"Uma história inacabada" é talvez a primeira versão não oficial do que ficou conhecido como fraccionismo ou trotskismo

PorAntónio Monteiro,4 nov 2018 9:24

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José Tomaz Veiga
José Tomaz Veiga

​"Uma história inacabada" que será lançado esta quarta-feira, na Praia, é um livro póstumo. O autor, Euclides Fontes, faleceu em Janeiro de 2010, dois meses depois de ter escrito a última frase do livro que termina assim abruptamente. A presente obra abrange o período que vai do início da sua actividade política em 1971 e termina praticamente com o relato e análise das rupturas que ocorreram em 1979 e que ditaram a sua saída do PAIGC e a deixar definitivamente Cabo Verde em 1980.

 Como escreve José Tomaz Veiga no prefácio do livro cuja edição organizou, “a descrição e análise dos acontecimentos de então constituem, talvez, a primeira versão não oficial e não alinhada do que ficou conhecido como fraccionismo ou trotskismo”. José Tomaz Veiga recorda nesta entrevista o político de convicções fortes, o homem de extraordinária honestidade intelectual e a grande amizade entre os dois antigos companheiros de luta que se prolongou até à morte do autor.

"Uma história inacabada". Que história conta o livro?

Se quiser, o livro conta mais do que uma história. O essencial do livro abarca o período que vai de 1971 até 1980. Euclides Fontes descreve a evolução da situação em Cabo Verde, logo de seguida descreve como ele se tornou político (ele entrou no PAIGC em 1971). Ao longo de dois anos ele desenvolve actividade política clandestina, principalmente em S.Vicente, onde cumpria serviço militar. Começa então a ser observado pela PIDE [ex-polícia política portuguesa] e acaba por ser preso e torturado. É encaminhado para a cadeia civil da Praia e degredado para o campo de concentração de São Nicolau, em Angola, onde encontrou outros presos políticos cabo-verdianos, como Alexandre de Pina, Óscar Duarte, Fernando Santos (Funa), Ulisses Tavares (Fogo) que depois da independência de Angola acabaria por ser fuzilado e outros presos cujos nomes constam no livro. Euclides Fontes faz a narrativa de todo este período na primeira pessoa, nomeadamente o relacionamento entre os prisioneiros e as autoridades do campo de concentração. Penso que é um aspecto pouco conhecido em Cabo Verde e para mim é a melhor descrição que conheço da vida dos prisioneiros nesse campo. Nos capítulos seguintes escreve sobre a outra parte da história que é o regresso dele a Cabo Verde e conta toda aquela movimentação que teve lugar aqui no período pós-25 de Abril até à independência e pouco depois. Ele explica como as coisas se passaram cá…Conta na primeira pessoa, porque viveu este processo e conta o que viveu. Na parte final do livro ele retrata os acontecimentos que tiveram lugar em 1979, portanto a ruptura no PAIGC. Ele acaba por ser apanhado na leva e conta então a forma como ele viveu esses momentos que foram bastante difíceis para ele e para a sua família. O livro praticamente fecha com esta parte, quando ele seguiu para os Estados Unidos [1980] para fazer a vida dele lá, porque já não conseguia trabalhar aqui.

Quando é que ele começa a escrever o livro?

Eu tive conhecimento dos primeiros capítulos do livro, quando ele esteve cá, cerca de dois anos antes de morrer [2010]. Suponho que ele terá começado a escrever um pouco antes, porque a minha esposa que esteve com eles nos Estados Unidos na altura e contou-me que ele estaria a escrever sobre esse período. De modo que uns três anos antes de falecer terá começado a trabalhar no livro.

Pode-se dizer que é o seu testamento político? Ou seja, escreveu o livro porque sabia que não tinha muito tempo de vida.

Não tenho a certeza absoluta, mas penso que sim. Lembro-me que da última vez que esteve cá, falou-me do que estava a escrever e queria que o ajudasse de alguma forma a publicar. De facto, a forma como ele constrói a narrativa deixa entender que é o seu testamento político, se se pode falar assim. Porque ele não se perde nas minúcias da sua vida privada, e quando fala da sua pessoa, é mais para ilustrar o que se passava na altura. Por exemplo, quando ele descreve a vida no campo de concentração diz o que passou e que esteve 56 dias numa cela solitária, num espaço extremamente exíguo. Não foi o único, mas descreve o seu caso pessoal para dar mais credibilidade ao seu relato. Aliás, ele foi buscar documentos na Torre do Tombo, em Lisboa, que ele plasmou aqui na obra. Por exemplo, um presidiário que foi crucificado, ou um outro que foi assassinado barbaramente. Ele descreve esses casos para que as pessoas tenham a noção do que se penava nesse campo. Portanto, eu era capaz de concordar que sim, o livro é o testamento político dele.

Como escreve no prefácio, o livro aborda um momento crítico da nossa história mais recente…

Mais recente naquela altura. No fundo é isso, a nossa história mais recente é depois da independência. De facto, ele viveu muito intensamente a problemática da independência. Como ele diz no livro, as primeiras preocupações teve-as com um professor dele, o Sr. Velhinho Rodrigues. Ele era um ídolo do Euclides. Através das suas conversas ele começou a apanhar e interessar-se. Mais tarde, no liceu da Praia, encontrou alguns colegas, entre os quais o Óscar Duarte, mas em particular o Nelson Lobo que o integrou no PAIGC. Para o Euclides a independência era tudo. Para ele era independência, ponto final. Depois havemos de ver. Portanto, tudo o que ele descreve, fá-lo nessa perspectiva. Daí que o livro se torna muito interessante, não há auto-elogios, nem nada que se pareça com isso. Pelo contrário, ele tenta sempre amainar um pouco essa vertente. Ele escreve que 1971-1979 é um momento-chave porque aconteceram muitas coisas aqui em Cabo Verde – e acho que ele consegue captar isso no livro. De 1971 até 1974 houve momentos de muita tensão aqui com os militares portugueses e com a polícia portuguesa. Havia alguma acção política, mas independentemente disso, em Cabo Verde sentia-se a tensão nas relações com o poder colonial. Eu estava cá também, vivi esses momentos e como disse, ele consegue captar isso no livro. Depois do 25 de Abril [de 1974] é que as coisas assumiram maior acuidade e consegue também descrever esse período com muito realismo. Ele não se limita apenas a falar do que ele fez, mas, por exemplo, refere-se a toda a acção popular naquela altura; refere alguns momentos-chave do processo da independência, nomeadamente a acção do General Spínola e a forma como nós aqui em Cabo Verde contrariamos a sua acção; refere a primeira grande manifestação que o PAIGC conseguiu organizar aqui em Cabo Verde em Agosto de 1974.Quem coordenou tudo foi João Pereira Silva, nós estivemos envolvidos e o Euclides também; ele refere as coisas que aconteceram em S. Vicente, o assalto à Rádio Barlavento; a prisão dos dirigentes de outros partidos… No livro também ele refere-se aos outros partidos, à forma como actuavam. Descreve também as fraquezas do PAIGC, antes e mesmo depois do 25 de Abril e faz referência a isso repetidamente no livro. Foram momentos difíceis que antecederam a independência. O livro não refere muito o período imediatamente a seguir à independência e dá um salto para o ano de 1979, porque foi algo que acabou por afectá-lo de forma decisiva e à sua família e que o levou a sair daqui em 1980. Ele tencionava descrever os anos 80 e 90 e analisá-los, mas não teve tempo.

Para contextualizar. Que funções exerceu Euclides Fontes no PAIGC até 1979?

Como disse, ele entrou no PAIGC em 1971. Ele explica no livro que ele e outros terão criado vários grupos que não tinham uma ligação orgânica com a direcção do PAIGC que existia aqui em Cabo Verde. Ele é até bastante crítico em relação àquilo que ele chama de ‘inoperacionalidade do PAIGC na altura’. Depois foi preso, esteve no campo de concentração em Angola e quando regressa ficou a dirigir (criou praticamente) as estruturas do PAIGC, no concelho de São Miguel. Depois as actividades dele expandiram-se para Tarrafal e passou a integrar a direcção regional da ilha de Santiago. Em 1979-80 quando ele acabou por sair, ele estava a ser considerado para entrar na direcção nacional do PAIGC e foi deputado de 1975 até sair.

Quando é que os vossos caminhos se cruzam pela primeira vez?

Eu conhecia antes o Euclides de vista apenas. Não tínhamos tido nenhum contacto directo até à altura em que ele e os outros regressaram de Angola. Eu tomei parte neste processo todo e lembro-me de tê-lo visto no meio da multidão que foi buscá-los no aeroporto. Viemos todos para o palácio do governo e ele fez um discurso extremamente radical, a exigir a independência imediata e total. Notei isso e fiquei com vontade de contactá-lo. Acabamos por ter um primeiro encontro na Calheta devido às actividades políticas que eu desenvolvia também nessa altura. Lembro-me que o Alexandre de Pina e eu fomos fazer um comício na Calheta para mobilizar as pessoas e lá estava ele, enquanto responsável político na altura. A partir daí estabelecemos uma relação de grande amizade que se prolongou até à morte dele.

Tratando-se de um livro póstumo, como se processou a sua edição?

De facto, há um aspecto que os leitores devem ter presente, quando pegarem no livro. A forma de escrever dele é directa, simples e sem preocupações literárias, como eu disse no princípio. É uma escrita para transmitir ao leitor o que ele sentiu, como é que viveu…Não há preocupações de ordem estética. A viúva dele quis que se mantivesse a forma como ele escreveu. Então, nós que estivemos ligados à edição respeitamos isso. Deixamos o livro como ele o escreveu.

Como pessoa, como era Euclides Fontes?

O Euclides era uma pessoa extraordinária, daquelas pessoas que marcam as outras. Antes de mais era muito exigente com os amigos, com os familiares, porque também era muito exigente consigo próprio. Era muito correcto no tratamento com as pessoas, extraordinariamente honesto, duma honestidade intelectual que os leitores do livro poderão constatar. Tinha convicções muito fortes, sem ser dogmático. Ou seja, tinha convicções muito fortes e defendi-as com grande força mesmo. Ele argumentava, mas quando não conseguiu contra-argumentar ele aceitava. É sinal de uma pessoa que tem convicções fortes, defende-as com todo o vigor, mas não era dogmático.

Fundamentalista, mas não dogmático.

Ele não era fundamentalista. Era exigente, rigoroso, estudava muito. Tinha sempre um livro debaixo do braço; assumia-se como um homem de esquerda. Karl Marx era o maior para ele. Ele fala nisso no livro. Até dizia que era maoista. Em 1979 acabaram por associá-lo ao trotskismo, mas nada disso. O Euclides, quanto muito, foi maoista, como ele próprio escreve. Mas ele não se envolveu nessa questão. Ele era marxista, admirava Marx e era cabralista também. Era um grande admirador de Amílcar Cabral – no livro ele faz várias referências a Amílcar Cabral em termos muito elogiosos.

Já agora, o Euclides Fontes chegou a ler os livros de Trotsky que circulavam então em Cabo Verde?

É bem possível que sim, porque ele era extremamente curioso. Ele absorvia o máximo que encontrava. Como já disse, o Euclides tinha opiniões fortes: defendia-as e formava o seu próprio ponto de vista. Digamos, não era influenciável, ao contrário do que as pessoas pensaram na altura.

Como foi o seu relacionamento com os dirigentes do PAIGC que vieram da Guiné?

Ele aceitou muito bem a vinda deles. Aliás, esqueci-me de referir isso. No livro ele descreve a chegada dos dirigentes do PAIGC à Praia. A equipa era dirigida por Silvino da Luz e Osvaldo Lopes da Silva. Lembro-me que na altura preparamos uma grande recepção…O Silvino falou na Praça Alexandre Albuquerque que estava cheia de gente. Mais tarde veio o Pedro Pires, fizemos uma grande movimentação e depois veio o Aristides Pereira e então enchemos a praça. Portanto, o Euclides aceitou muito bem a presença deles, não só ele, mas nós todos, apesar do que dizem. Gente com mais experiência do que nós, com bastante experiência de luta na altura. O Euclides em particular tinha um respeito muito grande por eles.

Quando é que você se dá conta dos primeiros sinais de divergência com a direcção do PAIGC?

O Euclides, como disse, era marxista e, como ele escreve, não queria que as coisas fossem ditadas todas de cima. Ele tinha essa preocupação; eu lembro-me que eu e ele tivemos várias discussões por causa disso. Ele foi muito basista: tinha essa perspectiva e cultivava-a. Nos anos subsequentes à independência – ele esteve como responsável do PAIGC em Santa Catarina – foi pouco a pouco se apercebendo que a forma de actuar do partido na altura não era aquela que ele desejava e com a qual se identificava. Ele transmitiu-me isso várias vezes. Não estava satisfeito, não estava contente e não se envolveu em absolutamente mais nada. Na sequência da nossa saída, houve reuniões que se fizeram a tentar explicar às pessoas o que é que se passou. Ele participou numa dessas reuniões e a parir daí desligou-se. Ele explica isso no livro: não estava de acordo com a forma como as coisas de fizeram e desliga-se.

O que aproximou mais os vossos dois caracteres?

Eu tinha imensa admiração por ele, pela forma como ele dirigia os trabalhos da região dele. Era bastante rigoroso nas coisas, fazia o que tinha que ser feito e produzia resultados. Começamos a interagir com mais frequência e comecei a compreender a pessoa. Tinha um caracter muito forte, extremamente honesto e com princípios. A química passou entre nós… Para além disso deixamos de ser só amigos políticos envolvidos na mesma luta pela independência e passamos a ser amigos pessoais. Tudo isso aconteceu progressivamente, até ao ponto de mais tarde me tornar padrinho da única filha dele. Ele e a esposa escolheram-me e eu aceitei. A amizade era mesmo muito grande entre nós.

Como se lê no livro, Euclides Fontes desliga-se do PAIGC em 1979 e em 1980 parte definitivamente para os Estados Unidos. Desiludido com a política?

Não creio. O Euclides não era homem para isso. Ele viveu intensamente aqueles momentos aqui em Cabo Verde e continuou a se interessar pela política nos Estados Unidos, inclusive pela política americana interna e externa. Por isso não creio que ele possa ser catalogado como uma pessoa desiludida com a política. Ele tinha convicções muito fortes e convencido de que ele estava no caminho certo.

Entretanto cai o regime de partido único do qual foi alvo de perseguição com a sua saída do PAIGC, mas ele não regressa a Cabo Verde. Porquê?

Já tinha a sua vida organizada nos Estados Unidos. Licenciou-se, fez o seu master e trabalhou num banco. Depois saiu para se tornar professor num liceu de Brokton. Ele sempre gostou de leccionar, mesmo aqui em Cabo Verde. Mas nos Estados Unidos engajou-se com o ensino… Havia a vida familiar, a esposa, a filha e não se interessou em regressar.

Qual é o contributo deste livro para um melhor conhecimento da nossa história recente?

Eu penso que a maneira como ele descreve os factos, o que aconteceu…É claro que é uma discrição na primeira pessoa, porque esteve envolvido no processo. A forma como ele descreve o período anterior à independência, a situação dos presos políticos no campo de concertação de São Nicolau, em Angola; depois o período que vai de 1974 até à independência, portanto aqueles momentos-chave…Penso que ele traz um grande contributo para aqueles que não estiveram cá na altura, ou àqueles que viveram esses momentos, mas de forma muito superficial. Acho que o livro traz-lhes informações bastante interessantes. Naturalmente que o autor também faz as suas análises e emite as suas opiniões. São análises e opiniões das quais as pessoas podem concordar e discordar. Mas ele procura ser muito factual e descreve aquele período de forma vívida. Eu também vivi aqueles momentos e acho que ele é extramente preciso e muito concreto naquilo que escreve.

Como surge José Tomaz Veiga no processo da edição deste livro póstumo?

Estou envolvido no processo da edição e publicação do livro, primeiramente a pedido dele. Quando esteve cá pela última vez, perguntou-me se eu estaria disponível, disse-lhe imediatamente que sim. Acontece que a viúva, por razões emocionais, durante muito tempo não conseguiu aceder aos ficheiros que ela sabia que existiam. Inclusive ela disse-me que o Euclides antes de falecer pediu-lhe que me contactasse para efeito da publicação. Ela mandou-me depois os ficheiros e fiz as revisões iniciais sobretudo nos aspectos que ele me indicou. Das primeiras leituras pude ver que o Euclides escreveu depressa, parece que pressagiou o que viria a acontecer. Escreveu depressa, não se preocupou com a parte estética da escrita, como já falamos. Queria era transmitir, contar a história ou as histórias que constam do livro. Portanto, fiz tudo o que foi possível para que o livro seja apresentado ao público esta quarta-feira. A viúva está cá para assistir e participar na apresentação do livro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.

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Autoria:António Monteiro,4 nov 2018 9:24

Editado porrendy santos  em  5 nov 2018 12:37

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