Mutilação Genital Feminina: Quando a tradição mutila

PorSara Almeida,6 fev 2015 0:00

Assinala-se hoje, 6 de Fevereiro, o Dia Internacional da Tolerância Zero contra a Mutilação Genital Feminina. Para marcar a data, o Expresso das ilhas repesca uma reportagem publicada em Dezembro de 2012, que mostra como o país não está imune a este tipo de prática nefasta. Na nossa próxima edição voltaremos ao tema, com actualizações sobre o que o arquipélago tem feito no combate a esta superstição que mutila.

 

“Tinha dez anos quando fui excisada. Tive hemorragias e muitas dores durante 3 dias. Fui excisada com uma faca. As minhas companheiras, meninas como eu, também choravam muito. Alguns anos depois percebi que o que me fizeram tinha prejudicado para sempre toda a minha vida de mulher. Nos meus 4 partos sempre tive muitas dores na zona da excisão, durante 2 ou 3 semanas. Na minha vida íntima tenho dificuldades. Ainda hoje quando me dão uma faca para a minha mão, lembro-me da excisão. Tenho medo de facas.”

O testemunho de Fatumata Seidi, da Guiné-Bissau, encontra-se na net, a par com vários outros relatos de mulheres que foram vítimas de MGF, ou excisão, como também é chamada.

Todas falam do medo, das dores, da tomada de consciência de como isso condicionou a sua vida. São mulheres que aceitaram dar o seu testemunho a organizações locais e internacionais, quebrando o silêncio que normalmente rodeia esta tradição.

A Mutilação Genital Feminina (MGF) é um problema que afecta 140 milhões de mulheres em todo o mundo, segundo a OMS. Estima-se ainda que mais de 6 mil meninas, a cada dia, sejam submetidas a esse tipo de violência.

A prática é realizada essencialmente em África, em 28 países, e na Ásia, mas os fluxos migratórios fazem com que seja uma problemática à escala mundial.

Luísa Maria da Silva é guineense, mora em Cabo Verde há seis anos, e trabalha como monitora nas Aldeias SOS. Apesar de ser cristã e de na sua comunidade não se cometer esta prática, sabe que esta problemática afecta sobremaneira as mulheres do seu país de origem. Conhece quem tenha sofrido essa violência e o quanto o lamenta, pelo menos uma das suas amigas, com quem falou sobre o assunto.

Está familiarizada pois com o fenómeno e indigna-se.

“Com o desenvolvimento da ciência já viram que isso prejudica a mulher durante o parto também e há limitações de prazer” no acto sexual, mas continua a fazer-se.

Nem a lei que entrou em vigor em 2011 atenuou a prática, no seu país.

Segundo a UNICEF o corte do clítoris, atinge 45 por cento das guineenses entre os 7 e os 12 anos. A excisão pratica-se essencialmente pela comunidade islâmica, mas também por alguns grupos animistas, sendo mais frequente nas regiões de Leste, nomeadamente Bafatá e Gabu.

No início de Outubro, o ministro da Saúde do Governo guineense de transição, Agostinho Cá, por seu lado, alertava que a MGF afectava, actualmente, 50 por cento das mulheres na Guiné-Bissau. Ou seja, apesar da lei, a prática continua a realizar-se clandestinamente, e tem até aumentado.

 

 

MGF  “chega” a Cabo Verde

Em Cabo Verde, a problemática é quase desconhecida, uma vez que nunca fez parte da cultura do país. No entanto, vários cabo-verdianos que viveram na Guiné-Bissau sabem da existência desta prática em África.

Josefina Chantre, Presidente da célula de Cabo Verde da Renascença Africana - Associação das Mulheres da África Ocidental (RA-AMAO CV) conhece bem o fenómeno, devido à sua vivência continental. E reconhece que à semelhança de outros locais do globo esta é já uma realidade no arquipélago.

“Não há nenhum estudo sobre isso. Mas, com os fluxos migratórios, isso acontece um pouco por todo o lado. Por exemplo, na Europa, nomeadamente em Portugal, estão a braços com este problema, exactamente por causa dos fluxos migratórios.”

O facto de o fenómeno ter chegado à realidade cabo-verdiana não significa que aqui se cometa essa prática.

Luísa Maria da Silva acredita que não. “Conheço alguns muçulmanos, não vão fazer isso em Cabo Verde”, diz, acrescentando que também nunca ouviu falar de residentes que tenham ido ao exterior para o fazer.

Josefina Chantre e Tony Parker Danso, presidente da Plataforma da Comunidades Africanas são, no entanto, mais cépticos.

Há muitas mulheres cabo-verdianas que nem sabem em que consiste a MGF, uma vez que é um fenómeno que a cultura cabo-verdiana não contempla, casadas com imigrantes costa ocidental africana. Acredita-se que estes possam levar as crianças para visitar a família paterna, e durante a viagem seja feita a MGF.

“Quando a mãe dá por isso, faz o quê? De qualquer maneira, são pessoas que não tem um grande empoderamento económico e não têm voz nas famílias. Estão dependentes. É por isso que temos de denunciar, de trabalhar” para evitar que essas situações aconteçam, reivindica Josefina Chantre.

Tony Parker Danso também refere que às vezes as crianças, filhas de cabo-verdianas ou não, são levadas para o continente para ser circuncidadas depois regressam a Cabo Verde.

“Está a acontecer discretamente”, denuncia.

Na mesma linha, Parker recorda a incongruência da lei cabo-verdiana que permite que um pai leve o filho para fora do país, sem autorização expressa da mãe, enquanto o contrário não é permitido.

O presidente da Plataforma, que é também Cônsul Honorário da República do Gana em Cabo Verde, não descarta ainda a hipótese de as comunidades trazerem esporadicamente uma fanateca (mulher que faz a MGF) até ao arquipélago, para realizar as operações.

“Não vou duvidar porque há três anos atrás vieram alguns rapazes, chamam-se médicos, que fazem a circuncisão nos rapazes”. [No entanto, recorde-se que a circunscrição masculina é diferente da feminina e por vezes chega a ser aconselhada por motivos de higiene e saúde].

Seguindo a mesma lógica, de trazer alguém para fazer as operações no arquipélago, há razões para acreditar que possam vir também fanatecas.

 

 

As leis, as fanatecas e as mentalidades

Em Cabo Verde não há legislação específica sobre a MGF, que se trata ainda de um fenómeno incipiente no país.

Não obstante, e olhando o exemplo de outros países, uma lei, por si só, não seria solução para o problema. Isto porque os papéis legislativos que se aprovam não conseguem combater as mentalidades forjadas ao longo de várias gerações.

“Eliminar a MGF? Só através da educação e da sensibilização”, diz Luísa.

“As leis não resolvem os problemas, o que é preciso é mudar a mentalidade das pessoas”, reforça Josefina Chantre.

O exemplo da Guiné-Bissau, pela proximidade histórica e (mesmo) cultural com Cabo Verde e pelas vidas que cruzaram e cruzam os dois países, é várias vezes referido. É, aliás, a realidade -  onde acontece o MGF -  mais conhecida e por isso incontornável neste assunto.

O governo guineense aprovou, como referido, em 2011, uma lei que proíbe e criminaliza a MGF, mas os efeitos tardam a surgir, por diversas razões.

A começar pelo económico.

“Na Guiné-Bissau, há pessoas que vivem disso. Há as matronas [fanatecas] que vivem nas 'Barracas do Fanado', como lhes chamam”, conta Josefina Chantre.

São mulheres, com influência na comunidade, que fazem dessa prática nefasta o seu modo de vida, o seu ganha pão, e por isso não vão abandonar a sua actividade se, por um lado, não houver uma mudança de mentalidades e, por outro, não lhes for proporcionada uma alternativa de rendimento.

E além da alternativa, há o peso da herança uma vez que a “profissão” passa de uma geração para outra.

Quando a lei foi lançada na Guiné-Bissau, algumas fanatecas “até entregaram a faca e disseram: “não vou fazer mais”. Mas outras disseram: “eu vi os meus antepassados fazer isso, se eu ficar velha vou entregar a faca à minha filha para ela continuar a fazer”, conta Luísa.

Depois há a questão da mentalidade e da cultura.

A própria sociedade encara as mulher incircuncisas como prostitutas e é extremamente difícil para uma mulher (ou até um homem) opor-se a esta mutilação, pois são acusadas de não respeitarem as tradições  e os valores familiares, tribais e religiosos, e de rejeitar o seu povo e sua identidade cultural, explica a Amnistia Internacional.
Além disso, a tradição do fanado, da MGF, assenta em várias crenças enraizadas.

Pensa-se que uma mulher circuncisa é mais pura, tem mais facilidade de engravidar e em ter o bebé.

A MGF, acredita-se, desencoraja as temidas traições e a promiscuidade sexual, uma vez que a mulher não tem prazer. Acredita-se ainda que a remoção do clítoris e os lábios vaginais eleva a feminilidade da rapariga, sendo sinónimo da docilidade e obediência feminina.

A limpeza e higiene são outras “justificações”. De facto, em certas sociedades, mulheres não mutiladas são consideradas sujas e não têm autorização de distribuir comida e água.

Muitos homens rejeitam as jovens que não são “cortadas” e assim, ser mutilada é condição prévia do casamento.

Ora isto levanta a questão do empoderamento da mulher. Em África, o casamento continua a ser a única alternativa para as mulheres, e estas não poderão opor-se a uma tradição que condiciona esse casamento, enquanto não conseguirem alguma independência económica do homem.

Esta prática cultural, ancestral e fortemente enraizada, é ainda erradamente conotada como uma prática religiosa, apesar de não constar em nenhum texto religioso.

Muitos “pensam que é uma prática religiosa, muçulmana, que deve continuar, mas não há registo disso no Alcorão. Não tem nada a ver com religião, é superstição”, explica Tony Parker Danso.

Face a tudo o que está por detrás da MGF, é preciso juntar às leis, campanhas e acções de sensibilização e educação, alternativas e empoderamento económico: um trabalho complexo, em rede – juntando vários actores –  e, sem dúvida, a longo prazo.

 

O arquipélago contra a mutilação

A presidente da Associação Crianças Desfavorecidas (ACRIDES), Lourença Tavares participou em Novembro, em Nairobi (Quénia), no Fórum das Organizações da Sociedade Civil da África Subsariana. O tema do evento, que reúne organizações que trabalham com a temática das crianças, foi nesta edição, “A protecção das crianças contra as práticas negativas sociais e culturais: rumo a uma mudança social significativa”. A MGF foi uma das problemáticas abordadas e à chegada a Cabo Verde, a ACRIDES reuniu-se com vários parceiros sociais, nomeadamente a RA-AMAO e a Plataforma.

Juntos têm o desejo expresso de lutar contra a problemática. Alguns constrangimentos foram já apontados e foram esboçadas algumas acções e sugeridas outras, como a solicitação da partilha de experiências de organizações que já actuam sobre a temática em outros pontos de África.

Previsto para Março, por exemplo, está um fórum, com várias ONG e outras entidades presentes na reunião.
Uma vez que o 6 de Fevereiro foi instituído como o Dia Internacional da Tolerância Zero contra a Mutilação Genital Feminina, há também uma grande vontade, pelo menos da parte da RA-AMAO e da Plataforma com quem falámos, de marcar a efeméride com acções que chamem a atenção da sociedade cabo-verdiana contra a MGF.

Tony Parker Danso adianta ainda que a Plataforma irá desde já sensibilizar os associados de origem muçulmana, contra a prática.

“Tentar evitar ou parar, mas não vai ser fácil”, antevê o presidente.

 

A necessidade de estudos

Antes de qualquer acção contra a MGF é necessário perceber com o que é que se está a lidar. No entanto, é complicado obter informações sobre um assunto tão enraizado e do foro íntimo como a MGF junto das comunidades imigradas.

 “As comunidades vivem muito fechadas, sobretudo quando têm que salvaguardar aquilo que lhes é profundo. Para eles é um acto de cultura”, afirma a Presidente da RA-AMAO CV, que trabalha junto a essas comunidades.

Na referida reunião da ACRIDES e ONG que trabalham à volta da criança, género e comunidades imigradas, foi sugerido que se criasse uma rede de esforços e fizesse um estudo socio-económico alargado sobre as comunidades imigradas.

“O próprio governo não sabe quantos imigrantes estão em Cabo Verde”, diz a presidente da RA-AMAO. E esse estudo é importante para que se possam estabelecer programas e projectos para enquadrar essas imigrações, acrescenta.

Ninguém sabe pois ao certo quantos imigrantes estão no país. Estima-se que da costa ocidental sejam entre 10 mil a 15 mil, mas não há dados concretos, o que dificulta todo o trabalho ligado à imigração.

“Quer queiramos quer não, hoje somos um país de imigração. Não podemos estar a fingir que essas pessoas não existem, que não estão cá, que não trabalham, que não fazem parte do desenvolvimento de Cabo Verde e que não vieram alterar o quotidiano do cabo-verdiano.”

Também Tony Parker Danso realça a importância do estudo, que deve ser efectuado não só por cabo-verdianos, mas também envolvendo os imigrantes do continente e que têm essa prática.

A partir desse estudo, será mais fácil encetar o complexo combate contra a MGF.

“O mais importante é fazer algo, não parar. É insistir e continuar a insistir...”, reitera Tony Parker Danso

 

 

Mutilação Genital Feminina (MGF)

A mutilação genital feminina (MGF) refere-se, por definição, a diversas práticas nocivas que envolvem o corte dos genitais femininos por razões não médicas.

Há vários níveis de MGF. O primeiro nível refere-se à remoção da parte superior do clítoris, no segundo remove-se completamente o clítoris e parte dos pequenos lábios vaginais. O terceiro nível consiste na remoção completa do clítoris e dos pequenos e grandes lábios. Há ainda um quarto grau, chamado de infibulação que consiste em suturar os dois lados da vulva após a remoção do clítoris e dos pequenos e grandes lábios. É deixado apenas um orifício pequeno para a menstruação.

Estima-se que aproximadamente 15 por cento das mutilações em África sejam infibulações. A maior parte dos casos, 80 por cento, é MGF de segundo grau.

A mutilação é realizada com facas, mas também com lâminas e até fragmentos de vidro, geralmente sem anestesia, nem nenhum cuidado anticéptico.

A sua prática acarreta danos profundos e irreversíveis tanto físicos como psicológicos e é ainda responsável pelas mortes de várias raparigas de todas as idades.

Viola, pois, o direito de toda jovem de desenvolver-se psicossexualmente de um modo saudável e natural, sendo considerada uma ofensa grave aos direitos humanos em geral, e aos direitos da mulher e da criança, em particular.

 

 

Efeitos da MGF

A MGF pode causar a morte, como acima referido. Na maior parte dos casos, as consequências são infecções crónicas, abcessos e tumores benignos que causam desconforto e grande dor.

Quando se fala de infibulação os danos são ainda piores: infecção crónica do tracto urinário, pedras na vesícula e uretra, danos nos rins, infecções no tracto reprodutor devido a obstruções do fluxo menstrual, infecções pélvicas, infertilidade, tecido excessivo da cicatriz e problemas no parto são algumas das consequências apontadas. Muitas vezes as relações sexuais, além de não proporcionarem prazer, são muito dolorosas.

 

 

Onde acontece:

A MGF é praticada em mais de 40 países, 28 dos quais no continente africano mas igualmente no Médio Oriente, na Indonésia, América central e do sul e países de destino de comunidades migrantes. Cabo Verde, tal como vários países Europa, América do Norte e também Austrália

As maiores taxas de prevalência de MGF encontram-se no Djibuti (90/98 por cento), na Somália (99 por cento) e Eritreia (95 por cento).

No Senegal, país de forte migração com Cabo Verde, a taxa é de 28 por cento, segundo um relatório da UNICEF lançado em 2010, e de entre 15 a 20 por cento segundo a Amnistia Internacional. Ainda segundo a AI, a idade média em que se pratica a MGF no Senegal está situada entre os dois e os doze anos, dependendo dos grupos. Como é o caso em vários outros países, a idade em que se pratica este ritual está a diminuir, na maioria dos casos devido à oposição oficial da prática.

Na Nigéria a prevalência atinge os 60 por cento, variando entre alguns meses após o nascimento até antes do casamento.

Na Guiné-Bissau, a taxa situava-se nos 45 por cento, mas crê-se que tenha aumentando nos últimos tempos.
Apenas 22 países do continente africano contemplam já leis específicas contra essa prática.

 

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Autoria:Sara Almeida,6 fev 2015 0:00

Editado porSara Almeida  em  10 fev 2015 11:25

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