Ensino da matemática: Entre a calamidade e o zero absoluto

PorJorge Montezinho,4 mar 2018 7:26

A compreensão da ciência e da tecnologia com base científica é essencial, não só para aqueles cujas carreiras delas dependem directamente, como para qualquer cidadão que queira tomar decisões bem informadas sobre os temas controversos hoje em debate: desde conseguir uma dieta equilibrada, até à gestão dos lixos urbanos, passando pelas alterações climáticas, só para dar alguns exemplos, a ciência é omnipresente na nossa existência.

No fundo, passamos a vida a calcular probabilidades e a medir distâncias e para isso é fundamental o domínio da linguagem científica. Por outras palavras, cidadãos que percebem ciência são melhores cidadãos. Em Cabo Verde, o ensino da matemática enfrenta desafios, muitos desafios, e os sucessivos ministérios da educação, apesar de identificarem os problemas ano após ano, tardam em encontrar uma solução. O que se passa, afinal, com o ensino da matemática em Cabo Verde? É um problema de modelo de ensino? De deficiente formação dos docentes? De falta de empenho dos alunos? O Expresso das Ilhas foi atrás das respostas.

Se há alguém que sabe sobre matemática em Cabo Verde é Paulino Fortes. Antigo reitor da Universidade de Cabo Verde, doutorado em matemática e actualmente investigador de pós-doutoramento, com uma larga experiência de docência no ensino superior, arguente no júri em dissertações de mestrado e doutoramento, autor de mais de uma dezena de artigos e de livros e conferencista nacional e internacional, o académico é claro e rápido quando lhe é pedido um diagnóstico: “há falta de maior educação matemática e de uma educação matemática mais efectiva”, diz ao Expresso das Ilhas.

É lógico que fazer este diagnóstico obrigava a parar tudo e a montar toda uma logística. Paulino Fortes prefere falar a partir da experiência enquanto professor na universidade e enquanto pai que acompanha a educação dos filhos. “O meu diagnóstico é muito pessoal. Nalguns aspectos, como ao nível dos programas e dos manuais, o ensino da matemática avançou, evoluiu em relação a uns anos atrás. Mas noutros aspectos regrediu terrivelmente, por exemplo, na introdução da teoria de conjuntos, que sabemos desde os anos 30 é a base de toda a matemática”. 

“Também há uma gama diferenciada de formações em matemáticas no ensino secundário. Há escolas que fazem uma boa formação, penso que depende dos professores, e há escolas que nem por isso”, completa o académico. “Por exemplo, os alunos que chegam à universidade vêm não só com programas incumpridos, como aparecem sem as ferramentas mínimas que se esperam para um aluno entrar no ensino superior em determinadas áreas: matemática, engenharia, etc. Há uma espécie de calamidade em relação aos conhecimentos matemáticos”.

Não é fácil obter informações junto de quem gere o ensino cabo-verdiano. No site do Ministério da Educação, os dados ou são inexistentes ou são publicações antigas. Um dos últimos estudos de fundo, se assim se pode chamar, pode encontrar-se no relatório sobre o estado do sistema educativo nacional, feito no longínquo ano de 2010. Nessa altura realizaram-se provas de aferição que permitiram testar os alunos do 6º ano de escolaridade nas disciplinas de Português e Matemática. A avaliação mostrou que a pontuação média desses alunos foi de cerca de 35 (sobre uma escala de 0 à 100) e as médias não variaram de uma disciplina para outra, 35,9 em Português e de 35,5 em Matemática.

Notou-se que muitos concelhos estão melhor posicionados tanto na disciplina de Português como na de Matemática. Sal, São Vicente, Ribeira Brava e Brava estavam acima da média nacional em ambas as disciplinas. Do mesmo modo, verificou-se que muitos concelhos ocupavam sempre os últimos lugares no quadro de classificação em ambas as disciplinas, Santa Cruz, São Lourenço dos Órgãos e Tarrafal.

Para além de medir a classificação média, procurou-se saber a percentagem de alunos que chegam a dominar, ou não, uma parte dos conteúdos de ensino e reagrupou-se os alunos em três grupos (fortes, médios e fracos). Chegou-se aos seguintes resultados: fraco, 34.4%; médio 41.3%; bom 24.3%.

Examinou-se também o impacto das variáveis significativas do aluno, tendo em conta os resultados de aprendizagem: 

• O sexo do aluno tem um ligeiro impacto na classificação do aluno. O facto de ser uma rapariga, favorece o resultado no fim do 6º ano.
• A idade do aluno tem um efeito negativo/significativo sobre a classificação dos alunos. Entre duas crianças, uma de 10 anos e outra de 12 anos, a diferença do score médio no 6º ano é de 0,14 ponto a favor da primeira.
• Uma variável dita de “riqueza” foi criada a partir das respostas ao questionário e notou-se que o facto de ser procedente de um meio favorecido tem um efeito significativo e positivo para a classificação do aluno.
• O facto de um aluno ter abandonado a sua escolarização durante o Ensino Básico e seguidamente retornado, constitui um efeito significativo e negativo sobre o resultado dos testes.
• A implicação dos pais é uma vantagem significativa. Assim, a classificação média das crianças cujos pais vão às reuniões de pais e encarregados de educação dos alunos foi, em média, de 0.20 pontos superiores.
• O facto de viver numa casa com uma família numerosa tem um impacto negativo e significativo nos resultados do aluno.
• Um aluno cujo pai tem curso superior vê a sua classificação, em média, aumentar 0.4 pontos mais que o de um aluno cujo pai não atingiu este nível de estudos.
• O facto de uma criança viver com os seus pais (pai e mãe) é um ponto que favorece melhores resultados escolares;
• A participação nas tarefas domésticas tem um efeito significativo e negativo para o resultado médio do aluno.
• Os concelhos electrificados têm um efeito positivo e significativo sobre o score dos alunos que ali residem;

Sabemos também, e isso é referido em vários documentos do ministério da educação, que a matemática é um factor decisivo tanto nas reprovações, como no abandono escolar. Como se lê no documento para o ano lectivo 2017/2018, “tomando em consideração os resultados do diagnóstico do sistema, que indicaram que a disciplina de Matemática, constitui a disciplina com maior índice de insucesso no 7º ano de escolaridade, resultante de deficiências do processo de ensino/aprendizagem ao longo do Ensino Básico, optou-se por introduzir profundas modificações, tanto a nível de conteúdos, como de abordagem metodológicas e de materiais de apoio em todos os anos do 1º Ciclo do Ensino Básico”. 

Entre estatísticas e análises, há uma questão que não é referida, o poder matemático, a capacidade que o estudante tem de se apropriar da matemática, porque teve convívio suficiente e incorporou matéria suficiente para ao olhar para um problema e conseguir fazer a interpretação. Desse ponto de vista, diz Paulino Fortes, em Cabo Verde está-se quase a zero. “Raros são os estudantes, mesmo os bons, que fazem ligação entre os conhecimentos de matemática que têm e a resolução de um problema que lhes é posto. Do ponto de vista dos conteúdos, acho que ainda pecamos, mas sobretudo pecamos mais do ponto de vista de conseguir que os estudantes saiam do ensino secundário com poder matemático que lhes dê autonomia, quer para continuar os estudos no ensino superior, quer para uma profissão, para encarar especificações técnicas, quer para ser um cidadão inteligente, com pensamento crítico, activo e assertivo”.

Como referido no início, cidadãos que sabem matemática, são melhores cidadãos. “Absolutamente. A capacidade de fazer opções, de calcular. A atitude pensante é extremamente desenvolvida na matemática. Aliás, é a principal atitude que se espera com a disciplina da matemática. A persistência e depois o cálculo, que é uma espécie de parente pobre da matemática. A parte rica da matemática são as ideias, a sua lógica imbatível, a capacidade de se ajustar aos problemas do dia-a-dia”, refere Paulino Fortes. “A capacidade da pessoa poder construir raciocínios sem contradição. E a obrigação de conhecer todos os conceitos que estão no seu discurso. Se todos os cidadãos tiverem essa capacidade, tenho a certeza que há maior cidadania, todos se respeitam uns aos outros, todos participam e haverá mais paz social”, sublinha. 


Os docentes

Segundo o Anuário de Educação 2015/2016, 40,6 por cento dos professores de matemática no ensino secundário público não têm licenciatura. A distribuição das habilitações dos professores, dados do mesmo documento, mostram que 30 têm mestrado/pós-graduação, 260 têm licenciatura, 140 têm curso superior sem licenciatura, 35 têm frequência de curso superior, 7 têm curso médio, 3 têm frequência de curso médio, 2 têm ano zero, 7 têm o 12º ano e 5 têm ex-2º ano de curso complementar.

Voltamos ao relatório sobre o estado do sistema educativo nacional, que também analisou factores ligados ao professor, para concluir que:
• Quando as tarefas administrativas interferem demasiado e frequentemente no seu trabalho verifica-se um impacto negativo e significativo no nível das aprendizagens dos alunos.
• Tanto em Matemática como em Português, a utilização de técnicas pedagógicas específicas (utilização de assuntos de actualidade para ensinar Matemática e utilização de poesia e de história para ensinar a Gramática) favorece melhores resultados.
• O facto de o professor utilizar Internet para preparar o seu trabalho revela-se ser muito positivo e muito significativo. Em média, os alunos dos professores que utilizam Internet no âmbito do seu trabalho vêem a sua classificação aumentar mais 0,7 ponto.
• As agressões dos professores têm um impacto negativo e significativo no nível de aprendizagem dos alunos.
• O conhecimento do sistema de avaliação do Ensino Básico pelo professor é um factor que influencia positivamente no resultado dos seus alunos. 

Um professor motivado é um dos segredos para melhorar o ensino da matemática? Paulino Fortes acha que sim. “Tem de começar por aí. Costumo atribuir aos professores o papel central. Os professores estão dentro de um sistema educativo que tem, à partida, que perceber a centralidade do professor e atribuir ao professor as possibilidades e a motivação suficientes. Um professor dedicado, no sentido de professar, neste caso tem de professar a matemática com os estudantes, com a alegria da descoberta, a alegria de alcançar objectivos”.
E o que acontece em Cabo Verde? “Julgo que ainda são resquícios da massificação do ensino”, responde Paulino Fortes. “A massificação era necessária, não se pode falar em qualidade de ensino com exclusão, a massificação é um dos requisitos da qualidade. Mas a massificação deve ser planificada e com os recursos suficientes, porque traz sempre a necessidade de acompanhamento, de formação, de substituição. Se não houver os recursos necessários, a massificação vai levar a uma perda de qualidade”. 

“É verdade que Cabo Verde é um país de fracos recursos, mas teve apoios substanciais na massificação, tanto do ensino básico como do ensino secundário, para construção de escolas, para formação de professores, mas a formação contínua não aconteceu da forma desejada. E a massificação levou a que o professor tivesse de trabalhar com muitos estudantes, a trabalhar muito durante o dia, sem tempo para fazer a pesquisa e o estudo. Julgo que neste momento estamos a colher os frutos da parte má da massificação”, resume o académico. 


As soluções

Chegados aqui, uma das questões que se põe é: o que fazer? Em primeiro lugar, defende Paulino Fortes, fazer um diagnóstico geral sobre o ensino, em particular o ensino da matemática, que é particularmente sensível às disfunções dos sistemas educativos. Depois fazer um plano, orçamentar as acções e arranjar os meios para que se consiga pôr de pé um plano de qualidade para o ensino, começando no pré-escolar, onde tudo começa.

“Costumo dizer que se há necessidade de professores doutorados são os educadores de infância. Ele não vai transmitir directamente matemática, mas tem de ter os conhecimentos suficientes de matemática e de educação para induzir aos conceitos matemáticos, para abrir caminho para o gosto, a aplicabilidade e a visão matemática dos problemas. E também para os hábitos de estudo, persistência, perseverança e autonomia na resolução de um problema”. 

“Depois o ensino básico, que precisa de professores extremamente sagazes. O professor de ensino básico é um multidoutor, tem de saber muita coisa, tem de saber lidar com a criança à sua frente, mas também com a criança que vem de casa, com a criança que tem problemas em casa, problemas na sociedade e com a criança que vai integrar uma sociedade de futuro. É proibido é bloquear a criança. Às vezes o professor generalista não gosta da matemática, e isso é grave, os professores que se sentem menos atraídos e são obrigados a ensinar vão fugir, mesmo que inconscientemente, e vão transmitir isso aos estudantes. Mais, vão ser tolerantes quando o estudante não consegue o resultado. O professor do ensino básico tem de ser extremamente bem resolvido em várias áreas, particularmente na da matemática e na da língua”, continua Paulino Fortes. 

“E quando se chega ao secundário, quando se começam a refinar as bases científicas, o professor já pode, mais à vontade, usar a ciência para dentro dela encontrar as motivações para que o estudante construa o seu conhecimento. Encontrar as histórias, metodologias e estratégias para que o estudante fique motivado e consiga desenvolver o poder matemático que vai precisar, tanto para a sua vida como para a continuação os seus estudos”.

E se um aluno chega à universidade sem estas ferramentas, está invariavelmente condenado, ou ainda é possível intervir? Paulino Fortes afirma que é sempre possível intervir, mas já foi mais fácil fazê-lo. Antes, a Uni-CV tinha um propedêutico, uma espécie de preparatório, que ao mesmo tempo que pretendia suprir as falhas de conhecimento, também pretendia suprir as falhas de motivação e de autonomia. Estes programas de preparação da universidade pública versavam exactamente sobre a matemática e a língua portuguesa. Tinha, mas já não tem. Funcionou enquanto houve financiamento brasileiro. Mas continua a fazer falta. “Nós fazemos as provas de acesso e ficamos logo a perceber onde estamos. O problema é partir a partir daí. Os professores, que vão apanhar os alunos do primeiro ano, deviam ter conhecimento do estado das provas, mas a maior parte não tem. Em segundo lugar, o primeiro contacto com os estudantes deve ser de diagnóstico. E a partir daí, deve construir-se a ponte entre onde estavam e onde pretendem estar”. 

É um exercício árduo no espaço de um semestre. Para as outras ciências é difícil, para a matemática é dramático. “Muitos estudantes com disciplina de matemática, estou a falar de análise matemática ou de álgebra linear, são desastres completos. É preciso que haja alguma reflexão para que se volte ao propedêutico ou pelos menos que haja uma acção prolongada para que a lacuna do secundário, em alguma altura, seja resolvida e com a ajuda do professor”, refere o antigo reitor da Uni-CV. 

“Muitas vezes, nas turmas do primeiro ano, pensamos que os alunos são capazes de nos acompanhar, de nos seguir, depois quando falamos com eles percebemos que não perceberam mesmo nada. Realmente a universidade precisa também de meios para colmatar essa falha, porque esta não é devida ao estudante, é uma falha de sistema”.

“Geralmente demorámos muito tempo nas reformas, de tal forma que quando se implementa uma reforma já se precisa de outra. Então estamos sempre em reformas avulsas”, analisa Paulino Fortes. “Para a ciência é preciso um plano nacional de educação. Por exemplo, temos de saber o que é que se pretende como perfil no que diz respeito à matemática. Uma pessoa que se forma engenheiro, que estudou matemática, que perfil deve ter? Um matemático, que perfil deve ter? E a partir daí vamos andando para trás. Para ter esse perfil no ensino superior que conteúdos devem ser dados no secundário? E no básico? E na pré? Porque a matemática é uma construção. Não pode haver vazios, descontinuidade. Quando há descontinuidade há esses problemas de ter uma formação matemática em retalhos”. 

Caso contrário, aparece a célebre frase que a matemática não serve para nada. “A matemática só se nos afigura útil quando é uma construção coerente”, reforça Paulino Fortes, “não pode haver contradição entre aquilo que aprendemos no ensino básico até ao ensino superior. Sobre a matemática, é preciso saber o que quer o país em relação ao perfil científico e tecnológico dos seus quadros e a partir daí andar para trás para ver onde se semeia isso. Ter uma baliza, saber para onde se vai. Se não se souber, cada um faz como quer e depois perdemo-nos. É uma questão de gerações. Lembro-me no Brasil, na universidade de Campinas, o pessoal dizer ‘o nosso curso é ainda recente, tem apenas 50 anos, mas vai-se consolidando’. Ou seja, houve bases lançadas há 50 anos, sabia-se para onde se queria ir e depois foi-se consolidando”.


A estética da linguagem matemática


Michael Guillen, no livro Cinco equações que mudaram o mundo, escreve sobre a equação de Newton para expressar a força gravitacional entre dois objectos, o princípio de Bernoulli que explica o comportamento dos fluídos, a lei da indução electromagnética de Faraday, a segunda lei da termodinâmica de Clausius e a equação da equivalência entre a massa e a energia de Einstein. Graças a estas pessoas e a estas equações conseguiu-se chegar à Lua, voar um avião, controlar o poder da electricidade, compreender a mortalidade da vida terrestre ou construir a bomba atómica. Já Karl Weierstrass disse: “Um matemático que não tenha algo de poeta jamais será um matemático completo”.

Em algum lugar, em algum momento, esqueceu-se a beleza da linguagem matemática para se passar apenas a tentar cumprir currículos? “A matemática tem vários aspectos”, diz Paulino Fortes, “um deles é o da estética, inclusivamente da própria música. As primeiras tentativas de sintetizar os sons vieram da aplicação da matemática às ondas sonoras produzidas por instrumentos. A harmonia, um dos aspectos da beleza entre seres humanos, é um aspecto intrínseco da matemática, em particular da geometria. Há o aspecto do jogo, lúdico, do desafio. Há o aspecto linguagem. Há o aspecto investigativo, que está em todos os níveis da matemática. Todos esses aspectos podem ser usados a qualquer momento, podemos seduzir os estudantes para a matemática para que consigam o poder matemático. Toda a gente gosta do aspecto lúdico, dos jogos geométricos, dos jogos algorítmicos. Há outros que gostam mais do aspecto da linguagem, a argumentação, o rigor, a lógica, os conjuntos. Outros gostam mais dos problemas para irem procurar o x. Tudo isso é passível de ser utilizado em estratégicas de ensino da matemática, sobretudo no básico e no secundário. O docente tem de ter mais espaço, para estar com os colegas, para saber as novidades e às vezes para estar consigo próprio, para se resolver com a ciência. Há colegas que sentem desconforto a dar certas matérias, porquê? Porque nunca tiveram tempo ou dedicação suficiente para se sentar consigo mesmos para resolver os problemas. E o sistema tem de dar estas oportunidades e depois aferir a qualidade do ensino”.

“A fantasia perde-se quando se confunde a matemática com cálculos estéreis”, continua Paulino Fortes. “A algoritmia é um dos aspectos da matemática e isso leva à aplicação de receitas: sempre que o problema é este resolve-se assim. Isso é esterilidade pura. O que deve ensinar em primeiro lugar são os fundamentos desse algoritmo, por que razão isto é assim? E dar oportunidade às crianças e aos jovens de procurarem novos algoritmos. E depois insistir mais nos problemas e menos nos algoritmos, porque hoje temos máquinas para os fazer. E na discussão, aí está a beleza, o alcançar de objectivos. E aí não há receitas, cada problema é um problema. Pode haver algoritmos para resolver os cálculos, mas não para resolver o problema. Cada problema merece ser planificado, estudado, resolvido e celebrado (risos). Isso é que é estético, poético, o momento a que se refere o Weierstrass”.


Ciência e cidadania


A nível mundial, a organização do ensino das ciências tem sofrido inúmeras transformações. Até os anos 60, a ciência era apresentada como neutra e o importante eram os aspectos lógicos da aprendizagem e a qualidade dos cursos era definida pela quantidade de conteúdos conceptuais transmitidos. Nos anos seguintes, valorizou-se a participação do aluno no processo de aprendizagem do método científico através de atividades práticas de laboratório. Na década de 70, a crise económica mundial e os problemas relacionados com o desenvolvimento tecnológico fizeram surgir o movimento pedagógico “ciência, tecnologia e sociedade” (CTS). Tendência no ensino que se mantém até os dias de hoje, uma vez que leva em conta a estreita relação da ciência com a tecnologia e a sociedade, aspectos que não podem ser excluídos de um ensino que tem por objectivo formar cidadãos. 

Em Cabo Verde, sublinha Paulino Fortes, a matemática acaba por pagar o preço de uma sociedade pouco rigorosa. O que explica, em parte, a impopularidade da disciplina. Conseguir-se-á reverter esse sentimento? “Infelizmente, isso é fácil, e infelizmente, isso não acontece em todas as culturas. A matemática é baseada na lógica, na linguagem, na argumentação, no esforço feito pelos gregos de se falar com precisão, não é verdade? Isto é, não posso usar um termo que desconheço, não posso definir conjuntos em que não sei quais são os seus elementos. Precisão. A matemática baseia-se no conhecimento exaustivo de tudo o que trabalhamos. Nas nossas sociedades isso é um exercício que não se faz, somos muito individualistas, muitas vezes contraditórios, ninguém quer voltar ao rigor lógico, e esse é o problema da sociedade com a matemática, porque esta tem forma, tem método e exige rigor. Não estamos habituados ao rigor, o rigor obriga a atenção, obriga a trabalho, ao que se faz e em relação ao outro, porque temos sempre contas a prestar. E tem sempre a ver com a linguagem. Fazemos matemática para comunicar e para isso tem de ter rigor. As pessoas no dia-a-dia não precisam de rigor para comunicar, não têm atenção ao outro, a crise de individualismo e a crise da sociedade surgem também porque não queremos saber do outro. Da mesma maneira não queremos saber da matemática, que no fundo é comunicar com o outro rigorosamente, com conhecimento”. 

“As sociedades desenvolvidas não têm problemas com a matemática. Na Suécia ninguém tem medo da matemática. Mesmo em Cabo Verde, antigamente ninguém tinha medo da matemática, pelo contrário, todas as pessoas gostavam. Na matemática toda a gente tirava boas notas, mas hoje não. O que aconteceu?”, questiona o académico. 


Os desafios

Docentes, sistema, alunos, sociedade, as respostas vão-se acumulando. Afinal, o ensino da matemática, ou melhor, as dificuldades enfrentadas pela disciplina ultrapassam o espaço físico da sala de aula, vão para além de quaisquer estudos ou reformas. Logo, há uma série de desafios a enfrentar.

Paulino Fortes diz que sim, que há muitas lutas pela frente. Para começar, a estruturação, definir o que se quer com a formação matemática em Cabo Verde, desde o ensino superior e andando para trás, sabendo que de alguns ciclos se pode passar para a vida profissional. 

Outro aspecto fundamental é a investigação. As sociedades e os países só se desenvolvem com criação e recriação da ciência. Recriação para aplicação ao contexto do país e criação para novos modelos, sempre tendo em vista a aplicação. “Os grandes problemas de desenvolvimento do país devem sempre ser alvos constantes de investigação. E a matemática é uma das principais ferramentas para a modelação dos problemas complexos do desenvolvimento. Sejam científicos, tecnológicos, sociais, económicos, etc., fazer previsões, no fundo. A matemática é o nosso telescópio para o futuro e o microscópico quando queremos ver ao perto”. 

“A investigação precisa de ser colocada na agenda do país”, reitera Paulino Fortes. “É urgente. Não faz sentido termos um país independente que não produz conhecimento independente. E que não alimenta um sistema de investigação. A investigação tem sido feita nas universidades à custa da cooperação, e isso é bom, mas fica ao sabor das pessoas envolvidas, das instituições envolvidas e dos apoios. Um país que quer um desenvolvimento sólido, com janelas temporais a longo prazo, tem de dar um sinal claro que quer ciência construída no país”.
Mas investigação implica dinheiro. Paulino Fortes não desarma. “Enquanto não houver financiamento explícito para a investigação neste país temos o direito de duvidar que se queira um desenvolvimento com bases sólidas e independentes. Um país independente tem de ter um sistema de ciência, tecnologia e investigação independentes. Uma parte do que os contribuintes dão deve ser para isso. Sem medos. E nem precisamos de pensar cinco minutos nisso, basta ver os outros países”, conclui o matemático.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 848 de 28 de Fevereiro de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,4 mar 2018 7:26

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  4 mar 2018 15:50

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