O Acordo Ortográfico (AO) entrou em vigor no dia 1 de Outubro. Trata-se de uma mudança considerada “irreversível”, mas poucas diferenças se notaram na prática, o que prova que este será, como se previa, um processo paulatino. Aliás, várias entidades públicas, que deveriam dar o exemplo, continuam, dias depois da entrada oficial, a usar a velha grafia.
Este mês, cumprem-se em Cabo Verde os seis anos de período de transição para o Novo Acordo Ortográfico da Língua portuguesa. Nesse sentido, e conforme decidido em Conselho de Ministros de Junho passado, desde quinta-feira que os textos produzidos em Cabo Verde se deveriam passar a reger pela norma ortográfica. No entanto, no dia-a-dia dos cabo-verdianos, e à excepção daqueles que estão envolvidos no sector da educação, pouco mudou. Mesmo entre as entidades do Estado.
A “velha” ortografia está nos sites oficiais, nas páginas das redes sociais e também nas notas de imprensa que chegam à Redacção do Expresso das ilhas.
Por exemplo, na página oficial do governo, a notícia de 1 de Outubro sobre o discurso do Primeiro-ministro na ONU, está escrita na velha ortografia. E também as notas de imprensa do Gabinete de José Maria Neves são ainda escritas à “antiga”.
Comunicados de Imprensa pós 1 de Outubro do Ministério das Finanças, Ministério do Desenvolvimento Rural, Ministério da Juventude, entre outros, chegam igualmente na velha grafia. Por outro lado, ministérios como a Justiça ou a Saúde, parecem já ter feito a transição.
Ou seja, embora a passagem também anunciada em Junho para o AO da correspondência oficial do Estado e os media, a mudança ainda não foi geral e anda descompassada. O Boletim Oficial, “órgão” máximo de comunicação do Estado, é excepção, sendo já redigido segundo as regras do AO. Porém, basta olha para a capa do BO de 1 de Outubro para ver que ainda há uma mistura das ortografias no documento. É que aí, o nome do mês encontra-se escrito com maiúscula quando o Novo AO define que se escreve “outubro”.
Esse erro na forma como os meses são escritos é na realidade recorrente entre os já adeptos do AO. E não sendo grave, tem de ser evitado. É que pior do que escrever numa ou noutra grafia, é a adopção das duas no mesmo documento, dizem os especialistas.
Um caminho paulatino
De qualquer forma, esta ausência de efeitos imediatos e alguns “erros” não é de estranhar.
“Não é uma atitude que se possa exigir com rupturas. Há também previsão de que a implementação seja faseada. Assim como se previu uma fase de transição de seis anos (de 2009 a 2015), estamos a prever um período até 2019/2020 para a implementação paulatina do acordo ortográfico”, sustentou Mário Lúcio Sousa, em entrevista à Lusa, no dia 1.
Entre os cabo-verdianos as duas ortografias vão pois coabitando. Alguns abandonaram já, assumidamente, a velha. Outros vão alternando entre uma e outra. Um factor que parece ter bastante importância nesta questão da migração ortográfica são os correctores automáticos de programas como o Word.
O sociólogo Adilson Barbosa é disso exemplo. Desde 2013 que usa dois tipos de “escrita”, apoiado por esse motivo. “Tenho dois computadores, um pessoal e um de trabalho. O computador pessoal está actualizado com o novo acordo ortográfico, tudo o que escrevo nele fica logo actualizado”, explica.
Aonde o AO parece estar a ser mais levado a sério é, sem surpresa, nas escolas e Universidades.
Como conta Ivan Vieira, há muito tempo que este estudante do Liceu Amílcar Cabral usa o AO, pois “alguns” dos seus professores já leccionavam nesta ortografia.
Agora o uso generaliza-se e todos os professores deverão seguir as novas regras. É o caso do professor José Maria Furtado, da Escola Cesaltina Ramos, que começou a usar a nova ortografia no início deste ano lectivo.
“Os meus alunos estão a usar o novo acordo de forma a familiarizar-se com a nova escrita”, diz, avaliando que “este novo acordo é muito mais simples e pertinente. Justifica-se”.
Nem todos os alunos estão satisfeitos. “É mais difícil para nós que já nos habituamos desde cedo a escrever de uma forma”, desabafa Nadine Correia, estudante da Escola Secundária Pedro Gomes, que começou a usar “a nova forma de escrita” este ano. A tendência é ainda para escrever na velha grafia, algo que vai ter de mudar para não verem as notas prejudicadas. “Tenho um professor que disse que tira valores a quem escrever uma palavra errada”.
Mas não é só ao nível secundário. Os novos “manuais escolares e outros materiais pedagógicos para os cinco primeiros anos de escolaridade, recentemente elaborados no quadro da reforma curricular” utilizam já a nova grafia.
AO, já?
Embora já se fale desta mudança há anos, esta parece ter, de alguma forma, apanhado de surpresa alguns profissionais de diferentes ramos.
Há quem não conheça as suas regras e datas: “Já ouvi falar do novo acordo, mas não sei nada a seu respeito. Não o uso, nem sei quando é que entrou em vigor”, conta Ana Martins, secretária.
“Já ouvi falar do novo acordo ortográfico, só não sabia se seria implementado tão rápido”, confessa, por seu lado, a Irlanda Amado, Técnica Parlamentar da Assembleia Nacional.
De qualquer forma, esta técnica considera que a transição se fará sem problemas, pelo menos para os adultos e para as crianças que iniciam agora o seu percurso escolar. Já para os que estudam em outros anos, principalmente no segundo ano, a dificuldade de adaptação poderá ser maior, vaticina.
Irlanda Amado defende ainda que seja disponibilizada mais informação acerca da nova grafia, até porque, considera, há pessoas que não tem facilidade de acesso aos meios de comunicação social.
Mas estão os órgãos de comunicação social cabo-verdianos a usar a nova ortografia (bom, como já deu conta o EI ainda não)? Ou, para dar o exemplo mais emblemático, e tratando-se aqui de uma decisão do Estado, estão os órgãos públicos a usar já o novo AO? A resposta é não.
Tanto a rádio e televisão pública (RTC) como a agência de notícias Inforpress continuam a usar a velha grafia, como aliás todos os privados.
Um Acordo com 25 anos
A nova norma ortográfica foi acordada há 25 anos entre os Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e visa uniformizar a escrita nos diferentes países lusófonos.
A sua implementação porém tem sido tudo menos pacífica (e obviamente lenta). Em Cabo Verde, o debate tem sido morno, embora – como em todo o lado – não consensual. Apesar da falta de consenso, parece, pelo que o Expresso das ilhas pode aferir, que não há grande oposição ao Acordo Ortográfico de 1990. A maior parte das pessoas já se convenceu de que estamos perante um caminho sem retrocesso, “irreversível”, nas palavras do Ministro da Cultura, Mário Lúcio Sousa.
No dia da entrada em vigor, o ministro adiantou também à Lusa que se prevê um período “até 2019/2020 para a implementação paulatina do acordo ortográfico”.
Nesse sentido será adoptado (tardiamente, de acordo com algumas vozes) um Plano de Implementação Complementar, que envolverá os organismos de Estado, Comunicação Social e estabelecimentos de ensino. A partir de agora deverão intensificar-se ainda sessões de esclarecimento para professores, estudantes, funcionários, jornalistas, corpo diplomático, entre outros.