A utilização do crioulo nas redes sociais valoriza a nossa língua materna?

PorAntónio Monteiro,26 fev 2017 6:52

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Constata-se com alguma preocupação que cada vez menos pessoas leem jornais livros e revistas e a forte adesão dos jovens às redes sociais onde se comunicam preferencialmente em crioulo. Ontem, 21 de Fevereiro, por ocasião do Dia Internacional da Língua Materna, assinalado um pouco por todo o país com várias actividades promovidas pela Presidência da República e pelos ministérios da Cultura e da Educação, a questão da oficialização da Língua Cabo-verdiana (LCV) voltou a estar no centro das atenções. Hoje é reconhecido o papel das redes sociais na divulgação e valorização da LCV, mas coloca-se a questão se é feita da melhor forma. Foi essa justamente a pergunta que colocamos às linguistas Amália Lopes e Adelaide Monteiro, ao antropólogo João Lopes Filho, ao investigador Corsino Tolentino e ao economista Marciano Moreira.

Em relação à primeira questão todos os entrevistados são unânimes em reconhecer o papel das redes sociais, através da escrita, na dignificação e valorização da língua cabo-verdiana. Apenas João Lopes Filho discorda, alegando entretanto tratar-se da opinião de um não-linguista e portanto pouco versado na matéria. No entender do antropólogo as redes sociais pouco ou nada contribuem para o enriquecimento da nossa língua materna, na medida em que cada utilizador escreve como quer e sem se preocupar com as regras gramaticais, justamente por muitos as desconhecerem. Ou seja, o mesmo utilizador poderá escrever a mesma frase de diferentes maneiras, conforme lhe aprouver “ao correr da pena”.

Para Adelaide Monteiro a internet tem contribuído para a valorização da nossa língua materna, mas faz uma importante restrição. É que segundo a linguista, as redes sociais afectaram a maneira de escrever de todas as línguas, que são usadas na internet, pois propiciaram o surgimento de novos vocábulos e novas escritas, mas para essas línguas a situação é mais ou menos pacífica porque elas já têm uma norma e em caso de dúvida todos apelam à norma. Já a utilização da língua cabo-verdiana na internet, na sua opinião é um pau de dois bicos. “É  uma mão cheia de material linguístico que, recolhido e tratado, serve para uma boa base de dados para estudos de normalização linguística, nomeadamente uma proposta de ortografia para uniformizar a escrita da língua cabo-verdiana. Por outro lado, se a situação se mantiver, em que cada um usa as regras da língua que melhor domina (francês, inglês, português, espanhol, italiano, holandês, etc,), para escrever a nossa língua crioula, estes registos não terão valor nenhum já que não há sistematicidade. Só é entendida entre os sujeitos presentes no diálogo e naquele momento”.

Daí chamar a atenção que a língua escrita nas redes sociais, para a grande maioria, é a modalidade oral, informal da língua, ou seja, as pessoas escrevem como se estivessem a falar, sem recorrer aos formalismos que a escrita “exige”.

Pelo mesmo diapasão afina-se a linguista Amália Lopes, ao ressaltar que as redes sociais têm tido um papel importante na valorização da língua cabo-verdiana, contribuindo para a sua expansão para contextos dantes exclusivamente reservados ao português. “Pode-se dizer que estamos numa diglossia instável, evidenciada pelo teste das três gerações: a de antes da independência era praticamente obrigada a esconder que sabia falar a língua cabo-verdiana; a da independência expandiu o seu uso para espaços mais formais como a administração pública; e a geração pós-independência está a expandi-la para a escrita, usando-a nas situações espontâneas de comunicação escrita, associada às novas tecnologias. É esse um contexto natural de escrita para os jovens”. Para a linguista, este aspecto, em si positivo, tem um efeito perverso do ponto de vista estrito dos aspetos gramaticais da língua e da sua escrita. “Como esta população não aprendeu a escrever a língua cabo-verdiana, ela é alfabetizada na língua portuguesa, escreve o cabo-verdiano, usando o alfabeto português e decalcando as regras de escrita da língua portuguesa. Esse facto contribui para aumentar as influências mútuas também na escrita das duas línguas e o risco de descrioulização da língua cabo-verdiana”, alerta, acrescentando que os crioulos que não são reconhecidos oficialmente, não são usados em todos os lugares e circunstâncias e não são ensinados acabam por definhar ou por se afastarem tanto da sua forma inicial que perdem a sua essência e desaparecem.

O investigador Corsino Tolentino não tem dúvidas que as redes sociais têm enriquecido “a principal língua materna de Cabo Verde”. Entretanto diz que não se pode falar de maior ou menor divulgação da sua gramática nem do alfabeto. “O que sei é que existe uma realidade na nossa cabeça que é a Língua Materna e os Dialectos em todas as ilhas. Todos nos comunicamos em crioulo, mas ele é diferenciado de ilha para ilha”. Tolentino propõe, depois de todos os estudos feitos e experiências conhecidas, a constituição de uma comissão de especialistas e representantes de todas as ilhas para prepararem em 15 anos a oficialização do crioulo e a estratégia de complementaridade do crioulo e do português em Cabo Verde.  

Na verdade, como refere Amália Lopes, já existe uma Comissão Nacional para as Línguas que produziu um documento intitulado “Proposta de Bases para a Oficialização da Língua Cabo-Verdiana”, com o objetivo de ser uma base de negociação entre os partidos políticos para uma iniciativa parlamentar conjunta para a oficialização da língua cabo-verdiana. A Comissão recomendou que “todas as variedades da língua cabo-verdiana deverão ser levadas em conta, em pé de igualdade, na padronização.”

O economista e estudioso da língua cabo-verdiana Marciano Moreira preferiu responder às perguntas enviadas em ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano). Questionado se as redes sociais têm contribuído para o enriquecimento da nossa língua materna nos mais diversos aspectos, escreveu: “Sertamenti! Redis sosial ta sosializa kunhesimentus linguistiku di kada prutagonista i stimula emulason”.

Como analisa o uso do crioulo nas redes sociais em detrimento do português: uma questão identitária, ou pura lei de menor esforço, partindo do pressuposto que no crioulo tudo é permitido? “Ka e nada disu. E spreson di liberdadi linguistiku. Nes planeta, normalmenti parentis i amigus di kada kumunidadi (klan, tribu o povu) ta kumunika entri es na rispetivu lingua maternu. Kel li e apenas extenson pa aria skritu di kel ki nu ten stadu ta faze oralmenti duranti nos Storia enkuantu Povu Kabuverdianu”.

A última questão foi também colocada aos outros três entrevistados. Para Adelaide Monteiro no crioulo nem tudo é permitido e o que acontece é que quando não conhecemos as regras, podemos transgredi-las e não sabemos. “No nosso crioulo tudo não é permitido, só que as regras não foram formalmente assumidas e divulgadas pelo sistema, por isso, uma grande maioria não as utilizam e nem são obrigadas a tal e nem têm consciência do erro e para se usar uma língua na escrita é preciso primeiro estudá-la e depois usá-la”. A linguista volta a frisar que o espaço das redes sociais é um espaço informal, e pelo facto de estarmos a escrever as nossas falas, não quer dizer que é um discurso escrito.  “O texto escrito das redes sociais, são as conversas (orais) e para os cabo-verdianos quando se diz “conversar” é em crioulo. Apenas o canal/suporte é que o muda neste caso, mas continua a ser o papia”.  

Respondendo à mesma questão Amália Lopes diz não acreditar que o uso do crioulo na internet seja em detrimento do português uma vez que os bilingues têm a possibilidade de escolher que língua usar e isso acontece também no espaço das redes sociais. E os jovens, de um modo geral, optam pela LCV nesse contexto. “Eles têm uma língua materna, gostam dela, têm orgulho dela e usam-na, descomplexadamente. A questão é: por que não a haveriam de usar, banindo-a das redes sociais? Para a esconder, por vergonha ou complexo de inferioridade? Para manter o mito de que a LCV só serve para se usar em casa, para as funções sociais menos valorizadas?” 

Para o investigador Corsino Tolentino estamos perante uma questão muito séria, porque o crioulo é a primeira revelação da identidade cabo-verdiana através do qual se manifesta o patriotismo emocional. “Mas logo a seguir vem a lei do menor esforço. O que significa falar e escrever bem ou mal o crioulo, se não existem uma referência e uma comparação? São um preconceito pode explicar certas atitudes. Temos é muito trabalho pela frente, com o crioulo e com o português de Cabo Verde, que também precisa de ser padronizado”. Isto porque, segundo o investigador, não se trata aqui de uma guerra português contra crioulo, mas sim português e crioulo. Argumento?

“Façamos uma experiência de pôr alguém a escrever em crioulo ou português nas redes sociais. Aquele que escrever em português tem 245 milhões de possibilidades teóricas de ser compreendido e aquele que escrever em crioulo, 1 milhão. Todos aqueles que são bilingues do crioulo e do português tenham isso em conta sempre que estiverem em comunicação. Por outro lado, é com a imersão na língua materna que se vive plenamente. Por isso, Li & Lá, a escolha inteligente será sempre do bilinguismo.  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 795 de 22 de Fevereiro de 2017.

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Autoria:António Monteiro,26 fev 2017 6:52

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  27 fev 2017 8:09

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