Benfeito Ramos: “Temos uma Constituição que honra a nação cabo-verdiana”

PorAntónio Monteiro,1 out 2017 6:00

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A Constituição de 1992, na sua essência, não carece ser alterada, porque acabou por absorver um consenso da sociedade cabo-verdiana e das forças políticas. Trata-se de uma Constituição generosa em matéria de direitos fundamentais e que concebe um sistema de governo que tem funcionado sem sobressaltos. Nestes termos sintetiza Benfeito Ramos as virtudes da Constituição entrada em vigor a 25 de Setembro de 1992 e que completou justamente no dia 25, 25 anos de vigência. O ex-vice presidente do Tribunal de Justiça da CEDEAO e actual Juiz-Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, alerta, entretanto, que não se deve cair no extremo oposto de se assumir uma atitude dogmática de não mexer na Constituição. Na opinião do magistrado há aspectos que devem ser revisitados na Constituição, como nos dá conta nesta entrevista.

 

Vários países do mundo registam com solenidade o dia da adopção da Constituição, nalguns casos até como feriado nacional. Seria uma ideia razoável para Cabo Verde em relação à Constituição de 1992?

O dia da adopção, da aprovação ou da entrada em vigor de uma Constituição, particularmente de uma Constituição com o impacto que tem tido a Constituição de 1992 em Cabo Verde é sempre um momento de se assinalar: com feriado, sem feriado, mas deve haver sempre uma sequência de actos públicos que devem marcar a efeméride. Assinalar a data com um feriado, depende também, digamos, da gestão que cada Estado faz na designação dos feriados nacionais. Do que não pode restar a menor dúvida é que a entrada em vigor de uma nova Constituição é uma efeméride que deve ser assinalada pela nação inteira. Portanto, eu subscrevo todo esse esforço para não deixar passar despercebido o aniversário da Constituição da República.

 

Como tem funcionado a Constituição da República nos seus 25 anos de vigência?

A leitura que eu faço da Constituição de 1992 é extremamente positiva. Temos uma Constituição que honra a nação cabo-verdiana. Com a Constituição de 1992 o povo pode exercer a democracia, pode escolher em liberdade os seus legítimos representantes, quer para os órgãos de soberania do Estado, quer para os órgãos do poder local, para as autarquias através de eleições livres e justas, por sufrágio universal directo e secreto e com competição política. Portanto, há o exercício do poder democrático pelo povo. A Constituição consagrou também um catálogo generoso de direitos fundamentais dos cidadãos. Contém tribunais que devem tutelar esses direitos. Portanto, há mecanismos de defesa dos cidadãos em Cabo Verde e funcionam. Os órgãos de soberania têm funcionado na normalidade. Temos assistido à alternância democrática no nosso país com toda a normalidade. Penso que, de facto, a Constituição tem funcionado e corresponde às expectativas dos cidadãos cabo-verdianos. Há um outro aspecto que eu gostaria de sublinhar em relação à Constituição de 92: ela é amiga dos direitos do homem. É uma Constituição que assegura – mesmo para estrangeiros em trânsito pelo território nacional – a protecção integral dos direitos do homem. Uma outra dimensão importante da nossa Constituição é que ela elege os direitos do homem como critério a se ter em conta nas relações internacionais do Estado de Cabo Verde. Por isso, os cabo-verdianos têm razão para se sentirem orgulhosos da sua Constituição. Mas como obra humana, a Constituição padece de imperfeições e a própria progressão do tempo vai demandando ajustamentos. Por isso, eu pessoalmente, acho que devemos ter uma atitude pragmática em relação à Constituição. Isto é, nos seus aspectos essenciais a Constituição não demanda uma revisão, muito menos uma revisão imperiosa; mas demanda ajustes, aprimoramentos para que possa adaptar-se cada vez mais à nossa realidade.

 

Todas as virtudes da Constituição de 92 que acabou de enumerar não passariam de letra morta se não tivesse havido um processo da sua interiorização tanto pelas instituições da república, como pelos cidadãos. Como tem decorrido esse processo?

Eu acho que hoje é notório que se desenvolveu em Cabo Verde uma cultura da Constituição. Essa cultura vai impregnando não só as instituições do Estado, mas a própria sociedade civil. Hoje, em Cabo Verde, mesmo um cidadão iletrado tem a percepção, tem a intuição de que existe uma lei fundamental que se impõe a todos. Isto é, ainda falta-nos fazer muita coisa para atingirmos o nível desejável, mas a Constituição conseguiu impor-se aos olhos dos cidadãos como uma referência do direito, como uma referência da justiça. Acho que isso é muito bom. Hoje, em Cabo Verde, a referência que temos para sabermos do justo ou do injusto, do certo ou do errado, do que está em conformidade com aquilo que são as normas fundamentais, é a nossa Constituição. E isso não somente ao nível das instituições, mas também a nível do cidadão comum e a nível da sociedade civil. Hoje quase todo o mundo faz referência à Constituição. Portanto, desenvolveu-se e está a se consolidar entre nós uma cultura da Constituição, o que é muito positivo para a nossa sociedade.

 

Na última revisão de Fevereiro de 2010 foram aprovadas 91 alterações à Constituição. Foi uma boa revisão?

A revisão de 2010 teve alterações de fundo e teve alterações mais de forma. Por exemplo, em termos de alterações de forma, mais para dar satisfação ao princípio da igualdade do género, deixou-se praticamente de falar dos direitos do homem e passou-se a falar mais nos direitos humanos. Mas teve alterações de fundo. Por exemplo, a questão da extradição de cidadãos nacionais. Nós preparamos o quadro institucional e constitucional para a adesão do nosso país ao Tratado de Roma; houve outras alterações importantes na área da justiça. Definiu-se praticamente um quadro que vai sendo testado neste momento. De um modo geral, diria que a revisão de 2010 teve um impacto positivo, embora ainda algumas das suas soluções estejam sujeitas a um teste. Portanto, não podemos extrair, neste momento, conclusões definitivas em relação às grandes opções, particularmente na área da justiça. Aí eu tenho observações a fazer, porque acho que há questões que devem ser revisitadas. De um modo geral, a revisão de 2010 foi um passo importante na consolidação da nossa cultura constitucional em Cabo Verde.

 

Disse que há questões que devem ser revisitadas. Quais delas?

Não que eu esteja a pedir uma revisão da Constituição. Aliás, a minha postura é de que nós não devemos estar sempre a mexer na Constituição. Devemos dar sempre oportunidade de as soluções incorporadas na Constituição serem testadas. Isso demanda algum tempo de vigência, de aplicação. Mas fiquei com a sensação de que a Constituição foi demasiado regulamentadora em matéria da justiça e introduziu alguma rigidez desnecessária, a ponto de dificultar a própria gestão das magistraturas pelos conselhos. Eu não estou a pedir uma revisão da Constituição neste momento, mas eu submeteria à consideração das pessoas se o modelo constitucional que nós temos para a justiça, será o melhor; se devemos manter as duas magistraturas separadas e autonomizadas. Claro que isso tem a ver com o problema dos conselhos. Em Cabo Verde temos dois conselhos: um para o Ministério Público, outro para a Magistratura Judicial. Num país pequeno como Cabo Verde será essa solução a mais ajustada para a nossa realidade? Ou teríamos apenas um único Conselho Superior Judiciário como chegou a ser aventado numa proposta do MpD aquando da primeira revisão de 1999? Ainda é cedo para avançarmos nesse sentido, mas não podemos deixar de continuar a ponderar permanentemente as soluções que vamos introduzindo. Não para precipitar revisões, mas para aprimorar a nossa Constituição e prepará-la para dar respostas às necessidades efectivas que temos tido na área da justiça. Eu penso que poderíamos ponderar um figurino diferente para a gestão da justiça na sua globalidade. As pessoas não estão insatisfeitas com os tribunais, nem com o Ministério Público, nem com a Ordem dos Advogados – a insatisfação é com a justiça no seu todo. Portanto, tínhamos que ter a capacidade de gerir a justiça no seu todo para evitar essa compartimentação que nós temos neste momento em Cabo Verde. Isto é apenas uma pista para reflexão e não uma demanda de revisão. É uma ideia para, numa próxima oportunidade, revisitarmos esses aspectos.

 

O que falta cumprir na Constituição?

Como eu disse, há um reconhecimento de todos de que, no que toca aos princípios estruturantes, ao funcionamento dos órgãos de soberania, aos direitos fundamentais, a Constituição tem-se provado como eficaz, como algo que está a corresponder às expectativas da nossa comunidade. Mas uma Constituição, sobretudo uma Constituição moderna, desperta também expectativas, nomeadamente no que toca aos direitos económicos, sociais e culturais. Para a realização desses direitos é necessário uma base económica, portanto um crescimento económico que possa permitir que o Estado possa realizar essas prestações. Nesse sentido, podemos dizer que há direitos que estão previstos na Constituição que só poderão ser realizados progressivamente consoante o país for crescendo economicamente.

 

A revisão constitucional de 2010 reafirmou a política de paz de Cabo Verde, particularmente ao não mexer no “tabu” da proibição de bases militares no território nacional. Entretanto, o governo assinou, esta segunda-feira, em Washington, o acordo SOFA que define o estatuto das Forças Armadas norte-americanas em território cabo-verdiano, por ocasião de exercícios militares conjuntos. Que leitura faz da assinatura desse acordo e das afirmações do Presidente da República a esse respeito?

Como não conheço os termos do acordo, nem seria de bom-tom que eu estivesse aqui a tecer comentários sobre o acordo. O que eu acho é que não deve haver temas tabus na Constituição da República. A Constituição foi aprovada por deliberação do povo de Cabo Verde através dos seus legítimos representantes, portanto os deputados, no exercício do seu poder de revisão constitucional, não poderão revisitar certas matérias, dependendo se considerarem isso do interesse do povo de Cabo Verde, sobretudo do interesse estratégico de Cabo Verde. Sem me pronunciar concretamente sobre algo que não conheço e nem ficaria bem que eu estivesse a comentar acordos do governo com países estrangeiros, mas o que eu digo é que na Constituição não deve haver temas tabus. Depende do povo de Cabo Verde, através dos seus legítimos representantes decidir se conserva, ou se altera essa norma que está na Constituição. Agora, enquanto estiver lá, deve ser respeitada. A proibição das bases militares, enquanto estiver na Constituição, deve ser respeitada. É certo que neste momento estamos na fase da assinatura, mas depois da assinatura, vai passar pelo Parlamento, onde será sujeito a um escrutínio da parte dos deputados e depois haverá um escrutínio final da parte do Sr. Presidente da República. Portanto, não se deve precipitar, nem dramatizar esse tipo de coisas, porque é normal. Nós estamos a assinar um acordo internacional, há um procedimento a ser observado até que ele entre em vigor, se for o caso.

 

O modelo constitucional cabo-verdiano tem permitido governos estáveis e conta já com duas alternâncias políticas. Tem a mesma capacidade para responder aos novos desafios que se colocam a Cabo Verde, nomeadamente nas áreas das novas tecnologias, das redes sociais e outras?

A nossa Constituição está preparada para responder aos desafios que se colocam a Cabo Verde. Referiu-se ao sistema do governo e veja como a Constituição tem permitido que haja alternância e até aquilo que se chamou co-habitação, sem crises, com toda a naturalidade e o país a funcionar na normalidade. Isso confirma o que eu tinha dito atrás: nos seus aspectos essenciais, a nossa Constituição está preparada para assegurar o funcionamento da democracia no nosso país. Também em termos dos direitos fundamentais a nossa Constituição tem instrumentos que permitem, não só o reconhecimento desses direitos, mas a tutela efectiva desses direitos, mesmo no quadro das novas tecnologias.

 

Algumas questões não encontram resposta na Constituição, nomeadamente a representação externa de Cabo Verde. Qual é a verdade constitucional nesta matéria?

Na verdade, essa é uma questão polémica e é difícil encontrar uma resposta satisfatória, porque a própria Constituição já exige a intervenção pelo menos dos três órgãos de soberania em matéria de política externa. Aliás, o exemplo que acabou de dar agora da assinatura do acordo com os Estados Unidos é paradigmático da intervenção dos três órgãos de soberania. No momento da assinatura, o governo. De facto, é o governo que tem a competência para assinar esse tipo de acordo internacional. Depois tem que passar pelo crivo do Parlamento e depois então a intervenção do Presidente da República. As coisas têm-se colocado mais entre o presidente da república e o governo. E porquê? Porque, de facto, a Constituição define o PR como representante interno e externo do Estado, mas a Constituição tem uma disposição que vem desde a sua versão originária que permite ao governo assegurar a representação do Estado nas relações internacionais. Portanto, há na Constituição disposições aparentemente conflituantes que demandam uma boa articulação, digamos, um espírito de cooperação com os interesses de Cabo Verde colocados em primeiro lugar, entre os dois órgãos de soberania: o Governo e o Presidente da República. Não há uma resposta satisfatória. O que se pode dizer é que, em princípio, todos os órgãos de soberania intervêm, mesmo no quadro das relações externas, porque o governo tem a competência de negociar os tratados internacionais, há o parlamento que tem que aprovar e há o presidente da república que tem que rectificar. Mas quanto às relações externas, sobretudo entre o governo e o presidente da república, há disposições contraditórias que podem empurrar, quando num ambiente em que não haja suficiente articulação entre os órgãos de soberania, para algum conflito, para alguma tensão. Mas é desejável que haja articulação para evitar essa tensão, porque a questão da política externa para Cabo Verde é fundamental. E independentemente do que possa dizer a Constituição, agora falo um pouco da minha experiência, no contexto africano normalmente a representação externa do Estado é feita pelo Presidente da República. De modo geral, os parceiros de Cabo Verde não vêem com bons olhos quando o Estado não se faz representar a nível do Presidente da República, portanto, a nível dos seus pares. Para eles, há uma subrepresentação e quem esteja a representar o Estado que não seja presidente da república normalmente não é tratado com aquele respeito que seria o caso se fosse presidente da república. Independentemente daquilo que possa dizer a Constituição, não podemos descorar a leitura que os nossos parceiros fazem num determinado contexto como o africano. Aí quem representa o Estado normalmente é o presidente da república. 

 

Na revisão de 1999 houve uma melhoria nos poderes do PR, mas fala-se em aumentar ainda mais esses poderes. Como estamos em tempo de mais uma revisão ordinária, acha razoável uma proposta neste sentido?

Sobre o nosso sistema de governo, há várias leituras. Há pessoas que pensam que o nosso sistema de governo é parlamentarismo mitigado e há pessoas que defendem que nós já estamos num sistema semi-presidencialista fraco. Portanto, ou parlamentarismo mitigado, ou semi-presidencialismo. Eu entendo que com a revisão de 1999, com a eliminação desse parecer obrigatório do Conselho da República como condição para o presidente dissolver o parlamento, portanto, a partir do momento em que se libertou o presidente da república desse condicionamento, nós assistimos a uma mudança no sistema de governo que passou a pender mais para o sistema semi-presidencialista, mas ainda um semi-presidencialismo fraco. Eu não defendo o aumento dos poderes do presidente da república. Aliás, a nossa experiência constitucional tem estado a provar isso: até agora o presidente da república não teve necessidade de outros poderes. E não se justifica a existência de outros poderes. As pessoas às vezes tentam dizer que, pelo facto de ele ser eleito por sufrágio universal, o PR devia ter mais poderes, ou então se não tem mais poderes, não se justifica que seja eleito por sufrágio universal. Não, eu  estou de acordo com o nosso sistema como está e não defendo o alargamento dos poderes do PR. Ele tem os poderes que lhe permitem exercer com acerto, aliás a nossa experiência recente demonstra isso, a sua função de árbitro do sistema.

 

A que experiência recente se refere?

Veja, temos um presidente da república que tem a função de fiscalização política. Portanto, o presidente da república pode exercer o veto político, ainda que esse veto possa ser superado por uma nova votação da Assembleia Nacional por maioria absoluta. Portanto, há aí um equilíbrio, nenhum órgão está a ter um peso excessivo, um predomínio excessivo em relação a outro órgão, porque os dois órgãos provêem de sufrágio universal. A origem da legitimidade do PR é o sufrágio universal, tal como a origem da legitimidade da Assembleia Nacional. Em princípio, nenhum desses órgãos devem prevalecer de forma desproporcionada em relação ao outro. E por isso temos tido esse equilíbrio. O Presidente da República tem uma função muito útil em Cabo Verde e acho que os cabo-verdianos valorizam a função presidencial e o parlamento também tem essa função muito útil. A nossa experiência recente, quando tivemos aquilo a que se chamou co-habitação, demonstrou que o PR tem os poderes necessários para fazer a arbitragem que a Constituição coloca nas suas mãos.

 

Para o cumprimento da Constituição falta também a oficialização do crioulo. Ou já está oficializado?

O crioulo já é língua nacional a nível da Constituição da República. Agora, acho que não nos devemos precipitar nessas decisões. Vamos dar tempo ao tempo, observar um determinado processo até que, de forma natural, o crioulo acabe por se impor. Eu pessoalmente defendo que nós temos outras prioridades. Neste momento vejo com bons olhos o alargamento do ensino a outras línguas para tornar o nosso país mais competitivo. É certo que, para além da questão identitária, como defendem os especialistas, o crioulo pode facilitar a aprendizagem, etc., etc. Neste momento, enquanto cidadão, eu defendo um maior investimento nas línguas que possam tornar o nosso país mais competitivo e preparar os nossos quadros para acederem aos mercados de trabalho mais exigentes em relação às línguas. O crioulo não nos ajuda a resolver o problema identitário, porque nós não temos um problema identitário com a nossa língua. Eu aqui em casa falo crioulo com os meus filhos e grande parte dos quadros da administração pública cabo-verdiana têm o seu valor e não deixaram de ter valor pelo facto de terem utilizado o crioulo e  de terem aprendido em português. Portanto, não vamos emprestar importância desmesurada à questão linguística. Neste momento, a prioridade é alargar o ensino das outras línguas que possam tornar mais competitivo o nosso país e os nossos recursos humanos mais preparados para aceder ao mercado de trabalho.

 

Portanto falta cumprir a oficialização do crioulo.

Falta dar passos mais avançados nesse sentido. Pessoalmente já lhe disse, para mim não é uma prioridade. Agora, eu entendo que não devemos ter uma atitude de estar sempre a mexer na Constituição, mas também não devemos ter uma atitude dogmática de não mexer na Constituição. Eu acho que há aspectos que devem ser revisitados na Constituição e se me permite vou fazer uma alusão a esses aspectos. Por exemplo, nós temos uma norma que diz que os actos jurídicos das organizações supranacionais de que Cabo Verde faz parte, por exemplo a CEDEAO, esses actos jurídicos entram em vigor directamente em Cabo Verde. Eu penso que deveríamos revisitar essa disposição, porque não me parece que já tenhamos chegado a um nível de integração regional por forma a permitir que esses actos jurídicos entrem directamente em vigor na ordem jurídica cabo-verdiana, dispensando a ratificação, etc, etc. É o artigo 12 nº3 da Constituição. Essa norma foi transposta praticamente da Constituição Portuguesa para a nossa Constituição, mas Portugal está inserido num espaço europeu em que prevalece a democracia, a liberdade, com governos limitados pela Constituição, etc. No nosso espaço não é assim. Imagine que pode ser adoptado um determinado acto jurídico e às vezes nós temos até dificuldades para estarmos presentes aí. Entretanto, esse acto jurídico passa a vincular logo Cabo Verde. Portanto, eu acho que deveríamos revisitar essa questão e ver se não deixaríamos tudo isso só para os tratados. Há a questão que eu já tinha suscitado relativamente à substituição interina do PR quando sai para o estrangeiro. Não sei se deveremos manter essa norma porque o PR, mesmo no estrangeiro, está em funções. Não faz sentido que seja substituído interinamente. Essa norma também deveria ser revisitada: são dos ajustes e dos aprimoramentos que devemos fazer na nossa Constituição.

 

Num artigo seu fala do paradoxo da substituição interina.

É que quando o PR está substituído interinamente não exerce funções. Portanto, o paradoxo está exactamente nisto: o PR sai em missão de Cabo Verde para representar o Estado de Cabo Verde, mas em saindo fica substituído no exercício das suas funções. Isto é, ele está no exercício das suas funções, mas a Constituição diz que ele está substituído interinamente. O paradoxo está exactamente nisto: o PR sai em missão, e só porque está em missão é que saiu, mas está substituído. Em princípio, estaria sem poderes para poder representar o Estado, se está substituído interinamente. O mesmo problema se coloca também hoje, se o presidente que é recandidato ao cargo se deve ser substituído interinamente. A intenção é nobre, é para evitar que ele tire partido do cargo, mas hoje praticamente isso já não se justifica. Há uma sugestão que eu gostaria de fazer: talvez não fosse desavisado retomarmos uma ideia original da Constituição de 92 – o Conselho para Assuntos Regionais. Havia esse conselho na versão originária da Constituição. É evidente que a sua composição e as suas competências não dignificavam muito o órgão e acabou por ser suprimido na revisão constitucional de 1999. Entretanto, defendo que devemos ter um espaço em que as ilhas possam ser ouvidas. Eu não iria tanto para um parlamento bicameral, mas acho que como órgão auxiliar do poder político devíamos ter um Conselho das Ilhas, em que as ilhas pudessem fazer ouvir a sua voz, na base da igualdade – por ilha. Cada ilha teria um ou dois representantes. Isso seria um complemento importante no exercício do poder político e daria voz efectiva às ilhas.

 

Quais as grandes virtudes da Constituição de 92?

Há uma coisa que às vezes não é muito sublinhada. Falamos da Constituição de 92, mas ignoramos um pouco o processo que conduziu à Constituição de 92. Quando dizemos que a Constituição de 92, na sua essência, não carece ser alterada, é porque a Constituição de 92 acabou por absorver um consenso da sociedade cabo-verdiana, um consenso entre as forças políticas. Porque a verdadeira alteração constitucional em Cabo Verde operou-se quando o nascente Movimento para a Democracia (oposição) e o PAICV (governo) negociaram essa transição exemplar para a democracia. Portanto, com uma transição democrática exemplar, só poderíamos chegar a uma Constituição como esta, com várias virtudes – uma Constituição generosa em matéria de direitos fundamentais, com um catálogo de direitos invejável, uma Constituição que concebe um sistema de governo que tem funcionado sem sobressaltos, os órgãos de soberania têm cumprido os seus mandatos, uma Constituição que instituiu um poder local democrático, uma Constituição que impõe uma descentralização democrática da administração pública e do Estado. Portanto, de um modo geral, os aspectos que acabei de citar sintetizam as virtudes da nossa Constituição. Mesmo aquilo a que se chamou no início de querela constitucional e que hoje é apenas uma referência histórica, não tinha nada a ver com os aspectos essenciais da Constituição. A Constituição, apesar dessa ideia da querela inicial, ela é consensual. Daí, de facto, a sua virtude. Reflecte verdadeiramente o largo consenso das forças políticas cabo-verdianas. Porquê? Porque foi o culminar de um processo de transição para a democracia exemplar. A nossa Constituição é uma Constituição moderna, é uma Constituição que alimenta expectativas sobretudo em matérias de realização dos direitos como se fossemos um país dos mais desenvolvidos do mundo. Como já disse, mesmo que tenhamos a nobre intenção de pôr todos os direitos na Constituição, há, contudo, direitos cuja realização depende da base económica e isso leva à frustração. As pessoas podem dizer eu tenho direito à habitação, eu tenho direito ao trabalho, a Constituição consagra-me todos esses direitos, mas não estou a ver esses direitos realizados. Então é necessária uma função pedagógica para dizer às pessoas: esses são direitos cuja realização progressiva vai depender do crescimento económico, da equidade na repartição do rendimento nacional, etc, etc.    

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017. 

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Autoria:António Monteiro,1 out 2017 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  2 out 2017 10:39

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