"A produção dos documentos oficiais de segurança é uma questão de soberania"

PorExpresso das Ilhas,24 set 2018 7:07

A 24 de Agosto, a Imprensa Nacional de Cabo Verde completou 176 anos de existência. O novo Presidente do Conselho de Administração, Miguel Ho Chi Minh Semedo, recebeu o Expresso das Ilhas para uma entrevista sobre os novos desafios, num contexto em um terço dos trabalhadores foram para a reforma antecipada e a empresa se prepara para edificar uma gráfica de segurança.

A Imprensa Nacional de Cabo Verde (INCV) completou, no passado dia 24 de Agosto, 176 anos de existência. Estamos perante uma das instituições de referência no panorama nacional?

De facto, a INCV é uma das instituições de referência e uma das mais antigas de Cabo Verde, que conta com 176 anos de atividade ininterrupta. A origem da Imprensa em Cabo Verde remonta precisamente o ano de 1842, com a instalação da Typographia Nacional na ilha da Boa Vista e a publicação do primeiro Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, posto a circular numa quarta-feira, dia 24 de agosto de 1842. Inicialmente, o Boletim Oficial era o veículo de publicação não só de diplomas legais, mas funcionava também como um autêntico jornal, contendo sínteses de notícias de diversas publicações nacionais e produções literárias de autores cabo-verdianos ou residentes em Cabo Verde, bem como as notícias vindas do estrangeiro, chegadas ao arquipélago “pela última embarcação”. A INCV, ao longo dos anos, passou por várias transformações e reestruturações, mas nunca deixou de publicar regularmente o jornal oficial de Cabo Verde, que leva ao conhecimento dos cidadãos as leis e os demais atos legislativos da República. Neste sentido, a INCV não só é uma das instituições mais antigas do país, como também uma das mais importantes, por desempenhar uma função nuclear na materialização diária de um Estado de Direito Democrático.

O que marca o 176º aniversário da INCV?

A empresa passa por uma fase de reestruturação organizacional e de desenvolvimento empresarial, sob a gestão de um novo Conselho de Administração, empossado no início do mês de Julho, e viu recentemente concluído um longo e difícil processo de reforma antecipada de cerca de um terço dos seus trabalhadores. O 176º aniversário da INCV está particularmente recheado de simbolismo, na medida em foi o último que muitos trabalhadores comemoraram no ativo. A data serviu para assinalar a conclusão de uma longa, intensa e rica jornada de trabalho para alguns dos membros da família INCV. Os 176 anos representam também um ponto de viragem, o início de um novo ciclo, em que, para além da edição e publicação do Boletim Oficial, a INCV prepara-se para passar a prestar um outro serviço essencial ao país, que é a produção dos documentos oficiais de segurança, nomeadamente o passaporte e o cartão nacional de identificação. Portanto, a edificação de uma gráfica de segurança representa hoje o grande desafio que a INCV tem pela frente.

Relativamente à reforma antecipada dos trabalhadores da INCV, o que justificou este regime especial, que abrange, como disse, cerca de um terço dos seus colaboradores?

Estamos a falar de mais de duas dezenas de trabalhadores, que têm mais de 50 anos de idade e mais de 34 de serviço. Muitos começaram a trabalhar com cerca de 14 anos e já contam com mais de 40 anos de serviço na empresa. São trabalhadores que ainda não chegaram à idade da reforma por velhice, mas que têm uma longa carreira contributiva. Por outro lado, o tipo de trabalho que prestaram, em especial no âmbito da gráfica tradicional, e o contacto com certos materiais, justificam a aposentadoria antecipada. As negociações entre os trabalhadores, sindicatos, a INCV e o Governo iniciaram desde 2014. Mas só em 2018, foi aprovado o diploma legal que aprovou o regime de aposentadoria antecipada. E os trabalhadores, no início do mês em curso, depois de mais de três décadas de trabalho e de serviço público, foram merecidamente para casa.

Disse que o processo foi longo e difícil. Porquê?

É uma enorme conquista para os trabalhadores beneficiados, pois representa o culminar de um longo e difícil processo, que se iniciou desde 2014 e cujo final se deve ao contributo e à boa vontade de todos os intervenientes, desde os sindicatos, a Administração da INCV e do Governo atualmente em funções, que não poupou esforços para que fosse possível encontrar uma solução satisfatória, que fosse ao encontro das expectativas legítimas dos trabalhadores, mas também dos interesses da empresa. A questão principal que ditou a demora na conclusão do processo tem a ver com o financiamento das pensões de reforma. Vários cenários estiveram em cima da mesa. Depois de muitas negociações, o Governo aprovou no início deste ano um diploma que consagra o regime de aposentadoria antecipada dos trabalhadores da INCV, com uma pensão equivalente a 100% do salário que auferem no momento, pensão esta que será suportada na sua totalidade exclusivamente pela INCV.

E neste processo qual o ganho da INCV?

É certo que a INCV acaba por perder experientes trabalhadores, com um grande know how, mas faz parte do ciclo natural da vida profissional. Desde há muito que a INCV já vem se preparando internamente para fazer os ajustes necessários em virtude da saída concomitante de vinte e um trabalhadores, afetos aos mais diversos sectores da empresa. Por outro lado, considerando que uma boa parte dos trabalhadores estavam ao serviço da empresa desde 1968, o redimensionamento e a renovação do quadro de pessoal da INCV constituíam uma necessidade premente. Esta renovação é também justificada face aos novos desafios que a INCV tem pela frente, novas atividades que pretende desenvolver, como a gráfica de segurança, que implicam a contratação de trabalhadores especializados. Não significa que com a saída destes trabalhadores vamos proceder à sua substituição em termos absolutos. Não podemos nos esquecer que as pensões de reforma antecipada serão suportadas exclusivamente com capitais próprios da INCV. Assim sendo, a contratação de novos colaboradores, a curto e médio prazo, deverá ser cirúrgica e de acordo com as necessidades imperiosas da instituição. O importante aqui é saber racionalizar e gerir de forma mais eficiente o quadro pessoal da empresa.

Um dos grandes desafios que a INCV tem pela frente é a produção dos documentos oficiais de segurança. Para quando está previsto o início desta atividade?

O maior projeto que a INCV tem na presente data é a implementação de uma gráfica de segurança, que se aproxima dos padrões internacionais, e que permitirá ao país produzir, a nível interno, e a médio prazo com autonomia total, os documentos oficiais de segurança, o passaporte e o cartão nacional de identificação. Uma gráfica de segurança traduz muito mais de que um salto gigantesco rumo à construção de uma empresa robusta. É sobretudo uma resposta afirmativa ao repto despoletado pela crescente necessidade do país de acompanhar a evolução dos tempos e às injunções de um mundo globalizado, onde a segurança assume cada vez mais um papel central. Mas como deve imaginar, uma gráfica de segurança exige investimentos avultados a nível de tecnologia, máquinas, engenharias, recursos humanos especializados. Impõe remodelações substanciais das nossas infraestruturas, entre outras ações e medidas. Para a materialização deste projeto o apoio do Governo será essencial, bem como o recurso a parcerias estratégicas, pelo menos na fase inicial. O caminho a percorrer é longo e complexo. Temos de avançar de forma gradual, mas firme, para que uma gráfica nacional de segurança seja uma realidade no futuro próximo. Obviamente que alguns passos já foram dados e perspetiva-se que, já no próximo ano, estaremos em condições de personalizar os passaportes e os cartões nacionais de identificação no país.

Significa que o problema da demora na emissão dos passaportes estará em breve resolvido?

Pelo conhecimento que temos, o tempo de espera já foi significativamente reduzido pelas autoridades competentes e foi garantido que, a curto prazo, estará completamente normalizado. A produção dos documentos oficiais de segurança é uma questão de soberania e a INCV tudo fará para prestar mais esse serviço público ao país e espera estar à altura da demanda dos cabo-verdianos. Queremos dar o nosso contributo. Estamos cientes de que o processo de produção é complexo, exige investimentos a larga escala e que temos de avançar paulatinamente. Mas com a ajuda do Governo e de outros players, a gráfica nacional de segurança será efetivamente uma realidade. Numa primeira fase contamos apenas personalizar os documentos, para só depois reunir as condições necessárias para a produção autónoma e integral dos mesmos. Conseguir no próximo ano que a personalização seja feita no país representará um grande passo neste processo, será efetivamente um substancial ganho para o país e para os cabo-verdianos e permitirá simplificar o processo atual de feitura.

Uma das principais atividades da INCV é a edição e publicação do Boletim Oficial, hoje de acesso universal e gratuito. Quais são os principais desafios neste setor?

A missão primeira da INCV é e continuará a ser a edição e publicação do Boletim Oficial (BO), hoje essencialmente eletrónico. No início de 2017 o BO tornou-se efetivamente de acesso gratuito e universal. Uma grande medida deste Governo em prol da consolidação de um Estado de Direito Democrático. Só assim é possível garantir que todos os cidadãos terão a possibilidade de conhecer as leis que os regem. O acesso às leis e demais atos legislativos da República é um direito fundamental de todos os cidadãos. Ora, na prática, o acesso ao BO eletrónico só será absolutamente universal se for inclusivo. Nesta senda, uma das medidas que está a ser concretizada é a implementação de engenharias que permitem que o BO eletrónico seja acessível também às pessoas com deficiência visual. Por outro lado, queremos aprimorar os serviços prestados a nível da informação jurídica. O acesso livre e gratuito do BO despoletou, como era expectável, um aumento significativo do número de utilizadores do “KIOSK”, bem como de visitantes do site da INCV. É patente a necessidade de aperfeiçoar as engenharias utilizadas, com vista a responder de forma satisfatória às demandas dos utilizadores e a continuar a prestar um serviço público de qualidade à sociedade cabo-verdiana. Mais se revela insuficiente a mera publicação e armazenamento dos atos legislativos. Impõe-se acertar o passo com a tecnologia de modo a aperfeiçoar as ferramentas de divulgação e pesquisa dos diplomas legislativos. Neste sentido, perspetiva-se a disponibilização de aplicativos que permitem a acessibilidade do BO através de dispositivos móveis de comunicação, como smartphone, bem como a criação de uma base de dados jurídica que permite ao utilizador ter acesso a informação jurídica célere, completa e tratada sobre os diplomas legais em vigor desde 1975, estatutos de sociedades comerciais e de outras pessoas coletivas, Acórdãos do Tribunal Constitucional e obras jurídicas publicadas pela INCV.

A INCV também é uma gráfica tradicional e uma editora. Nestes setores, espera-se alguma mudança nos próximos tempos?

A INCV, ao longo dos anos, tem vindo a publicar várias obras não só literárias, mas também de cariz didático, como compilações de jurisprudência e de legislações, e monografias, atenta a necessidade de colmatar alguma escassez existente no mercado nacional a nível de editores. Todavia, tais edições não seguem qualquer programação institucional, sendo muitas vezes fruto de propostas apresentadas pelos autores ou de parcerias com outras instituições públicas. A INCV pretende dar um salto maior com vista à consolidação da sua Editora, com a instalação, no futuro próximo, do seu Conselho Editorial e publicações programadas, indo ao encontro do estatutariamente previsto. Obviamente que se deve privilegiar a edição de livros de interesse cultural ou de grande complexidade técnica, mas não se pode de todo deixar de lado a publicação de outras obras, nomeadamente jurídicas, tendo em consideração o contexto de escassez de editoras no território nacional. A par da consolidação da Editora INCV, importa criar mecanismos de divulgação das obras editadas e a editar pela INCV, quer para efeitos de comercialização, quer para consulta. Neste sentido, para além de institucionalizar as vendas on-line, pretendemos abrir uma biblioteca, onde qualquer interessado poderá consultar, entre outras, as obras publicadas pela INCV. No setor das artes gráficas e impressão, a aposta será na modernização das máquinas e tecnologias, a par da capacitação dos nossos trabalhadores. Investimentos nesta área são também uma prioridade e já estão em curso, de forma, a proporcionar ao mercado cabo-verdiano uma oferta alargada e inovadora de produtos e serviços. O objetivo é posicionar-se como uma gráfica que consegue responder prontamente a todas as necessidades do Estado e das instituições públicas.

Recentemente, a INCV, juntamente com a Imprensa Nacional e Casa da Moeda de Portugal, lançou um concurso literário. Qual o objetivo?

É precisamente no âmbito do seu compromisso para com a sociedade cabo-verdiana, para com a promoção da cultura e da literatura nacional e como forma de estabelecer mais uma ponte com a sociedade e, assim, aproximar a instituição dos cidadãos, que a INCV decidiu associar-se prontamente à Imprensa Nacional e Casa da Moeda, sua congénere portuguesa e com a qual tem uma relação especial de parceria a vários níveis, neste projeto simbólico. As duas instituições decidiram conjuntamente instituir um prémio literário em Cabo Verde, um prémio que pretende concomitantemente contribuir para o incremento da produção literária nacional, promover a língua portuguesa e incentivar a excelência da literatura cabo-verdiana, indubitavelmente uma das grandes bandeiras culturais do país.

E porquê a denominação “Prémio Literário Arnaldo França”?

Auscultadas algumas entidades, nomeadamente a Academia de Letras e a Associação dos Escritores Cabo-verdianos, às quais dirigimos os nossos profundos agradecimentos pelo auxílio e pelo facto de se associarem prontamente ao projeto, decidiu-se atribuir ao prémio literário o nome do escritor Arnaldo França. Quis-se outrossim prestar um tributo, uma homenagem ao cidadão Arnaldo França. Trata-se do de um singelo reconhecimento, mas recheado de simbolismo, da vida e da obra do cabo-verdiano Arnaldo França.

Quando será anunciado o vencedor?

Neste momento já terminou o prazo de apresentação das candidaturas e o júri está na fase de análise e apreciação. São cerca de 16 candidaturas. Está previso o anúncio do vencedor para o mês de novembro, no âmbito da segunda edição da festa do livro e da literatura cabo-verdiana, a Morabeza. Como sabem, o prémio foi anunciado precisamente na primeira edição da Morabeza e entendemos que seria propício o anúncio do vencedor na segunda edição desta mesma festa.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.

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Autoria:Expresso das Ilhas,24 set 2018 7:07

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  24 set 2018 14:29

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