O apogeu e a queda da Preguiça

PorJorge Montezinho,15 dez 2018 7:09

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​Já foi um ponto central da globalização. Hoje é mais um canto de Cabo Verde perdido no tempo. A aldeia da Preguiça, cujo porto já viu flutuar bandeiras de piratas e serviu de abrigo para a frota de Pedro Álvares Cabral, é actualmente um conjunto de casas decrépitas, que se estendem à beira de uma estrada esburacada, que desagua num mar cinzento, que hoje só recebe o pouco movimento dos botes dos pescadores tradicionais. Entretanto, está já em curso um projecto que poderá recentrar a importância da Preguiça.

A oito quilómetros da Ribeira Brava, depois do aeródromo de São Nicolau – que marca o fim da estrada asfaltada – e ao fundo de uma via empedrada, íngreme e onde faltam pedaços do tamanho de crateras, surge a aldeia da Preguiça. No início do povoado vêem-se algumas casas de construção recente, bem pintadas, espaçosas. Na parte de baixo, junto ao mar, o cenário é totalmente diferente, ruínas.

Os restos da antiga alfândega marcam o início da estrada-corredor com casas de um lado e falésia do outro. São casas do Estado que foram sendo ocupadas por famílias dos pescadores tradicionais, que hoje pouco mais pescam do que o suficiente para sobreviver. As paredes estão lascadas, os telhados – os que existem – ameaçam desabar a qualquer instante. E dentro de cada edifício moram famílias, várias por cada habitação, com o espaço delimitado por lençóis pendurados.

Mas nem sempre foi assim, a Preguiça, tal como a ilha de São Nicolau, já foram pólos do desenvolvimento do arquipélago e ponto de passagem obrigatório ao longo dos séculos. E são muitas as testemunhas, hoje silenciosas, da importância da Ilha Misteriosa. Vamos fazer uma viagem no tempo numa altura em que, curiosamente, assinalou-se há uns dias – a 6 de Dezembro – a primeira vez que São Nicolau foi avistada. Há 557 anos.

A primeira centralidade de Cabo Verde, é sabido, foi a Cidade Velha. Os ataques piratas e as epidemias fizeram com que a primeira cidade europeia fundada em África fosse abandonada e a capital passasse a ser a Praia. Mas houve um tempo em que esteve quase para ser Ribeira Brava.

Tudo começou com o Bispado

E começou tudo com o bispado. A assistência religiosa aos habitantes de São Nicolau foi, durante muito tempo, prestada por missionários que se deslocavam periodicamente. Em 1677, o bispo de Cabo Verde decidiu enviar párocos para as ilhas do Barlavento. O sucessor pediu ao soberano que fosse criado um seminário em Cabo Verde, mas durante muitos anos este pedido não foi concedido. Em inícios de 1700, com a chegada a São Nicolau do bispo Francisco de Sá Simão, deu-se início à formação académica de rapazes vindos de vários pontos do arquipélago, acabando por se conseguir ordenar vários padres que foram então distribuídos pelas ilhas. A presença de bispos que residiram em permanência na ilha, Pedro Jacinto Valente e depois Cristóvão de Boaventura, acabou por dar a esta o estatuto de centro religioso do arquipélago, posição que viu reforçada com a criação, a 3 de Setembro de l866, do Seminário Diocesano que haveria de formar sacerdotes e, mais tarde, funcionários superiores e homens letrados. Para permitir o acolhimento dos leigos passou a chamar-se “Seminário-Liceu” em 1892. Com as instituições eclesiásticas veio também parte do poder económico e administrativo.

Quando a Intendência da Marinha Portuguesa se instalou em Cabo Verde, escolheu São Nicolau. A Capitania dos Portos do Barlavento, idem. Mesmo os ingleses preferiram São Nicolau para receber o entreposto de carvão, numa altura em que não havia ainda porto do Mindelo. No cemitério do Caleijão ainda estão as lápides, mal tratadas, da passagem destes britânicos.

Mas a história marítima da Preguiça, e o seu contexto no tráfego mundial, é ainda mais interessante. Pedro Álvares Cabral foi aconselhado pelo rei a evitar Santiago, onde havia mais uma epidemia, e a aportar antes em São Nicolau para reabastecer antes de seguir viagem até descobrir o Brasil. Terá sido nos escolhos da Preguiça que perdeu uma das naus da sua frota – a São Jorge – razão porque ainda hoje a baía tem esse nome. Hoje, na falésia onde existiu o forte do Príncipe Real, existem dois monumentos a assinalar a passagem do navegador, um do arquitecto cabo-verdiano Pedro Gregório, outro do escultor português João Cutileiro.

Mas este porto é também central na história do capitão George Roberts, onde realidade e ficção deram um nó tão intricado que é difícil perceber onde começa uma e acaba a outra. Terá sido ao largo do Porto da Preguiça que Roberts viu flutuar a bandeira verde com um homem amarelo a tocar trombeta, símbolo usado pelos piratas Low, Russell e Spriggs. Os mesmos que tomaram a aprisionaram o seu navio, como é contado no livro Os Quatro Anos de Viagens do capitão George Roberts, escrito pelo próprio. Mas há estudiosos, e edições do livro, que atribuem a autoria da obra a Daniel Defoe (o escritor de Robinson Crusoe, entre muitos outros livros), o que levou muitos a concluir que poderia ser uma obra de ficção, ainda que muito bem pesquisada.

José Cabral, escritor e investigador, diz ao Expresso das Ilhas que foram encontrados nos arquivos de Londres documentos que comprovam o aprisionamento do navio de Roberts. “Espoliaram-no de tudo e abandonaram-no num pequeno bote ao largo. Roberts acaba por ir parar à Brava, consegue construir um outro barco, e passa quatro anos a fazer cabotagem entre ilhas”.

Sinal da importância do Porto da Preguiça é o Forte da Preguiça, construído em 1820, numa pequena plataforma delimitada por duas profundas ribeiras, cerca de 50 metros acima do mar. A sua missão essencial era defender tanto o Porto Velho, a nascente, como o caminho e a pequena povoação, a poente. A guarnição pertencia a uma Companhia de Ordenanças.

O saque praticado por corsários estrangeiros em algumas ilhas do arquipélago era uma constante ainda nas primeiras décadas do século XIX, realidade bem sentida pelas populações, autoridades locais e ricos comerciantes. Daí resultou a construção de fortificações em pontos estratégicos. Nas primeiras décadas do século XX, o forte é votado ao abandono e o seu espaço foi ocupado por algumas famílias que aí construíram as suas casas, aproveitando a pedra e as paredes que se mantinham ainda de pé. Nos anos 60, as famílias foram realojadas e o espaço desafectado de construções. A última intervenção de restauro decorreu no início dos anos 90.

Escala obrigatória

O Porto da Preguiça foi também importante na época áurea da baleação. José Cabral está a terminar uma tese sobre o tema e sublinha que era um local de “escala obrigatório dos grandes baleeiros. Primeiro ingleses, no século XVIII, e depois americanos, no século XIX. Passaram aqui e fizeram aguada neste porto”.

“Temos um extraordinário património baleeiro”, continua o investigador, “mas é ainda desconhecido porque está dentro do património português. E não houve até agora um expurgo do que é cabo-verdiano. Já encontrei 20 capitães, entre os mais emblemáticos da época, que são cabo-verdianos. Outra coisa que descobrimos é que nunca se apanhou uma baleia na Brava, ali prestava-se apoio logístico à frota. Caça à baleia aconteceu, principalmente, em São Nicolau, onde há registo da existência de três estações baleeiras e 200 anos de história, na costa Sul da ilha”.

Durante a I Guerra Mundial há o aprisionamento de oito barcos alemães em São Vicente. Mas as tripulações são desembarcadas em São Nicolau e 120 alemães são encarcerados no Caleijão, no antigo edifício do bispado.

Em 1931, no seguimento da revolta da Madeira, levantamento militar contra o governo da Ditadura Nacional, a Preguiça e São Nicolau voltam a ser protagonistas de um momento histórico. Os revoltosos são desembarcados na localidade e são enviados para outro edifício do bispado, na Ribeira Brava, onde ficam presos.

Outro momento da história mundial umbilicalmente ligado a São Nicolau, a II Guerra Mundial. A joia da coroa da marinha italiana está a navegar carregado de cereais da argentina para Itália, há uma avaria e o barco vem ancorar na Preguiça, nos finais de 1939 e onde fica até 1943. Cabo Verde atravessa a pior época de fome da sua história, a fome de 40, quando do barco é lançado um SOS a pedir frescos, dando em troca cereais. Recolhem-se ovos e verdura entre a população e faz-se a troca, “o que salvou muita gente da fome”, sublinha José Cabral.

A década de 40 marca também o início da perda de importância da Preguiça e da própria ilha. O seminário já tinha sido fechado. Os depósitos de carvão acabam por ficar em São Vicente. O bispado sai. O porto principal deixa de ser a Preguiça e passa a ser Tarrafal de São Nicolau. “Quando isso acontece, a Preguiça entra em total decadência. Onde está até hoje”, resume José Cabral.

Mas esse caminho poderá ser invertido. Em Agosto, o governo anunciou um pacote de investimentos de 500 mil contos, para os próximos dois anos, para a valorização urbana em São Nicolau, através de intervenções na Ribeira Brava e no Tarrafal. E na Ribeira Brava, estão previstas, entre outras, intervenções no “restauro da zona histórica da Preguiça”, como referiu na altura a Ministra das Infra-estruturas, Eunice Silva.

Entretanto, já está a funcionar o Laboratório(s) da Preguiça, acção de cooperação entre a Câmara Municipal de Ribeira Brava, o M_EIA – Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, o Atelier Mar (ONG), o Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra [dARQ] e a Cátedra UNESCO Diálogo Intercultural em Patrimónios de Influência Portuguesa [Patrimónios], também da Universidade de Coimbra, para a elaboração de um programa integrado de intervenções nos quadros físico, sociocultural e económico da Preguiça. Mas sobre isso vamos escrever na próxima semana.


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 889 de 12 de Dezembro de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,15 dez 2018 7:09

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  17 dez 2018 17:03

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