Ultimamente, muito por causa da repercussão que casos a nível internacional estão a ter e pela dimensão que o movimento #metoo alcançou, iniciaram-se a nível das redes sociais algumas discussões que deixam perceber, principalmente, que ainda nem bem se compreende o que é assédio sexual. Nesta reportagem trazemos-lhe histórias de quem sofreu este tipo de crime sexual, como homens e mulheres encaram o assunto, e também os comentários de um psicólogo, uma antropóloga e especialista em questões de género e de uma representante de uma instituição pública que lida com as políticas de género em Cabo Verde.
“Aproveitou o facto de estarmos sozinhos, agarrou-me à força e tentou beijar-me”.
“Empurrou-me para dentro do quarto do hotel, agarrou-me e tentou beijar-me à força”.
O desfecho das situações vividas por “Nina” e “Joelma” é praticamente idêntico. Foi, em ambos os casos, o culminar da situação de assédio sexual que ambas viveram, em contextos bem diferenciados, mas com alguns aspectos semelhantes, como mais adiante veremos.
Para Nina, 28 anos, foi o primeiro episódio de assédio sexual que sofreu em local de trabalho. Durante meses ela teve que passar por situações constrangedoras e que minaram o seu bem-estar psicológico e até físico. No local de trabalho e até fora, constantemente era abordada pelo seu superior hierárquico, que não se coibia de lhe dirigir, verbalmente ou por mensagens telefónicas, comentários sobre o seu corpo, e expressar-lhe o desejo que ela lhe despertava e fazer-lhe propostas inapropriadas. Todos os dias sofria com olhares “devoradores”, frases carregadas de conotação sexual e toques que o seu assediador fingia serem acidentais.
“No início eu pensava que era brincadeira. Tentei contornar a situação mas, foi ficando pior. E quando ele viu que eu não ia ceder… ele começou a fazer tudo aquilo. Parecia doença, ele parecia um doente. Ele mandava-me mensagens. A coisa foi escalando até o dia em que ele tentou beijar-me à força. Saí a correr… Cheguei em casa a tremer”.
O calvário [como ela se refere ao que passou] ainda estava apenas a começar. Ao contar o que estava a acontecer a uma colega, ficou a saber que esta também era vitima de assédio por parte da mesma pessoa.
“Ela acabou por me dizer que também tinha sido assediada por ele; que ele a fechou numa sala lá no trabalho e esfregou-se nela. O dono da empresa encontrou-a depois a chorar e recomendou-lhe ficar calada pois ele [o director] era uma peça essencial na empresa”.
A situação de Joelma no meio laboral é diferente da de Nina. Aos 29 anos ela é a gestora do negócio da família, uma grande empresa nacional. Diariamente lida com dezenas de funcionários, clientes e parceiros do negócio. Mesmo estando numa posição de poder, diz sofrer constantemente de assédio sexual e comportamentos machistas.
“Um dia estava no ginásio acompanhada do meu personal trainer quando ele afastou-se por momentos para ir buscar algo. Logo aproximou-se um outro utente e me disse “bo sta bom foz” [tradução possível: estás um bom pau de fósforo; significando que “acende” o desejo]. Perguntei-lhe: “porque estás a falar comigo?” E ele perguntou se não podia falar comigo e eu respondi-lhe que o que ele não podia era falar comigo naqueles termos. Ele irritou-se e tornou-se agressivo, começou a gritar, chamou-me de atrevida, e disse que se eu não quisesse ouvir “elogios” então que ficasse em casa ou fosse ao ginásio de burka. (Eu não tinha que justificar isso, mas vou só dizer que eu estava a usar um fato de ginástica, calça e blusa compridos). Do grupo de homens que assistiu a tudo, alguns o apoiaram e outros o reprovaram. Ele ainda tentou dirigir-se a mim e os outros rapazes é que o seguraram”, relata Joelma ainda irritada com a situação vivida.
O episódio pelo qual passou perturbou-a de tal forma que, ao chegar a casa, decidiu que não voltaria ao ginásio para não ter que ouvir comentários do tipo.
Mas pior foi quando, ao deslocar-se a outra ilha para fechar um negócio, foi atacada pelo representante da cadeia hoteleira com quem iria assinar um contrato. Durante o encontro de trabalho o indivíduo já tinha começado a dirigir-lhe olhares e fazer comentários sobre a sua aparência. Quando a acompanhou para lhe mostrar o quarto do hotel onde ficaria hospedada empurrou-a para dentro e tentou beijá-la.
Assim como Nina, Joelma resistiu ao ataque. Mas não fugiu, enfrentou o seu agressor e quando ele lhe perguntou se sabia que era ele a assinar os cheques ela respondeu que chamaria a polícia. Talvez por estar numa posição de maior poder Joelma conseguiu sair da situação sem maiores consequências imediatas. Aliás, conseguiu fechar o negócio e o homem que a assediou pouco depois seria transferido para outro país.
Já Nina, depois do ataque físico sofrido, continuou a ter que lidar com o seu superior hierárquico e passou a sofrer outro tipo de assédio, o moral.
“Houve uma altura em que fui ao chão. Algumas pessoas pensam que é leviandade. Mas, aquilo que passei quando disse “não”, a forma como fui injuriada… Ele mandava pagar o salário a todos os funcionários menos a mim. Saí de férias e fui para a minha ilha natal, fiquei lá à espera do salário para poder voltar e retomar o trabalho. Não me pagaram. Consegui voltar mesmo assim e a reacção dele ao ver-me no local de trabalho foi de surpresa. Disse-me que não devia ter voltado porque não tinha como me pagar. Um dia ele fez uma reunião com todos os meus colegas para tentar pôr-me fora, despedir-me. A reacção dos meus colegas foi: “como assim?” Ela é quem mais trabalha aqui””
O chefe continuou a criar estratégias para conseguir despedi-la. Criava entraves ao seu trabalho e mais furioso ficava quando Nina conseguia superar estes constrangimentos.
“Ele até junto de pessoas externas à empresa tentou denegrir a minha imagem, passando a ideia de que eu era uma p… Até hoje não recebi os meus salários atrasados, os meus direitos”, conta ela que teve que deixar o emprego para procurar forma de suprir as suas necessidades básicas.
Sequelas
Nina e Joelma são duas jovens mulheres cabo-verdianas com histórias semelhantes a muitas outras. Apesar das duas virem de contextos socioeconómicos distintos, ambas têm formação superior e podem ser descritas como mulheres inteligentes e bem-educadas. Hoje, ambas enfrentam sequelas psicológicas, algumas até perceptíveis durante uma conversa sobre as violências que sofreram.
Na sua rotina de trabalho Joelma lida frequentemente com homens poderosos, alguns dos quais têm nas mãos a decisão de fechar um negócio com ela ou não. São incontáveis as vezes em que foi assediada em encontros de trabalho e diz que se viu obrigada a aprender a driblar situações mais constrangedoras, caso contrário teria que deixar de trabalhar. Neste preciso momento Joelma está a ser assediada por mais do que um homem, casados, e que inclusive a perseguem por telefone, mandando mensagens de forte cariz sexual que a incomodam.
Entretanto, ver-se como alvo de interesse sexual por parte de um homem é algo com que se confronta há já muito tempo. Antes do tempo. Por volta dos 5 ou 6 anos ela foi sexualmente abusada por alguém próximo do seu círculo familiar. Um homem beijou-a na boca. O choque foi tal que terá desmaiado e pouco mais se recorda do episódio vivido, um tabu no seio familiar.
Tudo o que passou até aqui levou-a a desenvolver depressão, ansiedade e a tornar-se algo anti-social, evitando ao máximo sair de casa. Frequenta uma psicanalista e faz terapia regressiva.
Hoje, embora diga que não tenha dificuldade em apaixonar-se, admite que desconfia profundamente do sexo oposto pelo qual desenvolveu uma certa “aversão”.
Quanto a Nina, ainda sem condições financeiras para pagar consultas de psicanálise, reconhece que precisa de apoio psicológico. Até porque, no novo emprego nem tudo são rosas. Conta com o apoio de muitos dos novos colegas mas, há também aqueles que a perseguem e perpetuam a situação de assédio moral que ela também foi vítima.
“Até hoje choro por causa daquilo que passei. Penso escrever um livro sobre tudo isso”, confessa. Escrever foi uma das formas que encontrou para desabafar a revolta que sentia e lidar com a ansiedade em que passou a viver.
“Sempre que um homem me aborda fico congelada, sem conseguir pronunciar uma palavra. Dizem-me que sou fria mas, não sou; É uma forma que desenvolvi de me proteger. O que me aconteceu fez-me ficar alerta e ser uma pessoa menos ingénua”.
As consequências para Nina não foram só psicológicas. Ao recusar ceder ao assédio sexual viu-se sem trabalho e sem um rendimento. Longe da sua família, passou fome e viveu durante um tempo numa casa sem água canalizada e sem electricidade. A sua história de horror escreveu-a à luz de velas.
“Sinto que preciso de me tornar uma mulher forte e segura. Hoje, por mais que as pessoas me digam que sou inteligente e competente, eu não consigo acreditar. Porque onde eu estava antes, por mais que eu trabalhasse ele dizia que eu não estava a trabalhar, ele me diminuía…Isso definha uma pessoa psicologicamente”, reconhece.
A OIT (Organização Internacional do Trabalho) refere em um dos seus documentos que os danos à saúde das mulheres que sofrem assédio sexual são devastadores: “vítimas de assédio sexual sofrem de sintomas psicológicos como sentirem-se frágeis, culpadas, sofrerem insónia, tensão, raiva e depressão, assim como sintomas biológicos como dores de cabeça, dores musculares, ânsia e vómito, pressão alta, mudança de peso e fadiga”. Além disso, o assédio sexual pode ocasionar a perda do emprego, tendo em vista que na maioria das vezes as mulheres se vêm forçadas a se demitirem. Ainda de acordo com a OIT (ILO, 2010), 1 em cada 4 mulheres no mundo sofre ou sofrerá assédio sexual no trabalho.
Muro de silêncio
O assédio sexual é considerado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como uma violência sexual e acontece com frequência em diversos âmbitos, inclusive no local de trabalho. Pode partir de um superior (caso mais comum), de um colega de trabalho ou de clientes e usuários de serviços.
Num ambiente em que as pessoas possuem diferente status, seja a relação de poder explícita ou não, a possibilidade de reacção não é igualitária, o que faz com que os abusos possam ocorrer. Por isso as vítimas são geralmente mulheres em cargos hierarquicamente vulneráveis, de forma que se torna natural para o agressor esperar que ela não reaja.
Basta um episódio, mesmo que não se repita, para se considerar que o assédio existiu.
Na legislação Cabo-Verdiana, até 2004 o assédio sexual era designado como “atentado ao pudor” tendo-se alterado com o código penal de 2004 a denominação, e passando este a constar do Código Laboral, artigo 410º: “1. O empregador, gerente, supervisor ou outro agente do empregador, tal como professor, instrutor, treinador, formador ou qualquer outra pessoa que, tendo autoridade, influência ou predomínio moral sobre um trabalhador, o assedia sexualmente, fazendo depender a contratação, renovação do contrato, promoção ou aquisição de privilégios, assim como bolsas de estudo, subsídios ou outros benefícios, da obtenção de favores sexuais para ele ou para terceiros, é punido com coima até dois anos do salário mínimo da função pública” (..).
Contudo, é preciso ressalvar que no Código Laboral o assédio surge como uma contra-ordenação, punível com coima. É só na lei da Violência Baseada no Género (Lei n.º 84/VII/11) que se estabelece o assédio como crime. No seu artigo 25º, nº1, refere a pena de prisão: “quem, tendo autoridade ou influência sobre outrem faz depender, nomeadamente, a contratação, permanência no trabalho, renovação do contrato, promoção ou a aquisição de quaisquer outros privilégios, assim como bolsas de estudo, subsídios ou outros benefícios relevantes para si ou quem dela dependa, da obtenção de favores sexuais para si mesmo ou para terceiro, será punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa de 100 a 250 dias”.
Apesar da cobertura da lei e do trabalho desenvolvido por algumas instituições voltadas para as questões de género, nomeadamente os vários tipos de VBG, segundo o relatório do Ministério Público (MP) sobre a situação da Justiça – onde o assédio sexual aparece enquadrado não na categoria de VBG mas sim na categoria Crimes Sexuais – a nível nacional, em 2017, foram registados nos serviços do MP 523 (quinhentos e vinte e três) crimes sexuais sendo apenas 7 (sete) deles crimes de assédio sexual.
Estes números não surpreendem Eveline Tavares, técnica do ICIEG e, coordenadora do II Plano Nacional de Combate à VBG (IIPNVBG). Embora consciente de que a realidade nacional será bem distinta da apresentada pelos números, o facto é que também aos serviços do ICIEG são ainda muito poucos os casos de vítimas de assédio sexual a chegar (estes são ainda 100% de mulheres).
”O número de denúncias é reduzido. Acreditamos que pelas dificuldades de prova as vitimas não se sintam encorajadas a denunciar; algumas pessoas que já estão “empoderadas” e consciencializadas é que começam a quebrar o silêncio”, avalia a técnico que também entende que algum trabalho que já está a ser feito começa a dar resultado.
“A nossa intervenção é ouvir a vítima e encaminhá-la aos serviços competentes, nomeadamente a polícia para posterior encaminhamento á procuradoria”, esclarece para acrescentar depois que o ICIEG também faculta, em certa medida, apoio psicológico e jurídico.
Reconhecendo no Ministério Público um parceiro interessado, admite no entanto a necessidade de uma pressão constante para que os casos de VBG tenham a devida atenção.
Ainda que com tão poucos casos de vítimas de assédio que recorrem aos seus serviços, o ICIEG contempla no seu PNVBG todo o tipo de violência baseada no género.
“Está la ressalvada a necessidade de conhecermos a real situação [sobre o assédio] e traçar a estratégia de combate. Trazer a discussão sobre tema à sociedade. Mas já temos avançado com algumas acções de sensibilização nas comunidades. O nosso público-alvo é composto por ambos os sexos, não apenas mulheres. Em toda esta questão da VBG trabalhamos não apenas no empoderamento das mulheres mas também com os homens para a mudança de comportamentos. E não me refiro apenas aos agressores mas também consciencializar aqueles que são vítimas de que podem e devem denunciar”, esclarece Eveline Tavares.
Voltando à questão das denúncias, tanto Nina como Joelma integram parte submersa desse enorme iceberg que é o número de vítimas de assédio sexual. Ambas acabaram por não apresentar uma queixa na polícia.
Joelma nem sequer contou o episódio vivido na Boa Vista aos pais. A história vivida no ginásio, contou-a de imediato à mãe a quem manifestou a vontade de se dirigir à polícia para apresentar queixa.
“Ela disse-me que na polícia eles iriam é rir-se de mim. Acabei por não ir porque senti que não ia dar em nada”, admite a empresária.
“Eu percebo que em Cabo Verde este tipo de comportamento por parte dos homens é aceite como normal. Então senti-me num polo à parte, que iria contra algo que já está estabelecido, numa sociedade onde o machismo está interiorizado”, diz algo resignada.
No caso de Nina, ela estava decidida a efectuar a queixa formal. Apesar de, ao ter abordado um amigo advogado, esse a ter desencorajado em relação a um processo por assédio sexual – aconselhando-a a focar-se na questão dos salários por pagar – ela é um dos casos registados no ICIEG, que procurou em busca de apoio.
Não obstante possuir várias das mensagens inconvenientes enviadas pelo seu assediador gravadas no seu telefone que pretendia usar como prova, a falta de disponibilidade das testemunhas da situação pela qual passou acabou por paralisá-la.
A colega que fora vítima do mesmo individuo tinha medo de falar. O pai é doente e não queria submetê-lo àquele transtorno. Outra testemunha disse-lhe que o chefe era “bem relacionado”, tinha “conections” e por isso o mais certo era a queixa dar em nada.
Nina sabe de pelo menos mais uma vítima, alguém que no passado trabalhou sob as ordens do mesmo individuo e passou por horrores semelhantes, mas que também acabou por não o denunciar nem expô-lo de alguma forma.
Reconhece que esta cadeia de vítimas silenciosas favorece o perpetuar do comportamento predador do assediador, que hoje continua a gozar de algum prestígio social e ocupa um cargo de confiança.
“Eu queria que ele pagasse por tudo o que ele me fez. Sinto-me revoltada por tudo o que passei, e por vê-lo impune e continuando num cargo de prestígio profissional. Ele tem tudo: casa, um bom emprego, família… Ele não teve que começar tudo de novo como eu”, constata a jovem.
Com tão pouca disponibilidade das testemunhas, muitas vezes pelo mesmo medo que leva poucas vítimas a denunciar, garantir meios de prova torna-se fundamental.
“Antes, uma mensagem ou uma fotografia não eram aceites como meio de prova mas hoje já são”, diz-nos a técnica do ICIEG. Esta mudança terá a ver com o advento das redes sociais e o crescimento de casos de assédio com recurso a elas, nomeadamente através de mensagens e fotografias de cariz sexual não solicitadas. “O debate social mostra que há necessidade de aceitar estes como meios de prova se não fica ainda mais difícil para uma vítima ver a sua denúncia aceite”.
O debate social a que se refere aconteceu em Março de 2017 durante o I Fórum “Assédio Sexual no Local de Trabalho”, organizado pela Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género (ACLCVBG) em que se pretendia “dar visibilidade e tratar o assunto em toda sua amplitude, além de reflectirmos sobre a realidade do nosso país no que toca a essa violência e o que se tem feito e o que se pode fazer para combatê-la”.
Do encontro, em que participaram como parceiros a ONU Mulheres, o ICIEG, e a embaixada do Grão-Ducado do Luxemburgo em Cabo Verde, saíram como recomendações a necessidade de uma campanha junto às instituições ligadas ao mundo laboral (casos da Direcção Geral de Trabalho, dos sindicatos, representantes de entidades patronais como as câmaras de comércio, associações empresariais, etc.); a criação de uma Rede de Combate ao Assédio Sexual no Local de Trabalho; a sensibilização do INE para a introdução desta temática nos módulos de inquérito de estudos nacionais; a criação de planos de comunicação e de sensibilização para a denúncia; a socialização da problemática através da comunicação social, a revisão da lei sobre o assédio sexual, entre outros pontos.
#miTambé
“O assédio sexual punido por lei em Cabo Verde, é, visivelmente, um tipo de violência resultante de uma relação social de opressão entre homens e mulheres, é uma violação da dignidade da pessoa humana e do direito ao meio ambiente de trabalho saudável e equilibrado, e pode ser eliminado se houver mobilização em torno do assunto”, apontou Vicenta Fernandes, presidente da ACLCVBG, durante o referido fórum Assédio Sexual no Local de Trabalho.
Embora o encontro se cingisse à questão do assédio sexual no local do trabalho – aquele descrito na lei e nela contemplado com medidas punitivas – nele também se abordou, ainda que em menor profundidade, outras formas de assédio sexual, ainda não criminalizados, nomeadamente o assédio de rua. Esse que é alvo de todo o tipo de discussões polémicas.
“Eu tinha 12 anos quando um dia, com as minhas primas e amigas, saímos para ir à praia. Fomos seguidas no caminho por um grupo de rapazes em grade barulhada. Eles riam, faziam comentários sobre o nosso corpo e diziam em que partes iam reparar mais quando tirássemos a roupa. Alguns até disseram que iam se masturbar “para nós””, conta “Leila”, hoje com 34 anos.
“Eu estava assustadíssima. Eram rapazes de 16, 17, 18 anos. Havia uns de 10, 12 anos que iam no grupo e repetiam as falas e os gestos dos mais velhos. Nenhuma de nós tirou a roupa quando chegou na praia. Algumas tomaram banho com a roupa mesmo. Outras, como eu, nem entraram no mar”, continua a mesma, acabando por revelar que, depois desse episódio, sempre que via na rua um grupo de rapazes ou de homens ficava ansiosa e desviava o caminho.
Não é difícil encontrar por aí relatos como os de Leila. A própria jornalista que assina esta peça já testemunhou inúmeras vezes pelas ruas da cidade adolescentes sendo seguidas por homens que lhes dirigem palavras e gestos indecorosos.
Para esta reportagem falamos com um grupo de mulheres adultas e todas tinham histórias de episódios em que, ao circularem nas ruas – e em alguns casos até no trabalho, no ginásio ou outro espaço público – se sentiram constrangidas ou condicionadas na sua liberdade e no seu direito de ir e vir por comentários e gestos que um homem, ou grupo de homens, lhes dirigiu.
A maioria, admitiu sentir-se satisfeita ao ouvir na rua “ei, bonita” ou, em alguns casos mesmo “ bo sta boa”. Afinal é tido como manifestação da aprovação masculina aos seus corpos que a sociedade sempre incentivou as mulheres a esperar e almejar. Mas a coisa muda de figura quando os comentários tornam-se insistentes e “sobem” de tom, com referências obscenas a partes do corpo e gestos “sugestivos”.
“Importunada”, “incomodada”, “atacada”, “constrangida”, “agredida”, “assediada” e “violentada” foram algumas das palavras que a maioria das mulheres com as quais conversamos usaram para descrever o que sentiram com essas abordagens.
O número de mulheres com quem conversamos não é representativo e não podemos aqui afirmar que as respostas traduzem o sentimento da maioria das cabo-verdianas. Até porque da conversa com todos os que entrevistamos para esta reportagem sai uma mesma ideia, manifestada de diferentes maneiras pelos nossos interlocutores: a de que o assédio é algo culturalmente naturalizado no comportamento masculino. O que, infelizmente, leva a que as vitimas tendam a não identificá-lo como tal, a submeterem-se silenciosamente e a não denunciar.
E os homens no meio disto?
Sempre que se inicia uma discussão sobre assédio, ou outro tipo de VBG, alguém logo lembra que os homens também são vítimas. Sim, estudos comprovam que os homens também sofrem assédio sexual. Mas a comparação acaba por trazer ao de cima a desproporcionalidade, ou seja acontece em número bem mais reduzido. E muitas vezes o agressor é outro homem. Foi o que aconteceu em Hollywood, em que homens homossexuais foram a maioria do seu género nas denúncias #metoo mas, mesmo os heterossexuais que denunciaram ou comentaram que tinham sido assediados tiveram um homem como assediador e por isso dizem acreditar nas mulheres que contaram as suas histórias. Inclusive não acreditam que elas tenham provocado o assédio de que foram vítimas pela roupa que vestiam ou algum tipo de comportamento.
Também conversamos, em separado, com alguns homens sobre esta temática e alguns pontos comuns emergiram. Como a ideia de que as mulheres “gostam” de ser abordadas nas ruas, quer seja por um individuo quer seja por um grupo. E se manifestam desagrado é porque na verdade estão a “fazer fita”, ou seja a fingir que não gosta ou a “fazer-se de difícil”.
Muitos admitiram que só abordam dessa forma uma mulher quando estão em grupo, para se sentirem integrados. Apenas dois admitiram que houve situações em que sabiam que estavam a deixar a mulher em questão desconfortável com os comentários, mas que “não conseguiram” conter-se. Todos os com quem conversamos estão de acordo em como tocar de forma insistente numa mulher que diz “não” e forçar um beijo ou algo mais é “inaceitável” e, em ambiente laboral, “muito pior”.
Também neste caso a nossa pequena amostra de entrevistados está longe de ser expressiva para se tomar como representativa do comportamento e ideias dos homens cabo-verdianos sobre esta matéria. Mas acreditamos que são pistas relevantes para se analisar o assunto.
“Acredito que muitos homens usam o assédio para nos desarmar. Por exemplo, numa conversa, numa troca de argumentos, se sentem que a mulher está a “ganhar” mudam a conversa e introduzem comentários sexuais, sobre corpo, etc. para constranger a mulher. Outras vezes é um assédio latente”, analisa a antropóloga Celeste Fortes que nos estudos de género que realiza tem buscado um olhar mais aprofundado aos homens.
“Mas eu acredito que há várias formas de ser mulher e de ser homem e o ponto de partida para este debate é assumir que o assédio pode partir tanto da mulher como do homem”, sugere ao mesmo tempo que admite “receio de encarar esta questão só do lado masculino”, ou seja, apenas com os homens no papel de agressor.
O psicólogo Jacob Vicente vê o assédio sexual como “um comportamento caracterizado por um forte pendor machista a que os homens são educados e a que podemos denominar de tentativa de afirmação de masculinidade”. O mesmo também analisa que a educação recebida pelos homens os impede de ver o limite imposto pela outra pessoa, a pessoa que “querem”.
Jacob Vicente diz que a construção de uma nova identidade masculina é mais do que “necessária”. “É urgente. Entretanto, para diferentes países ter-se-á que se ter diferentes modelos de acção, pois a cultura será sempre uma variável dependente nesta acção”.
Celeste Forte tem a sua própria visão sobre o papel da cultura: “Costumo dizer que a cultura mata. Temos uma visão bonita da cultura, de que ela mostra o que somos, etc., mas há limites. Por exemplo, eu nunca seria a favor da mutilação genital por ser algo que pertence a certas culturas”.
Indo concretamente ao tema aqui que trazemos, deixa avisos e sugestões quanto à abordagem que se deve fazer agora que o assunto começa a ser discutido.
“Importamos muitas campanhas internacionais quando é preciso ter em conta as nunces socioculturais”. E acrescenta mais adiante:
“Não balizar, criar grupos homogéneos em vez de definir uns como vítimas e outros como agressores. Focar no combate ao assédio e não nas mulheres como vítimas de assédio”.
A investigadora também defende mais acções pedagógicas e debates mas, que estes não se prolonguem demasiado antes de se começar a agir.
“Muitos não sabem que o assédio é um crime, tomando-o como algo cultural. Muitas vÍtimas nem sabem que são vítimas de assédio. Não têm noção do seu direito a não ser importunadas”.
Olhando também mais à frente, Jacob Vicente alerta: “Esta é uma boa altura para repensarmos a nossa sociedade, repensar que futuro queremos para a próxima geração, e agir em conformidade. Ou seja, acredito que estamos na fase de construção de um homem com novos papéis social e novos desafios, entre eles, o de olhar para ela não como um objecto, não como um suporte, mas sim como uma parceira, como um indivíduo com o qual se complementa. E por isso devem um ao outro, entre outras coisas, respeito”.
- Lá Fora Segundo o jornal brasileiro Nexo, o psicólogo americano John Pryor estuda o comportamento de assediadores há 30 anos e criou um teste capaz de medir a propensão a esse tipo de ato. Entre os factores identificados pelo especialista como ligados à prática de assédio sexual estão a crença em papéis sexuais tradicionais de género, a falta de empatia, tendência à dominação e ao autoritarismo, ambiente de impunidade e posição de poder.
Recentemente, o assédio sexual ganhou as primeiras páginas dos noticiários internacionais quando arrebentou o escândalo envolvendo o poderoso produtor de cinema Harvey Weinstein. Desde então Hollywood viu-se sacudida por uma onda de denúncias, com várias figuras importantes da meca a confessarem-se vítimas de outras. O movimento #metoo (criado pela activista Tarana Burke) rendeu milhares de depoimentos e trouxe à superfície uma realidade assustadora para as mulheres.
E também para os homens. Um texto da revista New Yorker diz que os homens americanos assustaram-se com as denúncias do movimento #metoo e que começam a examinar e a questionar os seus comportamentos passados e a ter máxima atenção à forma de agir com mulheres no local de trabalho. Também estão a criar chatrooms masculinas para debater a questão do assédio.
Em Portugal, um estudo recente (2015) mostrou que em termos globais, 12,6% da população activa já sofreu pelo menos uma vez durante a sua vida profissional de assédio sexual no local de trabalho. É, segundo notícia do DN, um dos países europeus com números mais altos em relação a assédio (quer o sexual, quer o moral), e onde, actualmente, todos os dias são abertos dois inquéritos por assédio sexual.
Mas foi também em Portugal que há dois anos se aprovou a chamada “Lei do Piropo” que criminalizou o assédio de rua. O debate foi renhido e não foram poucas as mulheres que se posicionaram contra por entenderem que se estava a “exagerar” e a privar os homens do natural direito de “fazer a corte” a uma mulher. Do outro lado, defendendo a proposta (que na verdade é uma alteração à lei) apresentada pelo PSD, posicionaram-se aqueles que viam uma grande diferença entre oseduzir e importunar ou mesmo constranger uma mulher no seu direito de ir e vir. A alteração ao artigo 170º do Código Penal português, “importunação sexual” de modo a incluir as “propostas de teor sexual” acabou por acontecer muito graças ao factor “adolescentes”, também elas vítimas de assédio de rua e mais propensas a suscitar empatia aos legisladores. A lei passou assim a punir os perpetradores de tais “propostas” com pena de prisão até um ano, ou três caso sejam dirigidas a menores de 14.
Em 2010, a ONU lançou mundialmente a campanha Safe Cities and Safe Public Spaces (Cidades Seguras e Espaços Públicos Seguros) para evitar o assédio nas ruas em mais de 20 cidades no mundo, por meio de ações educativas e intervenções.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 849 de 07 de Março de 2018.