Dados do Relatório Anual sobre a Situação da Justiça, do Ministério Público, referentes a 2015/2016, trouxeram a informação de que 6.134 crianças cabo-verdianas não têm o nome do pai. Esta ausência de registo paterno quase sempre aponta para famílias monoparentais, e de mães solteiras, que constituem a maioria no país.
Por outro lado, de acordo com o artigo Oportunidades Económicas e Redução da Pobreza - “A Feminização da Pobreza em Cabo Verde”, da autoria da técnica do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG), Damaris Lopes da Silva, relatórios internacionais produzidos em anos recentes apontam para a feminização da pobreza em Cabo Verde.
Um relatório de 2015 do Banco Africano de Desenvolvimento, por exemplo, atesta que o arquipélago está sim bem encaminhado no que se refere às questões de género (posicionando-se em 9º lugar num ranking relativo á performance dos países nestas questões) e no entanto o mesmo documento chama a atenção para “deficiências importantes no referente a oportunidades económicas, sendo esta a dimensão que menos se tem observado avanços em Cabo Verde”.
Na mesma linha, informações do “Global Gender Report 2015” do Fórum Económico Mundial, mostram Cabo Verde numa boa posição no Indicador Global sobre Igualdade de Género (lugar 50 entre 145 países cotados). E no entanto, também aí o quadro no referente a oportunidades económicas para mulheres é negativo, com o país a cair para o posto 115 dentre os mesmo 145 países avaliados.
O mesmo relatório lembra ainda os dados do Instituto Nacional de Estatísticas que mostram uma evolução positiva no país referente à diminuição da pobreza. Conforme as estatísticas do INE, a população vivendo abaixo do limiar da pobreza diminuiu, passando de 49% em 1990 para 26.6% em 2007. Todavia, são ainda as mulheres as mais atingidas com os números a apontarem um alargamento do fosso entre o sexo masculino e feminino. Das 111.219 mil pessoas pobres, 66.015 mil eram mulheres (56,3%) e 51.204 homens (43,7%).
Dados mais recentes [III Inquérito às Despesas e Receitas Familiares do INE, referente ao período entre 2014-2015] apontam que os valores da pobreza diminuíram no país, mas Santiago continua a ser a ilha com maior número de pobres e as mulheres continuam a ser as mais atingidas (53%).
O concelho de Santa Cruz, onde se localiza a Casa de Acolhimento Manuela Irgher, é um dos que regista maior taxa de desemprego no país, sendo que o desemprego em Cabo Verde afecta maioritariamente os jovens, mas fundamentalmente a mulheres jovens em idade reprodutiva. E são estas as características das internas da Casa Manuela Irgher.
Estas jovens mulheres foram resgatadas de situações de extrema dificuldades sócio-familiares, após o diagnóstico efectuado pelas técnicas da Casa. Estas fazem todo um trabalho de campo, efectuando visitas às comunidades locais, realizando inquéritos às famílias e constatando in loco as suas condições de vida até seleccionarem aquelas que precisam ser encaminhadas ao centro.
Na Casa, após um primeiro momento de estabilização afectiva e emocional, o foco é no futuro. Todas as internas beneficiam de formações pontuais e informais – como as ministradas pelos voluntários estrangeiros que visitam periodicamente o centro – mas também são canalizadas para a formação profissional, sendo o Centro de Formação Profissional do município um parceiro institucional.
Maria Soares, a Tia Maria, elenca satisfeita as várias histórias de sucesso das mães que se formaram e são hoje cabeleireira, enfermeira, professora, entre outras, e que hoje garantem agora os sustentos das suas famílias.
“Quando tiramos uma mãe da situação de risco, estamos a evitar que a sua situação piore e que ela seja atingida por outros males”, diz.
A Casa tem também recebido pontualmente mulheres vítimas de VBG. Uma situação que a coordenadora classifica de “mais delicada”, já que as técnicas da Casa ainda não têm formação especifica na área.
O perfil destas vítimas de violência doméstica é quase sempre de mulheres com nível de escolaridade básica e cujos filhos não têm o nome do pai.
“Procuramos ajudar no que podemos. Concedemos um microcrédito, por exemplo, para permitir a estas mulheres conseguirem o seu próprio rendimento”.
É um trabalho contínuo, de empoderamento económico mas também de mudanças comportamentais, onde a saúde reprodutiva e o planeamento familiar também entram. Daí o protocolo assinado com a VerdeFam, que vai passar a trabalhar com a instituição.
Há também um trabalho de intervenção junto à família e sensibilização do pai para o registo da sua criança.
“Temos notado que quando a mãe e as suas crianças são acolhidas na Casa, geralmente o pai se aproxima. Aproveitamos então para fazer a sensibilização e quase sempre têm aceitado registar os filhos, e há também casos de casais que se reconciliam e voltam a viver juntos e estão bem”.
E continua: “Ver uma vida a mudar, ver pessoas ultrapassar o desespero, é uma satisfação para todas nós que trabalhamos aqui”, reitera a nossa entrevistada.
Atendendo ao sucesso que vêm registando nesses nove anos de trabalho e considerando as 66.015 mil mulheres afectadas pela pobreza no país e o número de crianças sem o nome e o amparo paterno, a primeira-dama Lígia Fonseca, na visita que efectuou ao espaço no início deste mês, deixou o repto: que a casa de acolhimento seja replicada em todas as ilhas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 798 de 15 de Março de 2017.