“Eu tive dois pais, um antes e outro depois”, conta Isaac Monteiro ao Expresso das Ilhas. A fronteira que marca esse antes e depois é uma data: 31 de Agosto de 1981. Isaac Monteiro tinha na altura 9 anos. O pai, João Monteiro, foi um dos agricultores presos na madrugada que se seguiu à manifestação na zona de Coculi, Ribeira Grande, contra a reforma agrária.
Medo. Isaac era criança, mas lembra-se bem da sensação com que acordava todos os dias: medo. O receio que os pais não tivessem voltado para casa depois de uma saída para um serão entre amigos. O temor ao ver os agentes da segurança a entrar em casa, fazer uma revista, inclusive na biblioteca, onde abriam os livros, à procura de panfletos ou de literatura subversiva contra o regime. “Nunca sabíamos a que horas ou em que dias é que eles apareciam. Ouvíamos falar em bufos e é claro que, mesmo pequenos, tínhamos receio em falar”.
Até porque o pai já tinha sido levado uma vez antes do 31 de Agosto. Os pais foram jantar a casa de uns amigos, João Monteiro manifestou oposição à reforma agrária, as palavras chegaram aos ouvidos do partido único, levadas por um dos bufos da altura. Foi preso. Tinha chamado a atenção dos vigilantes do regime.
João Monteiro, agricultor e funcionário do Ministério do Desenvolvimento Rural, não era homem de se meter em políticas, preocupava-o a sobrevivência da família. “Quis apenas defender as suas terras. Falava entre outros agricultores, estava revoltado, mas não ao ponto de querer levantar uma sublevação”, diz Isaac Monteiro.
Depois do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, na Guiné-Bissau, os dirigentes cabo-verdianos encontram nessa ruptura uma fonte privilegiada de exaltação do patriotismo islenho e de louvação do peso específico da participação dos nacionalistas ilhéus na saga libertária da Guiné-Bissau, como escreve José Luís Hopffer C. Almada no ensaio: Das tragédias históricas do povo cabo-verdiano e da saga da sua constituição e da sua consolidação como nação crioula soberana. Nesse contexto, acelera-se o processo de procura de uma nova localização, exclusivamente cabo-verdiana, das fontes de legitimação do poder dos dirigentes do regime de partido único e assiste-se a uma aceleração do “processo revolucionário em curso”.
A implementação da reforma agrária foi entendida como essencial para a emergência da justiça social nos campos do Sahel insular e para a superação definitiva dos entraves socioeconómicos ao desenvolvimento agrário de Cabo Verde bem como ao florescimento de uma democracia social e económica.
“Luta de classes”
O objectivo programático de Reforma Agrária, várias vezes antes adiado, foi assim retomado para conseguir o apoio da população rural. Olívio Pires declara que “a Reforma Agrária é um acto eminentemente político” e continua, “vamos confirmar a total identificação do Partido e Governo com as massas e vamos também provar quem são os verdadeiros amigos do nosso povo, os defensores dos seus interesses mais profundos” . “Reforma Agrária situa-se na luta de classes..” (Voz di Povo 5/8/81, citado por Humberto Cardoso no livro: O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança).
O certo é que a reforma agrária não foi bem recebida em Santo Antão. Fosse por desconhecimento dos laços estreitos que uniam proprietários e agricultores, fosse pelo objectivo político, tentou impor-se uma ideia que não se coadunava com aquilo que os santantonenses tinham em comum: as relações com a terra. No fundo, o meeiro, como era chamado quem trabalhava a terra do proprietário, era quem mandava na terra.
“Tentaram incutir na mente das pessoas que eram exploradas, roubadas, quando isso não acontecia. Havia convivência, laços, a maioria dos padrinhos dos filhos eram os donos das terras para apertar mais a amizade existente entre o proprietário e o lavrador”, como contou ao Expresso das Ilhas Manuel Ferreira, que foi preso na mesma data.
Muitos trabalhadores rurais entregam as terras aos donos, dizendo que não queriam saber da história da reforma agrária. Sentiam que iam ser prejudicados e que podiam perder um compadre e um amigo. Estes sentimentos começaram a fervilhar e acabaram por desembocar no 31 de Agosto.
No dia anterior, 30, houve uma reunião do partido em Figueiral onde surge uma manifestação que gritava contra o partido. Essas pessoas foram presas. No dia 31, a intensão era fazer outra manifestação para pedir a libertação desses homens. O objectivo era ir até à Ribeira Grande, mas são barrados pelos militares, “armados até aos dentes”, em Boca de Figueiral. O povo não arredou o pé. Ficaram lá a gritar: “não à reforma agrária”, “libertação dos presos”. Até que dispararam, mataram o Adriano Santos e feriram outros.
Como resumiu Epifânio Ferreira, anos depois, em 2000, num discurso proferido no local: “Nas nossas rochas que ladeiam este vale, soavam os estampidos e uma densa nuvem de fumo toldava os ares na zona de Boca de Figueiral. Balas perdidas cravaram-se nas paredes de algumas casas. O partido da força, luz e dia que como força trouxe-nos a prepotência, como luz a da metralha e como guia a PIDE CV, que nos atirou para o fundo do abismo, quis mostrar aos santantonenses que eram fortes em combates mesmo lutando contra homens que como armas traziam alguns cigarros nos seus bolsos”.
No dia 31 de Agosto de 1981, João Monteiro não participou na manifestação, estava em casa, a trabalhar. Foi preso nessa madrugada. Pelo que sabemos de outros testemunhos [Lembrem-se do 31 de Agosto, Expresso das Ilhas, edição 717] não é difícil imaginar o que aconteceu: portas arrombadas a meio da noite, homens semidespidos arrastados para fora da cama, espancamentos, coronhadas, pontapés, murros. Agressões praticadas sem uma única palavra. Sem uma única explicação.
João Monteiro é levado com os outros para o Externato de Ribeira Grande, onde continuam a ser espancados. Eram na altura 21 presos, muitos não tinham estado na manifestação, como foi o caso de João Monteiro e Osvaldo Rocha [que acabou por morrer devido às agressões]. Se caiam no chão, devido às agressões, eram pisados pelos militares. Nessa noite sofrem maus-tratos durante duas horas: murros na cara, na boca, na cabeça, pontapés, coronhadas. Depois trouxeram camiões, Volvos altos, onde era preciso dar um salto para se conseguir agarrar a borda. Os militares fizeram duas filas, os prisioneiros passavam no meio e continuaram a ser castigados com pontapés e coronhadas.
São transportados para o Porto Novo, acocorados em cima de lascas de pedras cortantes. No Porto Novo são atirados para cima do cais e metidos num navio. Um tubo é ligado do escape do barco para o salão onde estavam os prisioneiros, que começa a encher-se com o fumo do motor. Quase todos começam a vomitar, outros caiem, sem forças. Quando finalmente chegam a São Vicente recebem o mesmo tratamento, sair do navio em fila indiana, passando por entre os soldados. As agressões continuaram. São postos em celas com pavimento de cimento, os colchões eram areia de vulcão e o travesseiro era uma pedra. As necessidades eram feitas dentro do cubículo, num canto. De noite os militares passavam junto às portas e disparavam rajadas para impedir que os presos dormissem. Seguiram-se os interrogatórios. Diários.
Na altura, Isaac estava em São Vicente de férias, com a mãe e o irmão e todos ignoravam o que estava a passar-se. Todos os dias falavam com o pai, mas a certa altura houve um dia sem contactos, depois dois, três dias. Preocupadas, as crianças perguntavam à mãe o que estava a acontecer. A mãe só chorava e dizia que o pai tinha desaparecido. Só quando apresentam queixa são informados que o pai, afinal, estava preso.
Em São Vicente, João Monteiro fica primeiro detido no Morro Branco. Devido às pressões internacionais, os presos são depois transferidos para a prisão da Ribeirinha. Isaac, na altura estudante em São Vicente, no 1º ano do ciclo, guardava as quintas-feiras e os domingos, de manhã e de tarde, para ir visitar o pai. Durante dois anos foi esse o ritual, chegar, ser completamente revistado, ver o pai, sair.
Na sequência dos acontecimentos, o Governo, num comunicado, (Voz di Povo 16/9/81, citado por Humberto Cardoso no livro: O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança) “declara a sua firme decisão de continuar a assumir integralmente as suas responsabilidades e de exercer intransigentemente as suas faculdades constitucionais e legais com vista … manutenção da ordem e tranquilidade públicas e … afirmação permanente do poder e da autoridade do Estado”. A Comissão Política do PAICV, por sua vez, classifica os manifestantes de S.Antão “de inimigos do progresso” e de “agentes da reacção” e alerta os seus militantes para uma “vigilância redobrada, face às tentativas que o inimigo interno e externo não deixará de fazer ainda para travar o processo de transformações sociais e económicas em curso” (Voz di Povo 9/9/81).
O Jornal governamental Voz di Povo noticía no seu número de 28/10/81 a “contra ofensiva política-ideológica” levada a cabo em todos os pontos de Santo Antão. Diz que num curto espaço de tempo foram realizadas cento e ciquenta reuniões com mais de 6 mil participantes e que os “desordeiros” foram julgados em tribunais populares com assistência massiva das populações afectadas pelas desordens. Mais adiante no artigo salienta-se que o “julgamento em tribunal popular dos cúmplices... teve um papel impulsionador na popularização das teses da reforma agrária e, sobretudo, na desintoxicação das massas”. De acordo om o mesmo artigo, confirmou-se que “os espectros demagógicos do anti-comunismo, de tão estafados, já não.. infundem qualquer espécie de receio... ao povo trabalhador de Cabo Verde...”.
João Monteiro foi um dos condenados no julgamento de Ponta de Sol, julgamento que acontece três meses depois das prisões, por um tribunal militar. Frei Fidalgo escreve no jornal Terra Nova que estava a decorrer “um novo acto carnavalesco na Ponta do Sol”. Silvestre Évora, advogado de defesa, quando tem direito à palavra na abertura da audiência, põe-se de pé e diz: “meus senhores e minhas senhoras: é de bradar aos céus como esses homens foram torturados”. O juiz suspende a audiência de imediato. Évora é chamado a outra sala e avisam-no que tinha de ter cuidado com o que dizia. Isaac assistiu a tudo, dentro do carro, acompanhado pela mãe, a avó e o irmão, a ouvir pelas colunas, instaladas na câmara municipal, a transmissão “daquela palhaçada”.
Quando é libertado, dois anos depois, João Monteiro não é o mesmo homem. “O meu pai era uma pessoa alegre. Sempre que chegava do trabalho, a primeira coisa que fazia era ligar o gerador e pôr os discos a tocar, ouvíamos muita música. Depois da prisão isso nunca mais aconteceu. O meu pai ficou diferente”, diz Isaac Monteiro.
Fora da prisão, cada um ficou no seu canto. Começou a haver cada vez mais cuidado, mesmo a falar com amigos. Sobre o que passou naqueles 730 dias, João Monteiro sempre foi parco em palavras. Isaac lembra-se de ouvir o pai falar depois da saída do livro A Tortura em Nome do Partido Único, de Onésimo Silveira. “Disse-me que faltava contar muito do que me aconteceu. Perguntei-lhe porque não contava então toda a versão, por vergonha, respondeu-me”.
“Contou sempre pedacinhos, o que ele pensava que poderia contar a um filho. Hoje percebo, era um homem adulto, que sofreu humilhações, perpetradas por pessoas conhecidas. Não digo que foi por amigos, porque um amigo não faz isso, mas por pessoas conhecidas”.
Talvez por isso, 35 anos depois, e apesar da data estar ainda muito presente em Santo Antão, as pessoas continuam a não falar sobre o que aconteceu. “As novas gerações ignoram a história da sua ilha”, sublinha Isaac Monteiro.
“Sabe o que é mais grave?”, questiona, “a impunidade. Ninguém foi responsabilizado pelo que aconteceu. Se alguém fez alguma coisa errada tem de, pelo menos, falar sobre isso. Podem ter sido obrigados também, não se sabe. E essa é a grande mágoa, a impunidade”, repete Isaac Monteiro.
MpD recorda efeméride
Numa mensagem chegada à nossa redacção, Ulisses Correia e Silva sublinha que o “o 31 de Agosto de 2016 marca 25 anos sobre o fatídico dia em que o Concelho da Ribeira-Grande em Santo Antão registou um momento marcante de uma atitude e postura desproporcionais, intolerância e abuso de poder do regime de partido único, que vigorou entre 1975 e 1990, em Cabo Verde”.
O presidente do Movimento para a Democracia acentua que este é um momento para recordar, para reafirmar princípios e valores e assumir compromissos com a Nação, que é de todos nós.
“Relembrar 31 de Agosto é assumir de forma plena e descomplexada a nossa história e um momento particularmente difícil para as gentes da ilha de Santo Antão e que deve interpelar permanentemente a Nação crioula”.
Na sua mensagem, Ulisses Correia e Silva escreve que o Movimento para a Democracia esteve sempre na vanguarda pela luta pela democracia e pela defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
“O MpD é, por matriz programática e filosófica, um partido defensor da dignidade da pessoa humana, nas suas dimensões política, económica, social e cultural. Esta efeméride afigura-se, sem dúvida, como ocasião sempre importante para consolidar o Estado de Direito e para reafirmar o vasto catálogo de princípios e valores que enformam a Constituição da República de 1992. Democracia e Liberdade sempre e para sempre”, lê-se na mensagem.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 770 de 31 de Agosto de 2016