Cimeira da CPLP: Ir e vir, sem nada a impedir

PorJorge Montezinho,21 jul 2018 9:55

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CIMEIRA DA CPLP NO SAL
CIMEIRA DA CPLP NO SAL

​Mobilidade é a palavra-chave da XII conferência de chefes de Estado e de Governo da CPLP. Os cidadãos pedem-na, os empresários desesperam por ela e até já os políticos admitem que é fundamental. É claro que não acontecerá num passe de mágica, mas a presidência da CPLP por Cabo Verde, assumida esta terça-feira, poderá acelerar o processo, que será sempre faseado.

Livre circulação de pessoas e bens, acabar com as barreiras fronteiriças entre as nações da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, autorização automática de residência em casos particulares, para já. As ideias repetiram-se nas intervenções dos principais actores ainda antes da abertura oficial da Cimeira que junta à mesma mesa, até esta quarta-feira, os Chefes de Estado e de Governo lusófonos, com a excepção do presidente de Timor-Leste.

António Costa, Primeiro-Ministro de Portugal, disse-o à chegada ao Hotel Hilton, no Sal, palco deste encontro do mais alto nível. “A agenda que foi proposta pela presidência cabo-verdiana mostra que estamos focados no que é mais importante que são os cidadãos dos países da CPLP. Estou convicto que desta cimeira sairá uma CPLP mais forte, mais empenhada na resolução dos problemas globais e em simultâneo mais focada nos interesses e na protecção dos seus cidadãos, seja no reconhecimento de diplomas seja na questão da mobilidade”.

Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República portuguesa, secundou o Chefe do Governo luso, “Portugal é um defensor da mobilidade, da livre circulação. Vamos ver se conseguimos encontrar esquemas flexíveis para conseguirmos um objectivo comum em realidades que são diferentes. O espirito do Sal pode ajudar a reforçar esse espirito”.

Optimista por natureza, o Chefe de Estado português acrescentou que actualmente é ainda mais fácil ter esta visão positiva do futuro. “Na cimeira de Brasília fui optimista e naquela altura era difícil ser optimista, porque o panorama mundial, mesmo no quadro da CPLP, não era muito fácil. Hoje, é mais fácil ser-se optimista porque foram dados passos positivos, países a países, no sentido da convergência, do diálogo, da aproximação, e estão marcados mais passos. É um processo contínuo e calha numa altura boa, com uma presidência importante e, esperemos que também com o contributo do secretário executivo, o surgimento de ideias muito claras e fazíveis, quanto às pessoas, quanto à cultura, quanto aos oceanos e depois quanto à abertura ao mundo. Vamos ver se essas expectativas são concretizadas”.

Cabo Verde, que assumiu a presidência da CPLP até 2020, também acredita que as expectativas são boas, como sublinhou o Presidente Jorge Carlos Fonseca ao Expresso das Ilhas. “Pelo que sei dos resultados das reuniões dos embaixadores e dos ministros de segunda-feira as coisas correram bastante bem. Daquilo que esperávamos em relação aos temas centrais da cimeira, os projectos são consistentes, bastante razoáveis, vamos ver se os Chefes de Estado subscreverão essas declarações. Depois, é o trabalho da presidência durante os próximos dois anos para concretizar aquilo que são portas abertas em termos de mobilidade, de cooperação económica e financeira, de economia do mar, para que daqui a dois anos possamos dizer que avançamos claramente na credibilidade, na força e nas metas da CPLP”.

Mas afinal, de que tipo de mobilidade estamos a falar? E para quem? Mais importante, talvez, quando será possível circular livremente pelos países da comunidade? O Expresso das Ilhas falou com Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, para tentar encontrar respostas para estas questões. “Para começar”, diz o governante português, “é preciso distinguir duas coisas para perceber bem o que está em causa, uma coisa é o regime de viagens de curta duração, tipicamente, viagens turísticas. Essas viagens implicam visto para os países em relação aos quais a União Europeia exige visto, que é a generalidade dos países da CPLP. Neste caso, e os vistos que são concedidos são os chamados vistos Schengen, porque o acesso a Portugal significa o acesso aos países europeus que fazem parte do espaço Schengen e as regras que Portugal tem de utilizar são as regras de Schengen. E portanto os vistos são concedidos em função dos requisitos preenchidos pelas pessoas, isso é um caso”.

“Outro caso, completamente diferente, é o relativo às autorizações de residência. Nesse caso, são vistos de longa duração, são autorizações, que normalmente são feitas numa base anual e renovadas para as pessoas trabalharem, estudarem ou residirem, se forem, por exemplo, reformados, em Portugal”.

A proposta que Cabo Verde e Portugal apresentaram na CPLP diz respeito a estas autorizações de residência. Por exemplo, para entrar em Portugal as pessoas têm de ter um visto, mas depois em Portugal têm, ou não, a autorização de residência para poderem estudar, para poderem trabalhar, para poderem empreender, ou para poderem residir. “O que nós propomos”, explica Santos Siva, “é que neste caso as autorizações de residência sejam atribuídas automaticamente no universo da CPLP, e o único critério que é necessário preencher é o critério da nacionalidade. Se um moçambicano pedir uma autorização de residência em Portugal para estudar ela é-lhe concedida. Porquê? Porque ele é moçambicano. Se um guineense pedir uma autorização de residência no Brasil para estudar ela é concedida, porquê? Porque ele é guineense, e assim sucessivamente”.

À primeira vista, parece simples, mas para que este regime seja possível são precisas três condições: primeiro que as habilitações académicas dos países da CPLP sejam reconhecidas uns pelos outros. “Se eu tiver um visto para residir no Brasil para frequentar um ensino superior de arquitectura, mas não me for reconhecida a minha habilitação académica do 12º ano, não faz qualquer sentido”, resume o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

A segunda condição é que as qualificações profissionais sejam também reconhecidas, “isto é que um engenheiro brasileiro possa trabalhar em Portugal, que um técnico de manutenção industrial português possa trabalhar em Angola, e assim sucessivamente”. E a terceira condição é a chamada portabilidade dos direitos sociais, “isto é, se eu trabalho durante dez anos em Cabo Verde, desconto para a segurança social em Cabo Verde, mas devo poder, quando me reformar em Portugal, que estes dez anos que descontei em Cabo Verde possam contar para a pensão em Portugal e reciprocamente”.

“A melhor maneira que tenho para explicar isto é por uma comparação”, diz Santos Silva. “Neste momento temos os chamados vistos Gold em Portugal, isto é, estrangeiros podem ter uma autorização para residir em Portugal durante um ano, renovável, com a possibilidade de agrupar a família, etc., se investirem mais de meio milhão de euros, em aquisição de imobiliário, em transferência de capitais, ou criando postos de trabalho. O que estamos a fazer é uma espécie de vistos CPLP. O critério deixa de ser a transferência de capital ou investimento, mas passa a ser a nacionalidade de países da CPLP. Esta é a proposta e é muito simples”.

E a grande dúvida, estes vistos CPLP serão para toda a gente? “A proposta portuguesa e cabo-verdiana é para toda a gente, agora há aqui duas ou três dificuldades”, sublinha o governante português. “A primeira é que por vezes se confunde esta mobilidade com a isenção de vistos para as viagens de turismo, isso não é possível, porque Portugal tem de aplicar as regras de Schengen e não pode ter regras próprias nos vistos até 90 dias. A segunda dificuldade é haver o receio que isto possa significar uma fuga de cérebros por exemplo de Moçambique para Portugal ou para o Brasil, do Brasil para Portugal, de São Tome e Príncipe para Angola, descapitalizando os países com níveis de desenvolvimento menos avançados em relação a outros. Compreendemos este receio, mas o nosso argumento é chamar atenção para a realidade empírica, isto é, os fluxos de migração, no médio prazo, tendem a compensar-se. Já houve uma altura em que os jovens portugueses demandavam o Brasil, agora há mais um percurso em sentido contrário, mas a médio prazo isto tende a equilibrar. A terceira dificuldade é de implementar isto de um dia para o outro, e daí que a proposta que Cabo Verde vai apresentar faz sentido, porque o que Cabo Verde vai dizer na cimeira é: estamos de acordo que devemos avançar com maior liberdade de circulação no interior da CPLP, estamos de acordo que não é possível avançar já para toda a gente, por isso vamos avançar primeiro para estudantes e professores (mobilidade académica), para artistas e agentes culturais e para agentes económicos e empresariais. E vamos ver que dificuldades isso coloca antes de generalizar”.

Este é o cenário actual em cima da mesa, ou que estará em cima da mesa, mas isso não significa uma aceitação imediata. São Tomé e Príncipe, por exemplo, que já aboliu os vistos para todos os cidadãos da CPLP para estadias até 15 dias, não está muito virado para uma circulação parcial. “Nós queremos plena mobilidade. Para os nossos povos. Dentro do espaço da organização”, como disse ao Expresso das Ilhas o Presidente da República Evaristo Carvalho.

O ou tudo ou nada é repetido também pelo presidente da Câmara do Comércio do Sotavento, Jorge Spencer Lima. “Não podemos continuar a ter uma comunidade sem mobilidade. Ponto final. Comunidade sem mobilidade não existe e aí são os políticos que tem de criar o ambiente apropriado. E não o façam com paninhos quentes, facilitar os empresários, etc. Não, a mobilidade tem de ser global. Deixem as pessoas andar de um lado para o outro. Confiem nas pessoas. Uns vão, outros vêm, deixem que as pessoas conversem, convivam, é isso que compete aos políticos. Têm feito declarações nesse sentido, mas na prática ainda não fizeram nada”.

Na segunda-feira, depois da reunião da Confederação de Empresários da CPLP, este organismo propôs avançar já com a mobilidade entre os países africanos de língua portuguesa se as regras de Schengen representarem um impedimento para Portugal.

Até porque, como refere Spencer Lima, a CPLP, actualmente, para os empresários tem sido um zero. Nada. Mas poderá vir a ser muito importante. “Isso vai depender da vontade dos políticos. A CPLP tem sido uma comunidade de políticas, de diplomacia, mas no mundo de hoje, o cimento das relações entre os países são as relações empresariais e económicas. É evidente que as relações políticas são necessárias, e sem relações políticas não vamos lá, mas são as duas faces da mesma moeda. Daí que a CPLP precise de levar em conta, urgentemente, o lado económico, o lado empresarial, até para que as populações vejam que há vantagens em pertencer a uma comunidade. Se não, é uma comunidade de políticos e tem um fim muito depressa”.

A mobilidade económica e empresarial tem sido outro dos tópicos que tem dominado as conversas nos bastidores da cimeira.

Cabo Verde, já se sabe, pretende avançar com medidas para acabar com a dupla tributação entre os países da CPLP, e para proteger os investimentos. E esses já serão passos importantes, na opinião de Spencer Lima. “Primeiro, estamos a procurar a segurança jurídica para que os investimentos possam ter lugar. Porque ninguém sai do seu país para ir investir noutro país se não tem o mínimo de clareza no que vai fazer e se não tem a segurança, sem saber que põe lá o dinheiro e depois vem outro e fica com ele. É preciso dar essa segurança jurídica aos empresários e às empresas, para que possa haver essa deslocação de um espaço para o outro e para que a CPLP seja um espaço económico. Temos de ter essa garantia e garantia de retorno, porque as empresas não são instituições de caridade. Têm responsabilidade social, mas não são instituições de caridade”.

Sendo assim, na visão dos empresários, o que seria uma boa cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa? “Uma que tenha o lado económico também presente”, diz o presidente da Câmara de Comércio do Barlavento. “O lado político tem de estar sempre presente, os nossos países têm de ter boas relações para que os empresários tenham boas relações, mas o lado político já existe há muito tempo. Já não estamos a falar do período da independência, em que houve muita desconfiança, isso já acabou, já não faz sentido falar disso, agora falamos de amizade, de confiança, entre os povos. Falta o outro lado da moeda que já não são os políticos que o fazem, os políticos não fazem negócios, não importam, nem vendem, e essa parte é fundamental para tornar a CPLP numa organização capaz, credível e sobretudo útil para os nossos povos. Se não, não vale a pena”.

“Só quando a mobilidade entrar em funcionamento é que os cidadãos vão perceber a CPLP. Enquanto for conversa de políticos, ninguém quer saber disso”, conclui Spencer Lima.

Do outro lado, dos políticos, o Expresso das Ilhas foi tentar saber se é desta que virão as boas notícias para os empresários. Olavo Correia, Ministro das Finanças de Cabo Verde, diz não ter dúvidas que a resposta é positiva. “Penso que o engajamento politico é importante para criar a mobilidade, não só de pessoas como também de bens e de capitais”, diz. “E debaixo do engajamento político temos de ter projectos para que este plano possa ser sustentável e tenha solidez. Estamos engajados na criação do quadro para que haja a livre circulação de pessoas, bens e capitais, para que haja protecção de investimentos, uma rede de acordos para evitar a dupla tributação entre países, para que os investimentos possam circular livremente e possamos viabilizar parcerias entre os nossos empresários e empresas para explorarmos outros mercados, no quadro das sub-regiões onde estamos inseridos. Penso que é um bom momento, as perspectivas são boas, mas para elem do dia de hoje temos de continuar a trabalhar para termos instrumentos concretos que possam viabilizar o projecto económico da CPLP”.

O governante acredita que Cabo Verde, agora “chefe de fila” tem de imprimir uma dinâmica superior, mais acelerada, para que todas estas ideias possam tornar-se realidade. Mas este papel, sublinha, não pode ser assumido apenas pelos governos. “Os empresários também têm de proporcionar dinâmicas aos poderes públicos e políticos para que esses acordos possam existir”.

Para já, desta cimeira, sai uma novidade. Esta quarta-feira será assinado um compacto com o BAD para os países lusófonos, para que o Banco Africano de Desenvolvimento também possa actuar como um instrumento para facilitar o acesso ao financiamento por parte dos poderes públicos e dos privados que queiram investir no espaço da CPLP. Como explicou a Secretária Executiva da CPLP ao Expresso das Ilhas [ver entrevista] este acordo destina-se a projectos estruturantes. Cabo Verde já elegeu as áreas de actuação, como refere o Ministro das Finanças.

“Energia, agricultura, tecnologias, tudo o que tem a ver com industrialização, criação de emprego para jovens e a revolução tecnológica, são áreas estruturantes para o futuro”. Neste momento, o arquipélago já tem um acordo com o BAD, e que serve para financiar o aeroporto da Praia, o Parque Tecnológico, mas há outras novidades, como conta Olavo Correia. “Já estamos autorizados a avançar com os concursos para os portos do Maio e da Palmeira porque já há financiamento do BAD”.

Mas regressando ao compacto, qual é o valor disponibilizado? “É ilimitado”, responde o Ministro das Finanças, “vai depender da capacidade das empresas e dos empresários e dos projectos que forem colocados em cima da mesa. Terão de ser bancáveis, rentáveis, sustentáveis e que possam atrair capitais institucionais e privados. Se forem reunidas estas condições, haverá capital para financiar projectos que possam criar valor para o país”.

Mas voltemos à mobilidade, afinal o maior dos desígnios desta organização que se espalha pelos quatro cantos do mundo e com quase 300 milhões de pessoas. No discurso de abertura da Cimeira, e já depois de empossado como presidente da CPLP, Jorge Carlos Fonseca, Chefe de Estado de Cabo Verde, sublinhou, novamente, a relevância da livre circulação e assumiu o desafio de usar os anos do mandato para obter avanços significativos. No fundo, como resumiu o Presidente da República cabo-verdiano, só assim se terá uma verdadeira comunidade de povos e nações, “uma comunidade sentida e querida pelo mais simples e anónimo cidadão dos nossos países e na qual ele se reveja”.

Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal
Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 868 de 18 de Julho de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,21 jul 2018 9:55

Editado porChissana Magalhães  em  21 jul 2018 13:06

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