África quer dizer basta ao saque dos oceanos e mares do continente. Um passo importante foi dado no mês passado com a assinatura da Carta Africana sobre Segurança Marítima, Segurança e Desenvolvimento, documento subscrito no final da Cimeira Extraordinária dos Chefes de Estado e do Governo da União Africana sobre Segurança e Protecção Marítima e Desenvolvimento em África, que decorreu a 15 de Outubro em Lomé (Togo). Cabo Verde foi um dos estados que firmou este acordo.
“Há muitos recursos no mar, há muitos recursos que são pilhados, se não fossem pilhados poderiam beneficiar as populações”, diz ao Expresso das Ilhas o Brigadeiro Antero de Matos, ex-conselheiro de segurança nacional do governo de Cabo Verde. “Na cimeira de Lomé, foram tratadas duas questões diferentes, mas que têm ligações uma à outra: a primeira é o problema de segurança e protecção marítima, a segunda é o problema do desenvolvimento da economia azul. Foram os próprios chefes de Estado e do governo a afirmar que era altura do continente abordar estes temas com maior propriedade, com cabeça, tronco e membros, para tentar pôr cobro à insegurança que se vive nos mares de África, de forma a possibilitar o desenvolvimento”.
Por isso mesmo, a data de 15 de Outubro foi mesmo considerada pelos organizadores da cimeira como um importante marco para toda a África “na marcha para a realização do seu destino”. O objectivo: criar melhores condições de segurança e protecção nos mares e oceanos da África, para garantir uma exploração rentável destes espaços para os povos do continente.
No período pós “guerra-fria” a dinâmica evolutiva dos conflitos acompanhou a dinâmica da evolução dos Estados, tendo-se assistido a uma mudança radical da intensidade e principalmente da tipologia e da regionalização da conflitualidade. Estes conflitos trans-regionais transitaram para o interior dos Estados e mais recentemente para os mares internacionais e para as águas costeiras sob jurisdição nacional, caracterizando uma nova conflitualidade que, fazendo-se nos mares, tem impacto nas populações e na economia em terra.
Talvez por este motivo e desta forma, e muito por via da “globalização” da conflitualidade marítima regional, assistiu-se em África a uma fragilização da capacidade dos estados e das suas estruturas sociais, políticas e militares, com reflexos directos numa incapacidade estrutural em garantir a salvaguarda da sua soberania e em combater a marginalidade e o crime no mar.
Conjuntamente, a permeabilidade das fronteiras marítimas e alguma fragilidade governativa resultou num aumento das dificuldades dos estados africanos em exercerem a soberania e o controlo das suas costas e especificamente da sua Zona Económica Exclusiva (ZEE) e das águas internacionais (incluindo as rotas marítimas) de sua directa jurisdição. Este aspecto causou uma perturbação crescente no Sistema Político Internacional, revelando-se uma permanente ameaça transnacional à segurança global, demonstrando que o factor “segurança no mar” é primordial na consolidação do “desenvolvimento em terra” e que ambos são actualmente elementos estratégicos no desenvolvimento sustentável no continente africano, como escreve o Tenente-Coronel Luís Bernardino, na análise à estratégia marítima integrada de África 2050.
Neste contexto, a nova geopolítica dos conflitos em África, associada à fragilidade do estado africano, tem levado a Comunidade Internacional a intervir crescentemente neste continente, com vista a contribuir para a consolidação da paz e criando condições para melhorar a segurança e o desenvolvimento, sendo nas costas oceânicas da África subsariana que a sociedade internacional, por via maioritariamente das Nações Unidas, da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte tem vindo a intervir com maior frequência e intensidade.
“A cooperação é feita essencialmente entre o norte e o sul”, como explica o Brigadeiro Antero de Matos ao Expresso das Ilhas, “enquanto a cooperação entre países africanos, apesar do muito que se fala, ainda não fez sentir os seus efeitos. Mas em termos de segurança, os países africanos, os estados mais próximos uns dos outros, não têm condições de, por si só, fazer face às ameaças que pairam sobre eles. A única via é partir para uma cooperação efectiva”.
Assim, os assuntos do mar e dos oceanos, nomeadamente, a temática da segurança marítima e a gestão dos recursos marítimos passaram a constar nas agendas das Organizações Regionais e dos Estados Africanos. Depois de 2012, sugeriu-se que a “Estratégia Marítima Integrada de África 2050” como o caminho ideal para melhorar a segurança e o desenvolvimento marítimo no continente.
Os oceanos, mares e as águas lagunares ou afluentes interiores da África estão actualmente sob uma enorme pressão social, política e económica, constituem fonte de subsistência para muitos milhões de africanos e são um recurso vital para muitos milhares. Ao longo dos tempos, muitos agregados familiares vêm exercendo actividades económicas e comerciais no, agora, designado “Domínio Marítimo de África” (DMA), constituindo importante fonte de recursos para a economia local, regional e com reflexos na economia global.
Segundo os últimos dados do Banco Africano de Desenvolvimento, as actividades marítimas tradicionais, tais como o transporte marítimo local e a pesca, intensificaram-se, e por outro lado, estão a aparecer novas actividades relacionadas com o mar, como a aquicultura, o turismo ou as energias renováveis associadas às marés que vieram dar uma outra dimensão económico-social ao mar e aos oceanos.
Este aumento da intensidade das actividades no mar está a realizar-se num cenário de insegurança, onde as várias formas de tráfico ilegal, a acentuada degradação do ambiente marinho, a perda da biodiversidade e os consequentes efeitos agravados sobre as mudanças climáticas globais são cada vez mais uma realidade. Além disso, os oceanos e os mares estão interligados e a acção num mar ou numa determinada área económica tem um impacto directo ou indirecto noutro mar e pode ter efeitos positivos ou negativos sobre outros espaços geopolíticos marítimos contíguos. Da mesma forma, o uso cada vez mais intenso dos oceanos e mares por vários sectores, combinado com as alterações climáticas, o aumento da pressão sobre o ambiente marinho, tem conduzido a um incremento na poluição e na degradação desregulada dos recursos piscatórios e do meio ambiente marinho em geral.
“No domínio da segurança”, explica o Brigadeiro Antero de Matos ao Expresso das Ilhas, “as principais preocupações prendem-se com o problema da pirataria. No Corno de África a pirataria diminuiu um pouco, mas recrudesceu no Golfo da Guiné. Para além da pirataria marítima, há outros problemas ligados à insegurança no mar que têm preocupado bastante os estados africanos, entre eles os tráficos de diversa ordem. À cabeça encontra-se o tráfico de droga, um problema bastante bicudo, principalmente quando há sinais claríssimos da ligação entre o tráfico de droga e o financiamento do terrorismo. Essa ligação é muito perigosa e obviamente põe em causa o desenvolvimento dos estados africanos”.
“Há também a questão dos tráficos humanos”, prossegue o oficial, “aproveitando a onda de migração, as redes de tráficos humanos tem estado a actuar de forma muito activa. E podemos ainda falar da pesca furtiva. São esses os problemas que vêm afectando seriamente a segurança marítima e que levou a os estados africanos a adoptar uma Carta que permitisse a cooperação entre os diversos estados na luta contra a insegurança. Mas essa luta não é apenas garantir segurança por segurança, é garantir segurança para que haja condições para a exploração dos recursos que existem nos mares africanos. Neste momento, vai-se tornando cada vez mais claro que o futuro de África está bastante ligado à sua capacidade de desenvolver a economia azul”.
Fonte de energia e riquezas, as actividades ligadas ao mar são uma importante componente do crescimento, necessário para o desenvolvimento e emergência dos países africanos. Daí a importância do combate contra a pirataria marítima e os tráficos ilícitos, sob todas as formas, que transitam por via marítima e das medidas a tomar para desencorajar e acabar com os autores destes actos prejudiciais.
Por isso mesmo, da cimeira de Lomé saiu a mensagem de serem necessárias iniciativas africanas arrojadas para desencorajar vigorosamente a pesca não autorizada e ilegal, que implica uma perda de lucros enorme para as economias e que reduz consideravelmente as possibilidades de criação de emprego.
Outra conclusão é que as acções isoladas ou individuais não poderão conter eficazmente os fenómenos prejudiciais, só uma mobilização geral e acções colectivas proactivas permitirão proteger os mares, oceanos e respectivos recursos.
“Cada um agindo por si só, já vimos que não consegue ir a lado nenhum”, sublinha o Brigadeiro Antero de Matos, “mesmo as diversas instâncias africanas que foram, e vão, sendo criadas para esta cooperação ainda não começaram a funcionar em pleno. Temos a própria União Africana, temos as regiões organizadas em comunidades económicas e começando pelas regiões, que deviam ser o fórum por excelência para desenvolver a cooperação, vemos que essa colaboração ainda está numa fase muito embrionária, e basta tomar como exemplo a zona onde Cabo Verde está inserido. Mas é o caminho a seguir, não há outra alternativa”.
Estas recomendações foram sendo feitas também durante a cimeira. O Presidente da República do Togo, país que organizou o encontro, Faure Gnassingbé, pediu uma acção coordenada e concentrada para combater as novas que pairam sobre o continente, com a pirataria marítima e as organizações criminosas.
Na véspera da participação na Cimeira de Lomé, o Comissário europeu do Ambiente, Pescas e Assuntos Marítimos, Karmenu Vella, anunciou p lançamento oficial pela União Europeia e pela Dinamarca do projecto que procura desenvolver uma Rede inter-regional de segurança marítima no Golfo da Guiné (GoGIN).
O projecto, co-financiado pela União Europeia (UE) e pela Dinamarca, 7,5 milhões de euros e 1,8 milhões de euros respectivamente, irá apoiar a ligação em rede e a partilha de informação entre os mecanismos nacionais e as plataformas de coordenação regional de segurança marítima implementados nos países do Golfo da Guiné.
Como explicou o Comissário, “o combate contra a criminalidade marítima e a promoção da segurança marítima constituem verdadeiramente um desafio que a África e a União Europeia devem enfrentar lado a lado”.
“O custo da pirataria no Golfo da Guiné estima-se em quase mil milhões de dólares. Mas, na realidade, o preço global da insegurança marítima é bem maior, nomeadamente, em termos de empregos suprimidos na UE, mas mais ainda na África”, concluiu.
Além disso, o pescado e a piscicultura tradicional têm ainda uma contribuição vital para a segurança alimentar para mais de 200 milhões de africanos e proporciona rendimento para mais de 10 milhões. Por outro lado, o comércio internacional é muito importante para muitas economias africanas, com mais de 90% das exportações e importações de África a serem realizadas actualmente por via marítima, constatando-se que, ao longo das últimas décadas, o volume de comércio marítimo mundial mais do que quadruplicou, sabendo-se que cerca de 90% do comércio mundial e dois terços dos fornecimentos de energia são realizados também por via marítima.
Cabo Verde foi um dos países que participou nesta cimeira. Ainda na passada segunda-feira, à saída do encontro com o Presidente da República Jorge Carlos Fonseca, o Ministro dos Assuntos Parlamentares, Elísio Freire, que esteve no Togo, disse que o Governo quer que o arquipélago seja um exemplo na utilização do mar como espaço de criação de riquezas, de partilha e de união das capacidades dos países africanos.
Segundo Elísio Freire, será necessário o apoio da cooperação internacional, mas sobretudo dos países da União Africana. “Pelo facto de termos uma zona económica exclusiva muito maior do que a nossa dimensão em termos de território, a nossa preocupação é que Cabo Verde seja um espaço seguro em termos de pirataria e de tráfico de drogas”, disse o ministro.
Os países arquipelágicos africanos estão na vanguarda do combate à insegurança e do desenvolvimento da economia azul, mas, como sublinha o Brigadeiro Antero de Matos, “uma coisa é estar na ordem do dia e outra é encontrar as soluções mais correctas”. “Futuramente”, refere, “o país deve empenhar-se bastante no desenvolvimento dos demais instrumentos para a execução da Carta Africano sobre Segurança Marítima, Segurança e Desenvolvimento. E rápido, porque os traficantes estão a actuar de forma permanente, isso é uma tarefa para ontem”, conclui este especialista em segurança.
A problemática da segurança marítima para a ua
Pirataria Marítima - A pirataria marítima moderna não presta muita atenção à nacionalidade do navio atacado. Essas acções violentas produzem-se em pleno mar, nos portos, nos fundeadouros e ao longo da costa. Em 2013, 51 ataques foram recenseados no golfo da Guiné. Por outro lado, a África Ocidental é desde há muito tempo um lugar de trânsito intercontinental, a porta de entrada da cocaína proveniente de América latina com destino à Europa. As implicações económicas, de segurança e de estratégia da pirataria e do tráfico de droga são incontestáveis. Esse fenómeno exige uma resposta global que compreende um quadro jurídico particular, meios de vigilância e de intervenção assim como organismos de coordenação sub-regionais. Mas somente uma África forte e unida pode inspirar esta coordenação internacional necessária que se baseia nos domínios da segurança e da protecção do transporte marítimo.
Tráfico ilegal de todo tipo: Os tráficos ilegais ameaçam o elemento motor da actividade económica de um país e prejudicam a sua capacidade de trocas com o resto do mundo. É a partir do porto que os produtos criados por milhões de trabalhadores, agricultores e empreendedores de um país partem para um mercado distante. E é a partir desse mesmo porto que entram os bens que vão utilizar os habitantes desse mesmo país. Mas quando os tráficos ilegais põem em risco os percursos desses bens, são os empregos legítimos que se encontram prejudicados. Portanto, é importante organizar uma infra-estrutura física, segura e social para combater os tráficos ilegais e para responder directamente a essa necessidade de criação de emprego que têm todos os países do mundo inteiro.
Pesca ilegal: A pesca ilegal dizima as unidades populacionais, destrói os habitats marinhos, representa uma concorrência desleal para os pescadores honestos e enfraquece as comunidades costeiras, em especial na África. Foi avaliado que a pesca ilegal provoca prejuízos de cerca de 260 milhões de euros na África ocidental. O continente deve investir mais para comprar materiais eficientes de vigilância e de controlo para lutar contra a pesca ilegal.
Outro objectivo é criar um esquema de certificação de captura na importação e na exportação dos produtos de pesca.
O mar como factor de desenvolvimento: O porta-contentores é o emblema da mundialização das mercadorias, e os grandes portos do planeta rivalizam para captar o tráfego. África espera um forte aumento das trocas comerciais com o resto do mundo ligado directamente a um crescimento da classe média. Este aumento de actividade comercial exige portos modernos que podem assegurar a troca eficiente de carga. As questões levantadas pela UA são: Como é que o continente prepara as suas infra-estruturas portuárias para este aumento de actividade comercial? Quais são as inovações previstas e os métodos de gestão que devem ser implementados? Que papel pode desempenhar o digital para permitir aos cais modernos gerirem melhor o fluxo dos contentores?
Preservação do ambiente Marinho: A manipulação de sólidos a granel produz poeira que pode em seguida contaminar o ambiente. A transferência de líquidos pode provocar fugas ou derrames imprevistos. As emissões de vapores provenientes da carga podem traduzir-se em poluição atmosférica. A má gestão dos resíduos e a perda de cargas podem ter efeitos tóxicos nos oceanos. A pesca contribui de maneira vital para a segurança alimentar e nutricional de mais de 200 milhões de africanos e gera rendimentos a mais de 10 milhões de pescadores. A manipulação de mercadorias emite muitas vezes efeitos que podem ter más consequências no ambiente. É importante desenvolver uma concepção ecológica marítima, antecipando os efeitos das infra-estruturas ao integrá-las nos ecossistemas. As questões levantadas pela UA são: Quais são as boas práticas internacionais para assegurar a conservação da biodiversidade no quadro de um programa de planeamento a longo termo? Quais as medidas que podemos implementar para medir a qualidade ecológica dos espaços portuários?
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 783 de 30 de Novembro de 2016.