pequeno para a menstruação.
Estima-se que aproximadamente 15 por cento das mutilações em África sejam infibulações. A maior parte dos casos, 80 por cento, é MGF de segundo grau.
A mutilação é realizada com facas, mas também com lâminas e até fragmentos de vidro, geralmente sem anestesia, nem nenhum cuidado anticéptico.
A sua prática acarreta danos profundos e irreversíveis tanto físicos como psicológicos e é ainda responsável pelas mortes de várias raparigas de todas as idades.
Viola, pois, o direito de toda jovem de desenvolver-se psicossexualmente de um modo saudável e natural, sendo considerada uma ofensa grave aos direitos humanos em geral, e aos direitos da mulher e da criança, em particular.
Efeitos da MGF
A MGF pode causar a morte, como acima referido. Na maior parte dos casos, as consequências são infecções crónicas, abcessos e tumores benignos que causam desconforto e grande dor.
Quando se fala de infibulação os danos são ainda piores: infecção crónica do tracto urinário, pedras na vesícula e uretra, danos nos rins, infecções no tracto reprodutor devido a obstruções do fluxo menstrual, infecções pélvicas, infertilidade, tecido excessivo da cicatriz e problemas no parto são algumas das consequências apontadas. Muitas vezes as relações sexuais, além de não proporcionarem prazer, são muito dolorosas.
Onde acontece:
A MGF é praticada em mais de 40 países, 28 dos quais no continente africano mas igualmente no Médio Oriente, na Indonésia, América central e do sul e países de destino de comunidades migrantes. Cabo Verde, tal como vários países Europa, América do Norte e também Austrália
As maiores taxas de prevalência de MGF encontram-se no Djibuti (90/98 por cento), na Somália (99 por cento) e Eritreia (95 por cento).
No Senegal, país de forte migração com Cabo Verde, a taxa é de 28 por cento, segundo um relatório da UNICEF lançado em 2010, e de entre 15 a 20 por cento segundo a Amnistia Internacional. Ainda segundo a AI, a idade média em que se pratica a MGF no Senegal está situada entre os dois e os doze anos, dependendo dos grupos. Como é o caso em vários outros países, a idade em que se pratica este ritual está a diminuir, na maioria dos casos devido à oposição oficial da prática.
Na Nigéria a prevalência atinge os 60 por cento, variando entre alguns meses após o nascimento até antes do casamento.
Na Guiné-Bissau, a taxa situava-se nos 45 por cento, mas crê-se que tenha aumentando nos últimos tempos.
Apenas 22 países do continente africano contemplam já leis específicas contra essa prática.