A maioria dos cabo-verdianos não se importa de ter homossexuais como vizinhos, mostra o último documento da AfroBarometer sobre a tolerância. Mas, não só. Os cabo-verdianos são também dos que demostram maior aceitação em relação aos imigrantes, à diversidade religiosa e aos doentes com SIDA.
Não foi há muito tempo que Robert Mugabe, o eterno presidente do Zimbabué, disse que os homossexuais são ferramentas ocidentais para destruir a população africana através da SIDA. E grande parte da literatura actual, entre teses e jornais, tem mostrado um continente profundamente homofóbico, e dividido por diferenças étnicas e religiosas irreconciliáveis. Felizmente, ambos estão errados.
É claro que não se pode dourar a pílula: a homossexualidade é ainda considerada ilegal em 37 dos 54 países do continente africano. Em alguns deles, é punida com a morte, noutros com prisão perpétua. Enquanto a igualdade de direitos para homossexuais avança a passos largos na Europa e nas Américas, em África assiste-se ao sentido contrário, onde muitas das nações, além de manterem leis específicas para punir, procuram apoio legal para uma repressão ainda mais dura.
Isto quer dizer que a homofobia é fenómeno universal no continente? Não exactamente, como revelaram os dados do último estudo da AfroBarometer sobre a tolerância. Apesar de apenas 21 por cento dos mais de 50 mil inquiridos em 33 países afirmarem que não se importavam de ter vizinhos homossexuais, há a registar diferenças assinaláveis entre países.
Em quatro deles, a maioria dos cidadãos afirmou que não teria problemas em ter vizinhos homossexuais: Cabo Verde (74 por cento, considerado o país mais tolerante), África do Sul (67 por cento – África do Sul é o único país do continente onde parceiros do mesmo sexo podem casar e igualmente o único onde existem leis que punem quaisquer tipos de discriminação contra homossexuais), Moçambique (56 por cento) e Namíbia (55 por cento).
Em três outros países, mais de 40 por cento da população também não demonstra qualquer oposição em ter vizinhos homossexuais: Maurícias (49 por cento), São Tomé e Príncipe (46 por cento) e Botswana (43 por cento).
No outro extremo, ou seja, homofobia quase unânime, estão países como Senegal (onde 97 por cento da população nem quer ouvir falar em vizinhos gays), assim como a Guiné Conacri, o Uganda, o Burkina Faso e o Níger (todos com 95 por cento).
Em Cabo Verde, desde 2004 que os actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo são legais, mas, casais do mesmo sexo e famílias chefiadas por casais do mesmo sexo não são reconhecidos e não têm as mesmas protecções legais disponíveis para casais formados por pessoas de sexo oposto.
No entanto, antes desta data, não há relatos de prisões ou julgamentos em Cabo Verde, que é inclusive o segundo país do continente a realizar uma parada de Orgulho Gay com o consentimento das autoridades. Aliás, os anos 90, na análise do antropólogo Francisco Miguel, da Universidade de Brasília, marcam o momento histórico em que o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros) surgiu no país, através do que denominou a “Revolta das Tchindas”, momento de ruptura simbólica em que as travestis do Mindelo saíram vestidas de drag à luz do dia [dissertação de mestrado “Levam má bô”].
É provável que uma mudança de política tenha impacto nas atitudes da população? É. Muito. Para além do caso de Cabo Verde, o exemplo de Moçambique é paradigmático, uma vez que o país adoptou um novo código penal, em 2014, que descriminalizou a homossexualidade.
Há uma outra ligação importante demonstrada por este estudo da AfroBarometer. Os dados mostram que níveis maiores de tolerância dependem da idade e do nível de educação de quem respondeu aos inquéritos. Sem surpresas, os mais jovens e os mais letrados são os mais tolerantes.
Mas, começámos este artigo ao escrever que ambas as visões estavam erradas. Enquanto África é muitas vezes retratado como um continente de divisões étnicas e religiosas, as conclusões do documento mostram, pelo contrário, um alto nível de aceitação entre populações. 91 por cento dos africanos diz aceitar as diferentes etnias (94 por cento em Cabo Verde), 87 por cento diz-se tolerante com as diferentes religiões (96 por cento em Cabo Verde), 81 por cento concorda com a presença de imigrantes e trabalhadores estrangeiros (94 por cento em Cabo Verde) e 68 por cento não tem problemas em ter por vizinhos pessoas com SIDA (83 por cento em Cabo Verde). Ou seja, os africanos mostram altos níveis de tolerância para muito, mas não para tudo, sendo que o tudo se refere à comunidade LGBT.
Quanto ao senhor Mugabe. Bem, está também completamente enganado. A ideia que não existiam africanos homossexuais antes do colonialismo é totalmente falsa. Aliás, foram os europeus quem primeiro instituiu em África leis anti-sodomia e anti-homossexualidade, apoiados pela suposta superioridade moral que lhes era atribuída pelos textos bíblicos. Aliás, por falar em textos, o primeiro registo de uma relação homossexual data do ano 2400 Antes de Cristo, no Egipto, entre Khnumhotep e Niankhkhnum. Segundo as traduções dos egiptólogos, Khnumhotep significa “junto pela vida” e Niankhkhnum “junto pelo abençoado estado dos mortos”. E sim, juntando ambos os nomes temos “juntos na vida e juntos na morte”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 748 de 30 de Março de 2016.