Na revisão de 1999 houve uma melhoria nos poderes do PR, mas fala-se em aumentar ainda mais esses poderes. Como estamos em tempo de mais uma revisão ordinária, acha razoável uma proposta neste sentido?
Sobre o nosso sistema de governo, há várias leituras. Há pessoas que pensam que o nosso sistema de governo é parlamentarismo mitigado e há pessoas que defendem que nós já estamos num sistema semi-presidencialista fraco. Portanto, ou parlamentarismo mitigado, ou semi-presidencialismo. Eu entendo que com a revisão de 1999, com a eliminação desse parecer obrigatório do Conselho da República como condição para o presidente dissolver o parlamento, portanto, a partir do momento em que se libertou o presidente da república desse condicionamento, nós assistimos a uma mudança no sistema de governo que passou a pender mais para o sistema semi-presidencialista, mas ainda um semi-presidencialismo fraco. Eu não defendo o aumento dos poderes do presidente da república. Aliás, a nossa experiência constitucional tem estado a provar isso: até agora o presidente da república não teve necessidade de outros poderes. E não se justifica a existência de outros poderes. As pessoas às vezes tentam dizer que, pelo facto de ele ser eleito por sufrágio universal, o PR devia ter mais poderes, ou então se não tem mais poderes, não se justifica que seja eleito por sufrágio universal. Não, eu estou de acordo com o nosso sistema como está e não defendo o alargamento dos poderes do PR. Ele tem os poderes que lhe permitem exercer com acerto, aliás a nossa experiência recente demonstra isso, a sua função de árbitro do sistema.
A que experiência recente se refere?
Veja, temos um presidente da república que tem a função de fiscalização política. Portanto, o presidente da república pode exercer o veto político, ainda que esse veto possa ser superado por uma nova votação da Assembleia Nacional por maioria absoluta. Portanto, há aí um equilíbrio, nenhum órgão está a ter um peso excessivo, um predomínio excessivo em relação a outro órgão, porque os dois órgãos provêem de sufrágio universal. A origem da legitimidade do PR é o sufrágio universal, tal como a origem da legitimidade da Assembleia Nacional. Em princípio, nenhum desses órgãos devem prevalecer de forma desproporcionada em relação ao outro. E por isso temos tido esse equilíbrio. O Presidente da República tem uma função muito útil em Cabo Verde e acho que os cabo-verdianos valorizam a função presidencial e o parlamento também tem essa função muito útil. A nossa experiência recente, quando tivemos aquilo a que se chamou co-habitação, demonstrou que o PR tem os poderes necessários para fazer a arbitragem que a Constituição coloca nas suas mãos.
Para o cumprimento da Constituição falta também a oficialização do crioulo. Ou já está oficializado?
O crioulo já é língua nacional a nível da Constituição da República. Agora, acho que não nos devemos precipitar nessas decisões. Vamos dar tempo ao tempo, observar um determinado processo até que, de forma natural, o crioulo acabe por se impor. Eu pessoalmente defendo que nós temos outras prioridades. Neste momento vejo com bons olhos o alargamento do ensino a outras línguas para tornar o nosso país mais competitivo. É certo que, para além da questão identitária, como defendem os especialistas, o crioulo pode facilitar a aprendizagem, etc., etc. Neste momento, enquanto cidadão, eu defendo um maior investimento nas línguas que possam tornar o nosso país mais competitivo e preparar os nossos quadros para acederem aos mercados de trabalho mais exigentes em relação às línguas. O crioulo não nos ajuda a resolver o problema identitário, porque nós não temos um problema identitário com a nossa língua. Eu aqui em casa falo crioulo com os meus filhos e grande parte dos quadros da administração pública cabo-verdiana têm o seu valor e não deixaram de ter valor pelo facto de terem utilizado o crioulo e de terem aprendido em português. Portanto, não vamos emprestar importância desmesurada à questão linguística. Neste momento, a prioridade é alargar o ensino das outras línguas que possam tornar mais competitivo o nosso país e os nossos recursos humanos mais preparados para aceder ao mercado de trabalho.
Portanto falta cumprir a oficialização do crioulo.
Falta dar passos mais avançados nesse sentido. Pessoalmente já lhe disse, para mim não é uma prioridade. Agora, eu entendo que não devemos ter uma atitude de estar sempre a mexer na Constituição, mas também não devemos ter uma atitude dogmática de não mexer na Constituição. Eu acho que há aspectos que devem ser revisitados na Constituição e se me permite vou fazer uma alusão a esses aspectos. Por exemplo, nós temos uma norma que diz que os actos jurídicos das organizações supranacionais de que Cabo Verde faz parte, por exemplo a CEDEAO, esses actos jurídicos entram em vigor directamente em Cabo Verde. Eu penso que deveríamos revisitar essa disposição, porque não me parece que já tenhamos chegado a um nível de integração regional por forma a permitir que esses actos jurídicos entrem directamente em vigor na ordem jurídica cabo-verdiana, dispensando a ratificação, etc, etc. É o artigo 12 nº3 da Constituição. Essa norma foi transposta praticamente da Constituição Portuguesa para a nossa Constituição, mas Portugal está inserido num espaço europeu em que prevalece a democracia, a liberdade, com governos limitados pela Constituição, etc. No nosso espaço não é assim. Imagine que pode ser adoptado um determinado acto jurídico e às vezes nós temos até dificuldades para estarmos presentes aí. Entretanto, esse acto jurídico passa a vincular logo Cabo Verde. Portanto, eu acho que deveríamos revisitar essa questão e ver se não deixaríamos tudo isso só para os tratados. Há a questão que eu já tinha suscitado relativamente à substituição interina do PR quando sai para o estrangeiro. Não sei se deveremos manter essa norma porque o PR, mesmo no estrangeiro, está em funções. Não faz sentido que seja substituído interinamente. Essa norma também deveria ser revisitada: são dos ajustes e dos aprimoramentos que devemos fazer na nossa Constituição.
Num artigo seu fala do paradoxo da substituição interina.
É que quando o PR está substituído interinamente não exerce funções. Portanto, o paradoxo está exactamente nisto: o PR sai em missão de Cabo Verde para representar o Estado de Cabo Verde, mas em saindo fica substituído no exercício das suas funções. Isto é, ele está no exercício das suas funções, mas a Constituição diz que ele está substituído interinamente. O paradoxo está exactamente nisto: o PR sai em missão, e só porque está em missão é que saiu, mas está substituído. Em princípio, estaria sem poderes para poder representar o Estado, se está substituído interinamente. O mesmo problema se coloca também hoje, se o presidente que é recandidato ao cargo se deve ser substituído interinamente. A intenção é nobre, é para evitar que ele tire partido do cargo, mas hoje praticamente isso já não se justifica. Há uma sugestão que eu gostaria de fazer: talvez não fosse desavisado retomarmos uma ideia original da Constituição de 92 – o Conselho para Assuntos Regionais. Havia esse conselho na versão originária da Constituição. É evidente que a sua composição e as suas competências não dignificavam muito o órgão e acabou por ser suprimido na revisão constitucional de 1999. Entretanto, defendo que devemos ter um espaço em que as ilhas possam ser ouvidas. Eu não iria tanto para um parlamento bicameral, mas acho que como órgão auxiliar do poder político devíamos ter um Conselho das Ilhas, em que as ilhas pudessem fazer ouvir a sua voz, na base da igualdade – por ilha. Cada ilha teria um ou dois representantes. Isso seria um complemento importante no exercício do poder político e daria voz efectiva às ilhas.
Quais as grandes virtudes da Constituição de 92?
Há uma coisa que às vezes não é muito sublinhada. Falamos da Constituição de 92, mas ignoramos um pouco o processo que conduziu à Constituição de 92. Quando dizemos que a Constituição de 92, na sua essência, não carece ser alterada, é porque a Constituição de 92 acabou por absorver um consenso da sociedade cabo-verdiana, um consenso entre as forças políticas. Porque a verdadeira alteração constitucional em Cabo Verde operou-se quando o nascente Movimento para a Democracia (oposição) e o PAICV (governo) negociaram essa transição exemplar para a democracia. Portanto, com uma transição democrática exemplar, só poderíamos chegar a uma Constituição como esta, com várias virtudes – uma Constituição generosa em matéria de direitos fundamentais, com um catálogo de direitos invejável, uma Constituição que concebe um sistema de governo que tem funcionado sem sobressaltos, os órgãos de soberania têm cumprido os seus mandatos, uma Constituição que instituiu um poder local democrático, uma Constituição que impõe uma descentralização democrática da administração pública e do Estado. Portanto, de um modo geral, os aspectos que acabei de citar sintetizam as virtudes da nossa Constituição. Mesmo aquilo a que se chamou no início de querela constitucional e que hoje é apenas uma referência histórica, não tinha nada a ver com os aspectos essenciais da Constituição. A Constituição, apesar dessa ideia da querela inicial, ela é consensual. Daí, de facto, a sua virtude. Reflecte verdadeiramente o largo consenso das forças políticas cabo-verdianas. Porquê? Porque foi o culminar de um processo de transição para a democracia exemplar. A nossa Constituição é uma Constituição moderna, é uma Constituição que alimenta expectativas sobretudo em matérias de realização dos direitos como se fossemos um país dos mais desenvolvidos do mundo. Como já disse, mesmo que tenhamos a nobre intenção de pôr todos os direitos na Constituição, há, contudo, direitos cuja realização depende da base económica e isso leva à frustração. As pessoas podem dizer eu tenho direito à habitação, eu tenho direito ao trabalho, a Constituição consagra-me todos esses direitos, mas não estou a ver esses direitos realizados. Então é necessária uma função pedagógica para dizer às pessoas: esses são direitos cuja realização progressiva vai depender do crescimento económico, da equidade na repartição do rendimento nacional, etc, etc.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017.