Movimento social pelos direitos LGBTI. Grandes Marcos

PorChissana Magalhães,29 jun 2018 11:16

​Esta sexta-feira, Praia é palco de mais um evento Praia Pride, enquadrado na Semana do Orgulho LGBTI. Foi há exactamente cinco anos – a 29 de Junho de 2013 – que Mindelo inscreveu Cabo Verde no grupo de países a organizar a parada do orgulho. Aos apelos à tolerância e à não discriminação juntam-se hoje na agenda dos activistas novas bandeiras, mais definidas e consequentes. Deitamos um olhar aos marcos a assinalar no percurso do activismo LGBTI em Cabo Verde.

Em Junho do ano passado, durante a Semana do orgulho LGBTI, a Associação Gay Cabo-verdiana anunciou em conferência de imprensa que iria iniciar uma campanha para levar à Assembleia Nacional uma petição com vista à mudança da lei para que passasse a estar nesta consagrado o casamento e a união de facto entre as pessoas do mesmo sexo. A reivindicação teria passado quase que desapercebida se o Expresso das Ilhas, na sua edição nº 814 de 4 de Julho de 2017, não retomasse o assunto, chegando a abordar as alas jovens dos dois maiores partidos sobre a sua posição em relação aos anseios da comunidade LGBTI, tendo ambas as organizações políticas admitido que tinham nas suas agendas a causa dos direitos LGBTI e terem programados encontros com as associações.

Seguiu-se então a partilha do artigo “Casamento Gay entra na Agenda Política do País” pelo secretário-geral do MpD e deputado da Nação, Miguel Monteiro, na rede social Facebook acompanhado do comentário “200% contra”, que conseguiu despoletar o maior debate público que o tema alguma vez teve e obrigou o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva e a presidente do PAICV Janira Hopffer Almada a se pronunciarem sobre o tema.

Entretanto, desde então, aparentemente nada mudou. Aparentemente. O facto é que Cabo Verde aderiu em finais de Março deste ano à rede mundial de defesa dos direitos das pessoas LGBTI. A adesão do Estado de Cabo Verde à Equal Rights Coalition foi formalizada pela presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género, Rosana Almeida. Esta rede, criada em 2016, tem por objectivo promover o respeito universal pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, destacando a protecção dos direitos fundamentais das pessoas lésbicas, gays, transexuais, bissexuais e intersexuais.

Este facto é visto por elementos da comunidade LBGTI e por activistas como um importante sinal de que as coisas estão a mudar. Outros, mais cépticos, pensam que mais uma vez assinam-se convenções que não vão sair do papel.

Outro sinal de que a consciência social pelos direitos dos homoafectivos cresce foi a realização recentemente na Universidade de Cabo Verde, de uma mesa redonda sobre homofobia, bifobia e transfobia. A Universidade pública tem já um historial de iniciativas do género. Desta feita o envolvimento da comunidade académica, nomeadamente dos alunos, na organização do evento foi notório.

A Universidade de Santiago começa também a promover discussões sobre estes tópicos e há meses juntou na mesma mesa activistas LGBTI e representante da Igreja.

A importância de ser Tchinda

Há 21 anos, em São Vicente, a homossexual Tchinda assumia-se publicamente. Uma reportagem do jornal A Semana trazia revelações da transexual que causaram reboliço por o assunto ainda ser tabu na esfera pública. Aliás, Tchinda e as que a ela se juntaram naqueles que seriam os primeiros passos de um movimento de afirmação foram ainda durante muito tempo referenciadas em tom jocoso.

Anita Faiffer, presidente da Associação Gay Cabo-verdiana, também fez parte destes tempos iniciais em que o activismo era feito principalmente através dos concursos de Miss Gay, e outros eventos de entretenimento, e de grupos carnavalescos.

No seu paper “Movimento social de homossexuais Cabo-verdianos: possibilidades e condicionalismos” (2009), Cláudia Rodrigues identifica as actividades das Travestis de Mindelo como o embrião de um movimento social e vaticinava que, caso as mesmas - desprovidas de capital social, cultural e político – não se aliassem a instituições sociais com esse capital dificilmente esse embrião evoluiria para um movimento social forte.

Mesmo sem um movimento social com uma agenda, em 2004 Cabo Verde faz cair do seu Código Lenal a lei que criminalizava a homossexualidade e previa como sanções o pagamento de multa e, em caso de reincidência, a prisão para quem consumasse actos sexuais com pessoa do mesmo sexo.

Esta evolução seria posteriormente registada pelo relatório de Direitos Humanos do Departamento de Estado dos Estados Unidos: “As disposições legais permitiram protecção para a conduta homossexual; no entanto, a discriminação social baseada na orientação sexual ou na identidade de género continua a ser um problema. Não há nenhuma organização activa de lésbicas, gays, bissexuais ou transgéneros no país”.

De facto, só em 2010 viria a ser formalizada a Associação Gay Cabo-verdiana, que teve um importante papel no engajamento de elementos da comunidade para o activismo. Isso na mesma altura em que um workshop organizado pela ONG espanhola Triângulo e pelo ICIEG veio a introduzir a clarificação de alguns conceitos, um ganho não só para os elementos da comunidade que participaram, mas também para o ICIEG que começava então a trabalhar essa temática.

Nos anos seguintes, ONGs como a Verdefam e Morabi começaram a desenvolver acções viradas para esse público, sobretudo na área da saúde sexual. Entretanto, o foco acabava por estar muito nos homossexuais transgénero feminino, que ao fim a cabo são os que até aqui têm dado à cara pela causa.

Em 2013, um novo marco: realiza-se a “1ª semana a favor da Igualdade das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais” em Cabo Verde. É ainda Mindelo a trazer esses ventos de mudança. No âmbito dessa semana acontece a primeira parada Mindelo Pride organizada pela Associação Gay. O evento é notícia até a nível internacional. Cabo Verde é o segundo país africano a ter uma Pride Parade.

Seriam precisos mais três anos para Praia, capital do país, vir a realizar uma marcha do Orgulho LGBTI. Dois factores terão contribuído enormemente para tal. Um deles foi a adesão de Cabo Verde, em 2015, à campanha “Livres e Iguais” das Nações Unidas. Uma vez mais o país destaca-se no panorama do continente onde só a África do Sul está á frente (nesse país o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legal e a homofobia é criminalizada pela lei).

Com a cantora e compositora Mayra Andrade como embaixadora, a campanha é sobretudo de sensibilização para a aceitação, a tolerância e a não-discriminação, promovendo a plena inclusão das pessoas LGBTI no usufruto dos direitos humanos, dos direitos fundamentais. Mayra Andrade tem protagonizado vídeos com as mensagens da campanha e trouxe também alguns artistas para ajudar a espalhar a mensagem. O rapper Hélio Batalha foi um deles, e que terá contribuído para chamar a atenção de um público mais jovem e suburbano (no contexto de Praia). Desde então, da classe artística não param de surgir manifestações de apoio em forma de música. Nissah Barbosa e Hilário Silva, e depois Elly Paris (cujo vídeo do tema “Konde” trouxe “o primeiro beijo gay do audiovisual cabo-verdiano”), são disso exemplo.

No ano seguinte ao lançamento da campanha, Cabo Verde é apontado por um estudo da Afrobarometer como o país mais tolerante de África. Chegar aí não terá sido resultado directo e exclusivo da campanha mas sim um processo. Um processo onde Praia transforma-se no principal pólo do activismo LGBTI. É que as duas associações de defesa dos direitos LGBT até então existentes no país – a Associação Gay Cabo-verdiana e a Arcoiris – mudaram nos últimos anos a sua sede de Mindelo para a capital. E entretanto surgiu uma nova: a Associação LGBTI - Praia, constituída principalmente por jovens lésbicas.

“Temos que estar onde o poder está, temos que estar mais próximos dos decisores políticos”, explica Anita.

Essa consciência da necessidade de uma luta mais política, com bandeiras bem definidas, é recente e resulta do caminho percorrido em que os elementos das associações foram se empoderando.

A iniciativa de trazer o casamento e a união de facto para a agenda foi das próprias associações. No ano passado, durante a Semana do Orgulho LGBTI, a presidente da Associação Gay deu voz à reivindicação da comunidade pelo direito ao casamento e à união de facto. O que se seguiu já aqui referimos.

O casamento homossexual não entrou (ainda) na agenda política do governo, nem dos partidos. Mas entrou na agenda política do país, já que política designa aquilo que é público e não, redutoramente, o fazer dos políticos eleitos.

Do ano passado para este ano não ficou pronta a anunciada petição para alteração do artigo 1554º do Código Civil que dita que o casamento é “a união voluntária entre duas pessoas de sexo diferente. Do debate gerado, surgiram posições a defender a inconstitucionalidade deste artigo estribadas numa certa leitura do artigo 47.º, n.º 1 da Constituição da República que diz ‘‘todos têm o direito de contrair o casamento sob a forma civil ou religiosa”.

A petição para que esse “todos” seja mais inclusivo está ainda a ser ultimada por um advogado. O movimento LGBTI entendeu por bem, por agora, avançar somente com o pedido em relação ao reconhecimento da união de facto entre pessoas do mesmo sexo, ou seja, alteração do artigo 1563º do Código Civil. Outra exigência a ser contemplada na petição – que terá versão online e impressa – é a de introdução no Código Penal de leis que punam a discriminação contra homossexuais e transgéneros.

A petição deverá dar entrada na Assembleia Nacional ainda este ano. O que então se irá passar poucos se atrevem a prever com certezas. Afinal, faltam três anos para as próximas eleições.

Voltando ao paper da investigadora Cláudia Rodrigues, ela alerta no documento para o papel preponderante que uma poderosa instituição do país joga na mobilização para o movimento LGBTI: a Igreja.

“A Igreja apresenta-se como o grande “modelador” de opiniões de massa e como instituição de regulação moral da população cabo-verdiana. Logo, existe uma articulação entre a influência social da igreja na população e a política praticada no país. Apesar de sermos um Estado laico, a Igreja é muito respeitada pelos partidos políticos. Caso os partidos políticos aliarem-se a um movimento gay, poderá traduzir-se num risco eleitoral”.

Entretanto, com o perceptível crescendo de apoios que o movimento vem angariando de cidadãos não homossexuais, até às próximas eleições os partidos poderão também ter que equacionar os riscos de ignorar um eleitorado cada vez mais liberal. Isso e os parceiros internacionais que continuam a ser os principais contribuintes ao desenvolvimento do país.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 865 de 27 de Junho de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,29 jun 2018 11:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  30 jun 2018 10:21

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