A narrativa sobre o massacre de Monte Tchota começa a ganhar forma. As autoridades avançaram informações, o suspeito confessou o crime e vários testemunhos somam detalhes ao puzzle. Deixamos aqui uma tentativa de reconstituição do crime, baseada nesses elementos. No entanto, é de frisar que esta é ainda uma história em aberto e que o que foi apurado até agora tem muitas pontas soltas. Muitos cabo-verdianos estão com dúvidas. “Esta história está mal contada”, dizem.
Madrugada de domingo para segunda (25 de Abril), destacamento militar de Monte Tchota. O soldado Manuel António Silva Ribeiro, mais conhecido por Entany, estava em serviço de sentinela. O amargo de boca causado por ter perdido um confronto físico contra um dos seus colegas teimava em não desaparecer. Era aliás por causa disso que tinha ficado no posto de serviço, em vez do vencedor. A humilhação sentida pela derrota e ampliada pelo gozo dos outros militares ensombrava-o há horas, assim com o sentimento de injustiça pela decisão do Sargento de trocar o serviço.
A certa altura decidiu pôr em prática as ameaças que havia proferido e que não foram levadas a sério: iria matá-los. Todos dormiam, excepto o cozinheiro que já se levantara eventualmente para fazer o pequeno-almoço. Foi a primeira vítima. Matou-o com arma branca. De seguida disparou contra os restantes militares, que se encontravam deitados.
Como conseguiu matar de assentada sete militares a tiro (barulhento), é algo que dá azo a várias teorias e dúvidas, nenhuma delas confirmada. Talvez o treino conseguido nos videojogos que adorava e jogava compulsivamente o tenham ajudado no terrível feito. Ele próprio se intitulava “sniper” no seu perfil de Facebook. Talvez tenha sido assim, simples, obra solitária. Foi assim que confessou. Ou talvez seja algo mais complexo. Ainda há muito para explicar e as investigações decorrem.
Morte dos civis
Na manhã de segunda-feira, mortos os oito militares (seis soldados, um cabo e um sargento) do destacamento, Entany terá aguardado que alguma viatura parasse na zona, para poder abandonar o isolado posto. Sendo Monte Tchota, o local onde se encontram as principais torres de comunicação do país, certamente haveria técnicos que por aí passariam nesse mesmo dia.
Assim foi. Chegou um Terius branco, alugado. Nele vinham dois técnicos de telecomunicações espanhóis, acompanhados por um técnico nacional, que se deslocavam para trabalhos de manutenção num dos radares instalados na zona.
Quando exigiu a viatura, estes terão resistido, conforme contou depois Entany a um familiar. Disparou a matar. Um dos técnicos conseguiu fugir. Escondeu-se, mas o esconderijo acabou por se revelar um beco sem saída. Foi também mortalmente alvejado.
Onze vítimas no total: uma degolada, as outras mortas com tiros de uma espingarda automática AKM e de uma pistola Makarov.
Depois da chacina, Entany, na posse de armamento do destacamento, ao qual teria tido acesso depois de se tirar as chaves do cadeado guardadas pelo sargento morto, terá então dirigido até à cidade da Praia. Quem conhece a tortuosa estrada de Monte Tchota sabe que é um desafio fazê-la. Mesmo tendo aprendido a conduzir unicamente nos videojogos, o assassino confesso conseguiu chegar ao seu destino.
Nessa noite, de acordo com um primo que não se quis identificar, dormiu em sua casa, no Palmarejo, onde terá mostrado à família fotografias dos corpos das vítimas, no telemóvel. Assumiu-se como o autor do massacre.
Mais tarde, é noticiado que na casa dos familiares fora encontrado armamento. As Forças Armadas, em conferência de imprensa, no sábado, especificam: “Por volta das 16h10 [de dia 26], no âmbito das buscas, procedeu-se a recolha de uma AKM, três carregadores, dois contendo 30 munições cada e um com 11, na residência do Sr. Zezé e dona Graciete, na zona de Monte Vermelho, atrás do restaurante Paulino, local de residência do soldado Manuel António Silva Ribeiro”.
Sem comunicação
Os militares em Monte Tchota ficam no destacamento durante uma semana. Tinham entrado numa quarta-feira e sairiam na seguinte, dia 27. No Sábado, o comandante da 3º Região Militar, Carlos Monteiro, havia feito uma visita surpresa aos soldados. Nada de anormal se passava, constatou.
Também nenhuma situação anómala foi registada no domingo, pelo guarda operativo.
Na segunda-feira, já por volta das 18h (depois do crime, portanto), o oficial de dia, não conseguiu estabelecer comunicação com Monte Tchota. Não era a primeira vez. Ainda recentemente, devido à humidade, a ligação deixou de funcionar. Em conferência de imprensa o próprio comandante da 3º região militar, Carlos Monteiro, corroborou que às vezes há problemas de comunicação.
“Monte Tchota fica num ponto elevado e por causa das condições climatéricas meteorológicas, há avarias técnicas. Isso tem acontecido. Quando acontece, no dia seguinte os técnicos da Telecom vão lá e faz-se a reparação”, contou.
Ninguém esperou o pior. Aguardou-se pelo dia seguinte. As críticas a esta falta de comunicação com o destacamento acumulam-se. O processo de esclarecimento está em curso.
Na terça-feira de manhã, 26,uma equipa da CVTelecom chegou a Monte Tchota e deparou-se com o destacamento militar abandonado, sem militares à vista. As Forças Armadas foram avisadas e enviaram uma força para o local.
Simultaneamente, as FA foram colocadas em estado de Alerta Máximo e procedeu-se ao “reforço de todas as infra-estruturas críticas sob responsabilidade da Guarda Nacional”, conforme divulgou, o Coronel Jorge Martins Andrade, Comandante da Guarda Nacional.
O Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, major-general Alberto Fernandes, que estava ausente do país, em missão de serviço em Moçambique, foi também avisado do desaparecimento do pessoal do destacamento. “Ordenou-me que tomasse todas as medidas necessárias com vista a esclarecer a situação”, relembra o coronel.
O carro e a terrível “descoberta”
Sensivelmente na mesma altura, a Polícia Nacional (PN) encontrou um carro abandonado perto da Cidadela, com o armamento e material militar dentro - oito armas AKM e cerca de 1000 munições. Era o carro usado por Entany para sair de Monte Tchota. Por esclarecer está o momento do abandono do carro (o soldado abandonou a viatura antes ou depois de ir dormir a sua casa?) e das armas (porque deixou armamento no carro?).
O aparecimento desta viatura adensava o mistério para as FA que ainda pouco ou nada sabiam sobre o que se passava. Um contingente da Polícia Militar (PM) juntou-se à PN, na Cidadela.
Entretanto, uma equipa de seis fuzileiros chegou ao destacamento de Monte Tchota onde já estavam elementos da Polícia Judiciária (PJ), Protecção Civil e Bombeiros e deparou-se com o cenário de horror. Os quartos estavam cheios de sangue e os militares mortos. Estavam fardados, excepto um cabo que vestia uns calções e casaco. Cada um jazia na sua cama, baleado. À entrada do edifício estavam mais dois cadáveres (os cidadãos espanhóis) e do lado de trás um outro civil (cabo-verdiano).
Gabinete de crise
Pouco depois do aviso da CV Telecom o comandante Jorge Andrade comunicou também ao “Director Nacional de Defesa o que se passava e este por sua vez, informou o Ministro da Defesa Nacional”.
A gravidade da situação era inegável. “Passava das 12h00 quando começamos a receber informações sobre o aparecimento de cadáveres de civis no interior do muro de protecção do destacamento”, conta o Comandante da Guarda Nacional.
Por volta das 13h00, começava uma reunião, convocada pelo Ministro da Defesa na qual foi constituído um Gabinete de Crise encarregado de ir “seguindo o desenvolvimento da situação e a coordenação das operações”.
Onde andava Entany a essa hora? Não sabemos.
Continuando. Mais ou menos por essa altura, a OceanPress noticiava em primeira mão as mortes em Monte Tchota. Numa primeira fase, dizia o site noticioso, a tese era de atentado terrorista. A Semana, por sua vez, associava a chacina ao narcotráfico.
O certo era que, “por volta das 15h30, haviam sido confirmados e identificados onze cadáveres, sendo oito militares, dois espanhóis e um nacional, mas que faltava um dos militares ali destacado”.
A informação era escassa, mas as notícias relacionadas com o caso começaram a proliferar por vários Órgãos de Comunicação Social nacionais e estrangeiros. Houve inclusive alguma desinformação. As autoridades ainda em silêncio. Elas próprias ainda estavam (na verdade, até ao presente momento, ainda estão) a tentar perceber o ocorrido e sua dimensão.
O povo cabo-verdiano de coração nas mãos. Uma Nação em suspenso. Um país em alerta.
Nessa fase, já tinha sido apurado que o soldado desaparecido e suspeito da chacina era o fuzileiro Manuel António Silva Ribeiro, Entany.
Ao final da tarde, o governo, através do Ministro da Administração Interna Paulo Rocha, informava que o ataque tinha sido cometido por um militar, devido a “motivações pessoais”. No mesmo comunicado à imprensa, o governante confirmou as 11 mortes.
Entretanto, começou a ser difundida “uma fotografia do suspeito a todas as autoridades envolvidas na operação”.
Caça ao homem
Começava a “caça ao homem”, com o envolvimento de forças militares, PN e PJ.
Não há, como referido, “notícias” do paradeiro de Entany entre a manhã de terça – depois de alegadamente ter pernoitado em sua casa – até quarta, 27, também de manhã quando fez um refém: um taxista.
Rodney, o tal taxista, acabara de parar o carro para que um passageiro descesse, quando logo entrou um outro. Era Entany, encoberto com um chapéu e uma peruca. Nada fazia prever o que se passaria nas horas seguintes, mas o mau-cheiro que exalava o novo passageiro começou-lhe a parecer suspeito, contou à TCV. Para se livrar do incómodo passageiro, disse que teria de ir buscar um outro passageiro e foi então que o disfarce caiu. Entany ter-lhe-á mostrado a arma, uma Makarov, e sob ameaça de morte, ordenou-lhe que fizesse tudo o que mandava.
Diz-lhe então que fosse para Achada Grande Trás, para a zona do Portinho que é um lugar isolado. Temendo ser abatido uma vez aí chegados, Rodney tentou argumentar.
“Disse-lhe que se ficássemos parados em um lugar, a PN poderia suspeitar de nós. Ele concordou e decidimos então ficar dentro da cidade da Praia, sobretudo na zona baixa”, contou o taxista. Circularam ao longo de três horas, durante as quais Rodney tentou conquistar a confiança do soldado. Aparentemente, conseguiu-o.
Enquanto isso a caça ao homem prosseguia, com maior concentração na zona de Coqueiro.
No táxi, o soldado confessou a Rodney que pretendia matar o comandante da 3ª Região Militar de Cabo Verde, o tenente-coronel Carlos Monteiro, e também o padrasto. Iria fazê-lo por não suportar injustiças, justificou. Queria ainda despedir-se da irmã.
Depois do desabafo, Entany pediu-lhe que lhe arranjasse algum dinheiro e lugar para ficar, e acreditou quando Rodney lhe disse que tinha um amigo a quem podia pedir a chave de um quarto e algum dinheiro.
Ainda segundo o relato do taxista, foram a casa desse amigo, na Fazenda, e o Rodney saiu da viatura. Subiu ao terraço da casa e chamou a polícia. Esta terá demorou 25 a 30 minutos a chegar. Entany ainda tentou arrancar com o carro, mas acabou por ter um acidente. Tentou fugir a pé. Foi então que cerca de 20 elementos das forças de segurança, alguns dos quais à paisana, o encurralaram, não lhe dando tempo de reagir. Eram cerca das 13h35 de dia 27. Haviam decorrido mais de 48 sobre o início da tragédia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 753 de 04 de Maio de 2016.