Patrimónios da Humanidade querem falar a uma só voz

PorJorge Montezinho,17 jun 2017 6:00

Sítios Património da Humanidade e desenvolvimento sustentável, os laços que se estabelecem com as comunidades, os desafios e as oportunidades que enfrentam, os constrangimentos que os afectam. Todos estes temas estiveram em cima da mesa do Encontro Internacional dos Patrimónios Mundiais da UNESCO – onde Cabo Verde esteve representado pela Cidade Velha – que decorreu de 8 a 10 deste mês em Lamego e Vila Real, no Norte de Portugal.

“Foi um encontro importante porque permitiu avaliar os diferentes passos em que esses projectos são materializados, seguindo os exemplos de boas e más práticas”, resumiu ao Expresso das Ilhas Jair Fernandes, da ONG Sustentar e antigo Curador da Cidade Velha, que esteve em Portugal para falar do sítio cabo-verdiano com o tema: “O Desenvolvimento Sustentável – o caso da Cidade Velha”, durante o painel dedicado à Sociedade, Educação e Património.

Este encontro, promovido pela Douro Generation e pela Rede de Aldeias Vinhateiras do Douro, reuniu representantes dos patrimónios classificados pela UNESCO, entidades e cidadãos da comunidade científica, empresarial e social, que discutiram e contribuíram com propostas e projectos, tendo sempre como objectivo a cooperação internacional para a preservação, valorização e promoção dos patrimónios mundiais, assim como o contributo destes para o desenvolvimento das regiões, povos e nações.

Uma das conclusões a que se chegou, expressa na declaração final, foi o interesse comum em estruturar, de forma permanente, uma rede regular de contactos que permita criar uma plataforma para troca de experiências sobre o trabalho desenvolvido na valorização dos respectivos patrimónios mundiais, na dupla dimensão da protecção dos bens e da respectiva utilização como factor de promoção de desenvolvimento económico e social das regiões e das populações onde estão inseridos.

O documento final, que ainda será assinado pelos participantes, que representaram vários sítios património da humanidade tanto da Europa, como da América do Sul e de África (além da Cidade Velha esteve também representada a Ilha de Moçambique), salienta a importância de se definirem, através de protocolos específicos, acções e programas de cooperação que permitam potenciar um melhor conhecimento mútuo das experiências, das lições aprendidas na gestão dos vários patrimónios, destacando as melhores práticas e estabelecendo modelos adequados à sua divulgação.

“Independentemente das latitudes”, sublinha Jair Fernandes, “há realidades com que somos confrontados e são idênticas para todos esses sítios. No caso particular da Cidade Velha, o impacto sobre as populações do crescimento do número de visitantes é o mesmo problema enfrentado pela Ilha de Moçambique, ou pelo Douro Vinhateiro. É importante ver a forma usada pelos outros para ultrapassar esses constrangimentos, daí que o trabalho em rede permitirá driblar alguns problemas que podem surgir”.

Ainda segundo a organização, torna-se igualmente importante trabalhar, de forma articulada, para conseguir um aproveitamento eficaz dos instrumentos de natureza internacional disponíveis para apoio e valorização dos sítios reconhecidos como património mundial. Importante será definir possíveis modelos de acção articulada junto das estruturas da UNESCO, para melhor contribuir para o trabalho desenvolvido pela organização e pelas respectivas comissões nacionais.

Ou seja, os sítios património da humanidade querem juntar-se para terem uma voz mais forte junto da UNESCO. “Tem-se feito um trabalho extremamente interessante, desde 2006, que é a constituição do bloco lusófono, de forma a poder influenciar o Centro Património Mundial e o próprio comité. Já tivemos países lusófonos, mais recentemente Angola, no comité de 20 países que têm sob a sua alçada a discussão dos bens que podem ser património mundial. Há bem pouco tempo saiu do encontro dos ministros da Cultura da CPLP a declaração do Rio, que tem como objectivo a criação do observatório para o património cultural. Isso obriga a esses estados – da CPLP – a posicionarem-se, porque infelizmente é um lobby dominado neste momento pelos anglófonos e francófonos. Se a CPLP, tendo em conta a dimensão territorial e populacional dos falantes de português no mundo, não se posicionar, infelizmente continuaremos a ter, em termos de África, somente dois sítios inscritos, que é a Cidade Velha e a Ilha de Moçambique”, diz Jair Fernandes.

Assim que o acordo for assinado, e no prazo de um ano após essa subscrição, começará o trabalho de criar condições para pôr em funcionamento um grupo de trabalho para o estabelecimento de uma plataforma comum de ‘trading’ de apoio aos agentes económicos das regiões, com o envolvimento de um elemento ou equipa por sítio/região/país, bem como a definição dos produtos e serviços de cada região passíveis de promoção comum. O objectivo final desejável é a criação de uma plataforma comum de gestão e comércio ‘online’ e um programa de promoção.

Há todo um contexto por trás desta linha programática. Desde o desenvolvimento sustentável aproveitando as potencialidades regionais, até à mudança global de paradigma do turismo, que tem evoluído do sol, praia e mar para a procura de experiências. Dentro desta alteração surgem alguns desafios, sendo os principais a apropriação dos valores, o aproximar as áreas protegidas dos cidadãos e dos visitantes, a partilha de benefícios e os desafios de conservação.

Por isso mesmo, existe esta necessidade de desenvolver uma matriz comum de boas práticas para a gestão dos bens reconhecidos como património mundial e das regiões onde se inserem com o objectivo último da certificação dos destinos. As metas temporais? Três anos para a fixação da respectiva certificação.

Há mais objectivos saídos deste encontro de três dias, que esteve inserido numa iniciativa mais vasta, que decorreu durante toda a semana, e que teve como contexto a Agenda 2030 e os objectivos do desenvolvimento sustentável. Entre eles, desenvolver um programa educativo, cultural e ambiental comum, que percorra a rede de sítios subscritores, proporcionando o intercâmbio e estimulando a participação dos actores socioculturais de cada região. Espera-se que em dois anos se consiga o envolvimento das comunidades e a definição final do programa e da agenda. Ainda a instalação de uma plataforma comum de informação, com suportes técnicos adequados, para projectar em conjunto os sítios subscritores e as respectivas regiões, aumentando a notoriedade dos seus recursos endógenos, dos seus produtos culturais, com especial ênfase nas áreas do património, economia, cultura e ambiente, igualmente reforçando a sua atractividade turística.

Certo é que a conservação do património cultural e natural, e do seu valor histórico e ambiental, deve ser encarada como um desígnio colectivo, e que a classificação de sítios classificados como património mundial constitui uma oportunidade para promover o desenvolvimento socioeconómico das respectivas regiões, como um factor potenciador de riqueza para as populações locais.

Daí a importância da troca de experiências sobre a gestão dos patrimónios mundiais, com destaque para as melhores práticas, procurando assim lições decorrentes das acções desenvolvidas e procurando tornar mutuamente úteis todas as informações disponíveis, nomeadamente com vista a potenciar a sua atractividade.

“Há oito anos, a esta parte e a questão que se coloca é: quais os ganhos efectivos que a inscrição na lista património mundial trouxe?”, questiona Jair Fernandes. “Por isso, quantos mais fóruns desta natureza houver melhor, porque trazem consigo a questão se vale a pena ou não esse título de património mundial. E não é só em Cabo Verde que esta questão tem sido levantada”.

No entanto, mesmo com todas as dificuldades, o antigo Curador da Cidade Velha acredita que a localidade ainda vai a tempo de conseguir usufruir do título de património da humanidade. “Acredito que sim. A integração nestas redes é importante para podermos aprender, para podermos partilhar, mas sobretudo para angariar simpatizantes por esta causa que é a Cidade Velha. Embora os efeitos sejam ainda insipientes, creio que vamos a tempo, porque cada vez mais tem-se notado que as políticas públicas começam a ter uma certa atenção pelo património. No caso da Cidade Velha, aliando esses factos ao turismo – é o sítio mais visitado de Santiago – isso requer dos poderes públicos – central e local – uma atenção redobrada. Mas a própria comunidade tem de ter uma nova postura, porque têm de ser participantes na gestão do bem classificado”.

 

O panorama actual da Cidade Velha

Para mostrar o impacto da classificação de Património da Humanidade na Ribeira Grande de Santiago, Ana Samira Silva, do Instituto do Património Cultural cabo-verdiano, levou a Vila Real as conclusões de um estudo que permitiu medir os efeitos que o título está a ter sobre o território e sobre a vida das pessoas que residem no lugar.

Reconhecida em 2009 pela UNESCO como património mundial da humanidade, a Cidade Velha é hoje uma micro cidade de 1200 habitantes, numa dimensão de 200 hectares e onde 30 por cento da população tem menos de 15 anos. “Com alguns problemas, principalmente referentes à escolarização que é extremamente baixa e a taxa de alcoolismo que é alta”, como sublinhou Samira Silva.

Até 2011 os principais hóspedes nos estabelecimentos hoteleiros eram os nacionais, situação que se inverte a partir de 2012, com uma presença, considerável, principalmente de europeus. Analisando por perfis, os visitantes nacionais têm entre 25 e 30 anos, com formação superior e o motivo principal que os leva à Cidade Velha é o lazer. A avaliação que fizeram da cidade divide-se, consideram positivo o clima, o ambiente e arquitectura; mas dão nota negativa à sinalização, ao atendimento e ao pequeno comércio. O produto é considerado pouco diversificado, apesar de ter boa qualidade e bom preço. O gasto médio por pessoa é de 2.000$00, essencialmente na alimentação (são pessoas que vão almoçar ou jantar em família à Cidade Velha). Curiosamente, os visitantes nacionais mostraram-se dispostos a gastar mais se houvesse alternativas nas áreas recreativas.

Já os visitantes internacionais têm entre os 25 e os 64 anos, formação superior e o principal motivo da visita é a cultura. A avaliação do destino também varia, consideram positivo o clima, o ambiente e a arquitectura; e negativo a sinalização, a informação turística e o atendimento. Tal como os nacionais, quem vem de fora também considera o produto pouco diversificado. Gastam, em médio, entre 2.000$00 e 5.000$00, porque compram lembranças nas pequenas unidades de artesanato existentes.

Actualmente, a Cidade Velha recebe cerca de 50 mil visitantes por ano, mas o tempo médio de permanência é de 3 horas e a taxa de ocupação dos estabelecimentos hoteleiros é de 10 por cento. Em relação ao turismo de cruzeiro (Em 2008 Cabo Verde recebia 10 navios, cerca de 800 passageiros, actualmente recebe 52 navios e um total de 300 mil passageiros), como a Cidade Velha está próxima do porto da Praia permite que os excursionistas se dirijam ao sítio património da humanidade de transporte público, no entanto, estes turistas praticamente não consomem e as suas visitas não representam uma mais-valia.

“Foi feito um levantamento exaustivo junto da população, turistas e operadores turísticos e empreendedores locais e descobrimos as deficiências que a cidade tem. O principal potencial turístico são os monumentos e as ruínas, a arqueologia terrestre e subaquática, o porto, o mar e a baía podem ser aproveitados para actividades recreativas, mas também o vale da Ribeira Grande para o desenvolvimento de outros segmentos do turismo, mesmo o científico uma vez que a Cidade Velha foi um importante laboratório de introdução de espécies animais e vegetais em Cabo Verde”, resumiu Samira Silva.

“O turismo centra-se essencialmente na oferta patrimonial e cultural, o contributo do sector para o desenvolvimento da localidade não é ainda muito expressivo devido às fragilidades, da própria população e a falta de condições para acolher os visitantes. O título de património da humanidade contribuiu para o aumento do número de visitantes e representa uma oportunidade para a promoção da cidade, mas também elevou em demasia as expectativas tanto do poder nacional e municipal como também da população que espera mais acções da UNESCO para preservar o património e para melhorar as suas condições de vida. A diversificação da oferta mostra-se um imperativo para aumentar o tempo de permanência, mas também para envolver a comunidade neste processo, através da oferta de artesanato, por exemplo. Faltam programas para aumentar a sensibilização da população pelo património mundial e é preciso melhorar o saneamento, apontado como uma das principais fragilidades do destino”, sublinhou ainda actual curadora da Cidade Velha.

A Cidade Velha tem hoje 15 unidades de alojamento, 120 camas, sete estabelecimentos que se dedicam exclusivamente a prestar serviço na área de restauração e pequenas estruturas básicas de apoio à actividade turística. Como está próxima da Praia, isso constitui um entrave ao seu desenvolvimento ou à sua afirmação enquanto parte da oferta, porque muitos dos serviços são consumidos na capital e as pessoas, como foi referido, passam um tempo muito reduzido na Cidade Velha. O sector do turismo emprega cerca de 120 pessoas nas áreas da hotelaria e restauração, mas apenas 27 desses empregos são de membros da comunidade.

“O estudo permitiu também ouvir os habitantes sobre o desenvolvimento do turismo: consideram que o turismo tem contribuído para a promoção da Cidade Velha, evidenciam uma maior valorização do património cultural, melhoria do sítio, mas avaliam que o impacto positivo na sua qualidade de vida não se registaram. E não houve aumento de oportunidades para os jovens”, concluiu Samira Silva.

No fundo, a curadora da Cidade Velha tocou num ponto que foi abordado por outros conferencistas que falaram sobre o que aconteceu em diversos sítios património da humanidade: melhoraram-se as infra-estruturas, mas não se trabalhou com as populações. Se a paisagem é parte da identidade colectiva e primeira impressão dos visitantes, também é certo que a cultura é um instrumento para o relacionamento entre as pessoas. A criação de valor, além de toda uma cadeia (selos de qualidade, vendas, hotéis, restaurantes, etc.), passa também, e muito, pela comunicação. Como sintetizou um dos oradores: se não dizemos o que temos ou o que nos diferencia, não existimos.  

 

*O Expresso das Ilhas viajou a convite da Douro Generation

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 811 de 14 de Junho de 2017.

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Autoria:Jorge Montezinho,17 jun 2017 6:00

Editado porRendy Santos  em  16 jun 2017 16:06

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