Não é altura para aventuras

PorJorge Montezinho,22 set 2018 9:28

​Professor no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, onde tem trabalhado, entre outras, nas áreas da Economia do Desenvolvimento e da História Económica e Social e Economia dos Pequenos Estados Insulares, João Estêvão foi um dos oradores na conferência sobre os 20 anos do Acordo de Cooperação Cambial. E em conversa com o Expresso das Ilhas, falou dos desafios que se colocam actualmente a Cabo Verde.

Disse na sua palestra que o principal desafio de Cabo Verde, antes de mais, é o estabelecimento de um modelo económico de desenvolvimento. Que modelo?

O que quero dizer é a necessidade de se tentar encontrar resposta para os estrangulamentos cíclicos. Continuamos a viver com actividades que funcionam, mas não se ligam a outras actividades. Por exemplo, o turismo tem pouca articulação com o resto, e isso corresponde a uma situação de fraca articulação dos sectores de actividade. E depois há o problema inter-ilhas, que também é muito grave. No fundo, há um problema de construção de um modelo que permita que se tire partido daquilo que vem de fora, como o turismo, e que permita que as diferentes ilhas também possam caminhar para situações, não digo iguais, mas semelhantes.

É um especialista em economia de desenvolvimento, porque acha que este modelo ainda não conseguiu estabelecer-se?

É uma questão complicada. Houve uma altura em que se pensou em Cabo Verde que seria possível que a transformação passasse por uma fase de criação de actividades industriais. Não digo industrialização. O que acontece posteriormente, sobretudo após a abertura, é que acabou-se por se assumir a ideia que a especialização de Cabo Verde é uma economia de serviços. Independentemente dos progressos que houve, a verdade é que houve uma relativa desindustrialização, o esgotamento da capacidade de algumas actividades e também tem estado muito longe da mente dos governantes a maneira de transformar outras actividades.

Como por exemplo?

Como por exemplo a agricultura. Porque não caminhar devidamente para uma situação de industrialização da agricultura? Cabo Verde tornar-se um país capaz de exportar certo tipo de produtos. Falta esta visão integrada da economia cabo-verdiana, integrada sectorialmente e integrada territorialmente. Essa é a grande questão.

Os problemas de Cabo Verde acabam por reflectir as dificuldades que atravessa o próprio continente, onde se deu o salto da agricultura para os serviços sem passar por essa fase da industrialização. Os níveis de desemprego dispararam porque as pessoas vieram do campo para as cidades, mas não têm a formação necessária para trabalharem nos serviços. Faltou, de facto, um passo?

Faltou um passo. Historicamente, a indústria desenvolveu-se muito absorvendo a mão-de-obra libertada pelos campos. E a actividade industrial tem uma outra função importante que é contribuir para o progresso tecnológico de um país, para a sua difusão, etc., ora, os serviços não fazem isso necessariamente. Portanto, este passo intermédio é fundamental para isso. É fundamental para a criação de emprego, é fundamental para gerar dinâmicas transformadoras na sociedade. Não me parece que os serviços façam isso e isso falta no modelo de desenvolvimento cabo-verdiano.

É assumido pelos governantes cabo-verdianos que o arquipélago não tem capacidade produtiva. Mas também é verdade que é um país que passou grande parte da sua existência a fazer reciclagem de ajuda externa. Faltou fazer também essa transição? Desabituar o país da ajuda externa e torna-lo produtivo por si mesmo?

Vamos lá ver uma coisa, na primeira fase dessa reciclagem da ajuda externa houve muito a ideia que Cabo Verde podia industrializar-se. Houve essa tentativa. Só que era uma ideia falsa porque Cabo Verde não tem dimensão para isso. Ou seja, a criação dessas actividades passa pela capacidade de existirem empresários cabo-verdianos que consigam construir parcerias com outros empresários. Com a ausência da dimensão, é necessário que a actividade a ser construída seja articulada com parcerias externas, sem isso não se consegue. O caso dos serviços, do turismo, é diferente. O turista vem, consome e vai embora. A produção industrial não funciona assim, tem de ser exportada e isso significa ter capacidade para isso. Ou o país é de grande dimensão e consegue fazer esse percurso, ou não tendo dimensão não faz isso sozinho. Não se cria emprego, não se transforma a produtividade de um país sem esse passo intermédio.

Falando um pouco do tema que o trouxe a Cabo Verde, o Acordo de Cooperação Cambial. 20 anos depois, podemos afirmar que o ACC cumpriu a sua missão?

Penso que no essencial cumpriu a sua missão. Cabo Vede conseguiu um ajustamento impressionante. Cumpriu. Tem uma inflação ao nível da europeia. Tem uma capacidade de reserva importante. E uma coisa curiosa, é que a própria população cabo-verdiana veio interiorizando isso. Hoje a população cabo-verdiana funciona perfeitamente em euros, isso é uma transformação colectiva muito grande. O acordo foi importante, teve sucesso e é uma aventura deixar o acordo e pensar noutras coisas.

Já vamos falar da aventura, mas antes disso, o aprofundamento do ACC será fundamental, ou deve avançar-se para a falada euroização?

O aprofundamento é mais técnico, é mais a resolução de questões pontuais. O aprofundamento não tem outro sentido que esse. Eu penso que, se as coisas continuarem como estão, mais tarde ou mais cedo a euroização vai acontecer. E se eu tenho algumas reticências é porque esse será um processo longo.

União monetária africana não recomenda.

Pessoalmente, não. Está mais do que provado que as diferenças são abissais. Isso não quer dizer que Cabo Verde não deva construir a integração na CEDEAO, agora, o acordo monetário não me parece que seja viável. São países praticamente sem contactos comerciais, com tradições institucionais diferentes, níveis de inflação diferentes. Seria uma aventura. O acordo é bom, resolveu muita coisa e penso que é nesse sentido que Cabo Verde deve seguir: na progressão com o acordo.

Voltando ao desenvolvimento. Uma última questão. Cabo Verde quer, há muito, a assumir-se uma plataforma de serviços. Há outros países que a estão já a desenvolver. Ainda há tempo ou já se começa a perder um pouco o comboio?

É preciso ver que plataforma se está a pensar. Aqui há um dado que é importante ter em conta em Cabo Verde quando se fala que podemos ser uma plataforma de serviços para a África Ocidental: a África Ocidental já tem uma potência de serviços que é o Senegal. Cabo Verde tem capacidade de concorrer com o Senegal? Penso que estas coisas são sempre muito interessantes, mas da minha formação de economista gosto de ver uma economia a construir coisas que se integram e permitam que se umas não funcionarem outras funcionam do que estar a dizer a nossa função é esta. Isso é mais complicado.

Ou seja, aquilo que defendeu há pouco, primeiro integrar, por exemplo, o turismo na economia local e integrar as diferentes ilhas na economia nacional e depois pensar no resto.

Naturalmente. Continuo a não ver muito sentido no modelo all-inclusive. O turista que vem cá deve ser um consumidor da economia local.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,22 set 2018 9:28

Editado porSara Almeida  em  24 set 2018 9:54

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