Quando o queijo pode fixar população

PorJorge Montezinho,25 set 2016 6:00

 

O queijo do Planalto Norte, Santo Antão, um dos alimentos com a chancela Slow Food, vai viajar até Itália, para mais um Terra Madre – Salão do Gosto, que começa esta quinta-feira. O objectivo é continuar a dar a conhecer um produto que pode ter um impacto cada vez maior na economia local e, naturalmente, na melhoria da qualidade de vida da população.

 

Cabo Verde está ligado à Slow Food desde 2006, data em que uma delegação do país participou pela primeira vez na Bienal “Terra Madre - Salão do Gosto”. Nas várias edições em que marcou presença posteriormente, através de agricultores, pescadores, estudantes e professores associados a projectos promovidos do Atelier Mar, o arquipélago tem dado a conhecer o esforço das comunidades que defendem a preservação dos produtos mais genuínos e a importância de se estabelecer políticas adequadas para a sua valorização enquanto património gastronómico.

Em 2007, após estudos e o esforço de uma equipa de professores da Universidade de Turim, chefiada por Giuseppe Quaranta, o queijo de Bolona, (queijo de leite de cabra, cru, fabricado segundo a tradição) do Planalto Norte, na ilha de Santo Antão, recebeu a marca de Slow Food como património mundial do gosto depois de competir com queijos semelhantes de outras partes do globo.

Como explicou então Leão Lopes, ex-ministro da Cultura do Cabo Verde e presidente da ONG Atelier Mar, o queijo produzido em Santo Antão é resultado de um processamento natural do leite, sem a adição de água, sem o uso do fogo, sem ser resfriado ou refrigerado. A produção acontece em Bolona, pequena vila num planalto semiárido onde vive um rebanho de sete mil cabras e que garante renda e trabalho a mais de 60 famílias. “Cabo Verde é um país pobre e talvez por isso conseguimos ainda manter as nossas tradições. Agora estamos a perceber como preservar e valorizar a tradição agrícola e pecuária do nosso país”.

Uma nova gastronomia é a grande bandeira da Slow Food. E ao gastrónomo cabe o papel que Carlo Petrini, fundador do movimento já entrevistado pelo Expresso das Ilhas, denomina “co-produtor”: não apenas o alienado elemento final de uma longa cadeia, mas alguém conhecedor da agricultura e pecuária, das condições dos trabalhadores do campo e da proveniência dos produtos. Mas, isso não basta. É imprescindível que o gastrónomo seja uma pessoa activa na mudança do planeta, rejeitar alimentos provenientes de exploração humana, de meios de transporte poluidores em excesso, de empresas que arruínam culturas locais ao instalarem-se nas comunidades. Além disso, todas as pessoas devem estar dispostas a pagar mais por tais alimentos.

Desde há alguns anos que queijeiros da região de Piemonte, Itália, têm colaborado, através da Slow Food, com os produtores locais de Santo Antão. Essencialmente, dando formação e apoio técnico para que o produto cabo-verdiano seja cada vez mais seguro. Actualmente, no Planalto Norte há já cinco unidades de ordenha, mas em breve serão mais as estações em funcionamento.

“Já sabemos que o queijo é bem feito. Já sabemos que respeita a ideia de slow food – bom, limpo e justo, mas poderia ser mais justo se as pessoas o conhecessem melhor”, diz ao Expresso das Ilhas Emanuele Dughera, da Slow Food International. Afinal, estamos a falar da expressão de todo o planalto norte, um resumo de todo um local. “A nossa ideia”, continua Dughera, “seria de valorizar o facto de ainda lá morarem pessoas, não só a qualidade, mas sim porque é feito lá e mantém os produtores na localidade”.

 

Valorizar o produto

Para melhorar os padrões de qualidade, todos os produtores estão identificados e cada um deles terá um rótulo dito “falante”, com a historia do planalto. Agora, segue-se o marketing, porque, explica Dughera, as pessoas têm de conhecer melhor o produto. “Não interessa levar o queijo do Planalto Norte para o mundo, [principalmente porque Cabo Verde enfrenta ainda dificuldades na certificação de qualidade], o que interessa é chegar ao mercado de Cabo Verde e ao mercado turístico. Até porque, actualmente, os produtores praticamente só vendem aos pequenos comerciantes da ilha. Temos de dizer aos guias turísticos que se vão a Santo Antão têm de levar os turistas ao planalto, aos produtores. Mesmo os chefes de cozinha cabo-verdianos também têm de começar a usar o queijo do Planalto Norte, importante é valorizar o produto”, sublinha Emanuele Dughera.

Com a ajuda da Slow Food, o queijo do Planalto Norte está a viver dois momentos: primeiro, ter a certeza que o queijo respeita toda uma série de obrigações que fazem dele um legitimo produto slow food, segundo, dar-lhe visibilidade. E mais valor. Porque obtendo um valor justo, também se consegue manter a qualidade do produto. Até porque é mais caro fazer respeitando as regras da slow food. “O nosso trabalho é convencer as pessoas a pagarem esse preço justo”, diz a rir Emanuele Dughera.

O principio básico da Slow Food é o direito ao prazer da alimentação, voltar a fazer com que as pessoas se divirtam à volta da mesa. “Os alimentos transformam-se em nós depois de ingeridos, por isso era bom que eles fossem bons, limpos, e também justos. Esse é o direito ao prazer, não só do paladar, mas da saúde, de saber que se vou sustentar a agricultura local ajudo o meu vizinho a crescer, ou o pescador meu vizinho e não um barco qualquer que pesca ao largo de Cabo Verde e que nem sei quem são. Não temos a verdade no bolso mas defendemos o regresso às raízes”, resume Dughera.

“Por isso estamos a dar mais informação sobre o queijo do Planalto Norte. Isso trabalha-se. Mas sabemos que é um produto em que podemos confiar. Não quer dizer que seja o melhor, mas é de confiança, é bom e estás a ajudar um pequeno produtor”.

O Salão do Gosto deste ano vai ser gigante, tanto que foi transferido para fora da cidade de Turim para conseguir receber o meio milhão de pessoas esperado. E se muita gente significa mais visibilidade, também é verdade que salvaguardar um património gastronómico depende também das políticas nacionais. “Sem leis, sem disciplina, é muito mais difícil. As pessoas têm de perceber mais, porque as leis só existem quando as pessoas sentem que precisam delas (principalmente quando se enfrentam os poderosos). Quanto mais soubermos, mais poderemos influenciar”, conclui Emanuele Dughera.


ÁFRICA NO SALÃO DO GOSTO 2016

Organizada pelo Slow Food, pela região de Piemonte e pela prefeitura de Turim, a 11ª edição do Terra  Madre Salone del Gusto, o mais importante evento internacional dedicado à cultura alimentar, será realizado de 22 a 26 de Setembro de 2016, em Turim. Quinhentos delegados de 160 países, mais de 800 expositores, 300 Fortalezas Slow Food e 500 comunidades do alimento Terra Madre participarão do evento. O Mercado Internacional incluirá uma área especial dedicada às comunidades do alimento Terra Madre e produtos de Fortalezas de 15 países africanos.

De Cabo Verde, participará a Fortaleza dos Queijos de Leite de Cabra Cru do Planalto Norte, formada por um núcleo de criadores que têm um papel crucial na proteção de um meio ambiente árido e difícil, e na produção de diferentes tipos de queijos de leite cru de cabra.

A Fortaleza das Tâmaras do Oásis de Siwa, do Egipto, exibirá algumas variedades antigas de tâmaras em risco de extinção cultivadas no Oásis de Siwa. O imenso património gastronómico do Egipto será o assunto da conferência Alimentos e Agricultura no Egipto, Ontem e Hoje – com a participação do diretor do Museu Egípcio, Christian Greco, e do sociólogo egípcio Malak Rouchdy e de uma mostra fotográfica montada no pátio interno do Museu Egípcio: Do Absinto do Sinai ao Pão Farasheeh: A Arca do Gosto no Egito.

 A Etiópia será representada pela Fortaleza do Café Selvagem da Floresta de Harenna, um tipo de café selvagem da floresta naturalmente seco. Uma oficina de degustação será dedicada à descoberta do Café Kafa Etíope e os cafés de origem única mais representativos do mundo.

A Guiné-Bissau mostrará o Sal de Farim, uma Fortaleza que reúne mais de 500 mulheres que filtram o sal através de pedaços de tecido estendidos sobre molduras de madeira, fervendo o líquido obtido para acelerar a evaporação da água. Produtores da Fortaleza do Óleo de Palma Selvagem mostrarão aos visitantes como produzem óleo utilizando apenas palmas de óleo selvagens, trabalhando em perfeita harmonia com o meio ambiente, protegendo as florestas e a cultura local.

 O Quénia mostrará uma grande variedade de produtos, incluindo o Mel Ogiek e Urtigas Secas da Floresta Mau, o Sal de Cana do Rio Nzoia, o Iogurte de Cinzas Pokot e a Abóbora Lare. Criadores de Ovelhas Molo e a Fortaleza dasGalinhas Molo Mushunu também participarão no evento.

 De Madagáscar, participa a Fortaleza Variedades Antigas de Arroz do Lago Alaotra – onde 200 produtores trabalham para proteger sementes de variedades locais de arroz em risco de extinção –, e os produtores de Baunilha Mananara, que vivem na Reserva da Biosfera Mananara Nord, onde preparam as vagens manualmente.

 A área de exposição do Marrocos mostrará produtos de quatro Fortalezas: Óleo de Argan, Cominho de Alnif, Sal de Zerradoun, Açafrão de Taliouine.

 A Mauritânia será representada pela Fortaleza Butarga de Tainha das Mulheres Imraguen. Os Imraguen são pescadores nômadas que transportam os seus pequenos vilarejos de cabanas improvisadas para seguir os movimentos de grandes cardumes de tainha-garrento e corvina ao longo do Arguin Bank na costa norte da Mauritânia.

 A Fortaleza do Café do Ibo, de Moçambique, trará para o evento um café único. A Fortaleza quer proteger o ecossistema ímpar da Ilha do Ibo, onde a planta ainda é silvestre. Uma mostra fotográfica no Castelo Valentino – Um projeto de cooperação em três países: Brasil, Angola e Moçambique – da fotógrafa Paola Viesi, que viajou por Angola e Moçambique fotografando as comunidades identificadas pelo trabalho de mapeamento de produtos locais e tradicionais realizado pelo Slow Food.

São Tomé e Príncipe será representado pela Fortaleza do Café Robusta, rico em cafeína e com sabor equilibrado, aromático e suave, com uma leve nota amarga.

Do Senegal, a Fortaleza do Cuscuz de Painço Salgado da Ilha Fadiouth, que preserva uma linha de produção antiga, tradicional e original que liga a terra e o mar. O cuscuz de painço salgado é o resultado da união dos cereais tradicionais, cultivados desde tempos imemoriais no interior, e do mar.

A Serra Leoa mostrará a Noz de Cola de Kenema, fruto da árvore cola, que pertence à mesma família do cacau, e é usado como ingrediente de um refrigerante natural que tem muito pouco em comum com a bebida mais globalizada do mundo.

A rede Slow Food na África do Sul será representada no evento Terra Madre Salone del Gusto pela recém criada Fortaleza do Sal de Baleni. Criadores de Ovelhas Zulu e produtores da Fortaleza de Queijos de Leite Cru da África Do Sul também participarão do evento para informar os consumidores internacionais sobre a importância de proteger raças animais nativas e para promover a fabricação de queijos artesanais da África do Sul.

De Uganda, participarão quatro Fortalezas: Café Robusta de Luwero, Banana Kayinja nativa, Inhame Trepadeira e Gado Ankole Long-Horned. As chefs Betty Nakato e Harriet Birabwa vão preparar pratos tradicionais da cozinha de Uganda, cozidos lentamente em folhas de bananeira.

A Tanzânia mostrará o Mel de Abelhas sem Ferrão de Arusha, apanhado por um pequeno grupo de apicultores em colmeias em pedaços de troncos ocos pendurados nos telhados das casas, cercas ou dos galhos mais altos de árvores frutíferas, como mangueiras, abacateiros e mamoeiros.


SLOW FOOD

Fundada em 1986, a Slow Food é um movimento que tem como princípio básico o direito ao prazer da alimentação, utilizando produtos artesanais de qualidade, concebidos de uma maneira que respeite tanto o meio ambiente quanto as pessoas responsáveis pela produção. Opõe-se à tendência de padronização do alimento no Mundo, e defende a necessidade de que os consumidores estejam bem informados, tornando-se coprodutores. “É inútil forçar os ritmos da vida. A arte de viver consiste em aprender a dar o devido tempo às coisas”, diz Carlo Petrini, fundador da Slow Food.

Com sede em Bra, Itália, e tendo como símbolo um pequeno caracol, a Slow Food teve como objectivo inicial apoiar e defender a boa comida e o prazer gastronómico. Com o tempo, a iniciativa foi sendo ampliada para abranger a nossa qualidade de vida e, como consequência, a própria sobrevivência do planeta em que vivemos. O Slow Food acredita que a gastronomia está indissociavelmente ligada à política, à agricultura e ao ambiente.

A Slow Food foi o primeiro dos movimentos “Slow” a surgir, em 1986, em Barolo, Itália. Em 1989, em Paris, constituiu-se o movimento internacional Slow Food, por oposição ao conceito de Fast Food e ao estilo de vida acelerado. É um movimento que valoriza o que é de origem “Local” em oposição ao “Global”, não negando, contudo, a Globalização desde que esta seja pautada pela justiça, pela equidade, pela humanização e pela regulamentação. É, na realidade, um contributo para que seja criado um modelo de desenvolvimento sustentável onde prevaleça o respeito pela biosfera e pela socioesfera, e onde se defende a sustentabilidade dos recursos da natureza e os valores culturais humanos.

O movimento tem actualmente mais de 100.000 membros, em 170 países, que constituem mais de 800 Convivia (o nome dos grupos da organização), além de escolas, hospitais, instituições e autoridades locais, juntamente com 1.600 Comunidades do Alimento, 5.000 produtores de alimentos, 1.000 Chefes e cozinheiros e 400 académicos de 150 países. A Slow Food organiza eventos nacionais e internacionais como o Salone del Gusto, a maior feira de comida e vinhos de qualidade do mundo, organizada bienalmente no Centro de Exposições Lingotto em Turim; a Cheese, uma feira bienal organizada na região de Piemonte e a Slowfish, uma exibição anual em Génova dedicada à pesca sustentável. Também em Turim, organiza a cada dois anos o evento Terra Madre, que reúne mais de 5 mil pequenos produtores agrícolas, chefes de gastronomia e pesquisadores de todo o mundo.

“Ao treinar os nossos sentidos para compreender e apreciar o prazer que o alimento proporciona, também abrimos os nossos olhos para o mundo.” Lê-se no Manual Slow Food. Em resumo, o que é um alimento slow? É aquele que é bom, limpo e justo. Ou seja, bom porque é saboroso e apetitoso, fresco, capaz de estimular e satisfazer os sentidos, capaz de juntar as pessoas e trazer bons momentos passados em companhia ou mesmo sozinho, bons momentos passados na sua produção, confecção ou degustação; limpo porque é produzido sem exigir demasiado dos recursos da terra, dos seus ecossistemas e meio-ambiente e sem prejudicar a saúde humana; e justo porque respeita a justiça social, o que significa pagamento e condições justas para todos os envolvidos no processo, desde a produção até a comercialização e consumo.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 773 de 21 de Setembro de 2016.

 

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Autoria:Jorge Montezinho,25 set 2016 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  26 set 2016 12:19

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