Uma das divisões administrativas mais antigas de Cabo Verde o Concelho da Praia, hoje mais frequentemente designado município, foi tendo o seu tamanho alterado ao longo dos tempos. No fim do séc. XIX, conforme a Carta da Ilha de São Thiago, de 1890, o Concelho da Praia ocupava a metade sul da ilha, e a metade norte era o Concelho de Santa Catarina. No início do século XX, com a revisão da carta, Praia foi reduzida a um terço da área da ilha de Santiago e gradualmente, com o aumento da população, veio a reduzir a sua dimensão geográfica.
Conforme informação da Associação dos Municípios de Cabo Verde, foi em 1993 que as freguesias a sul, que hoje compõem o Município de São Domingos, foram desanexadas. Em 2005 mais duas freguesias desanexadas, desta vez a oeste, e que passam para o Município de Ribeira Grande de Santiago.
Hoje, o Município da Praia alberga a cidade capital de Cabo Verde e ainda as localidades de São Tomé (a sul), São Francisco (a leste) e São Martinho Pequeno (a sudoeste), que juntas concentram menos de 10% da população do município. Este que alberga mais de 27, 5% da população de Cabo Verde.
O Município da Praia é (o único) considerado como sendo totalmente urbano. Mas a realidade que encontramos nestas três discretas zonas mostra um forte pendor rural.
A pacata São Tomé
São menos de vinte minutos tranquilos na estrada asfaltada e de via única onde, felizmente, quase não circulam carros porque em caso de dois carros se encontrarem em sentidos opostos, um dos condutores terá que encostar para ceder passagem. É a geografia do local que o impõe.
Um valezinho que desemboca numa praia modesta, São Tomé é formado por uns poucos aglomerados de casas, o maior deles o centro da localidade onde se concentram os poucos serviços ali existentes: um posto de saúde, uma escola, um jardim infantil e uma capela.
O local é impressionantemente limpo e, ali no centro, com arruamentos bem cuidados. Nas ruas apenas se veêm um ou outro cão e umas poucas crianças que nos espreitam com curiosidade.
“Aqui é tranquilo. Nos damos todos bem. As pessoas até deixam a chave na porta de casa”.
Quem o diz é Etelvina Andrade, 42 anos, e agente sanitária de São Tomé há 22 anos. Encontramo-la no posto sanitário – moderno e relativamente espaçoso – onde três vezes por semana atende quem da população local necessite de curativos, injecções ou medir a tensão. É só.
Para mais, o doente tem que se deslocar ao Centro de Saúde de Achada Grande Trás (onde ela trabalha nos restantes dois dias da semana, terças e quintas) ou ao hospital central da cidade, no Plateau.
“Não temos materiais suficiente mas, desenrascamos com o que temos. De dois em dois meses recebemos materiais do Centro de Saúde de Achada Grande Trás”, informa a agente sanitária deixando-nos perceber o seu temperamento optimista.
O posto não disponibiliza para venda nenhum tipo de medicamento. Quem precisar de serviços de farmácia também tem que sair da localidade. O risco de optar por comprar no mercado clandestino é assim maior, conforme estudo da ARFA já tem alertado.
A frequência do posto é sobretudo adulta. “As crianças, de modo geral, são saudáveis. Até mesmo casos de diarreias e vómitos são poucos, até porque temos aqui um ambiente saudável, bom saneamento”, diz Etelvina satisfeita.
Tanto a professora da escola de ensino básico como a do jardim infantil atestam, espontaneamente, essa informação. As crianças de São Tomé gozam de boa saúde. Recebem refeições diárias na escola e, periodicamente, reforço de ferro.
Ricardina Martins, 37 anos, é professora do Ensino Básico há 15 anos e lecciona em São Tomé há um ano. Transferiu-se de Maio para Santiago e foi colocada em Santa Cruz. Há um ano mudaram-na para ST que não conhecia mas onde diz ter-se adaptado bem. O único senão, para ela, é a falta de transporte regular.
A morar em Achada Grande Trás, a professora desloca-se diariamente a São Tomé. De táxi. Não porque seja assim tão longe mas por causa dos assaltos. Assaltantes costumam encurralar na estrada quem se desloque a pé de ou para São Tomé. Ali não chegaram ainda as câmaras do programa de vigilância urbana e a polícia só aparece para a ronda de vez em quando dada a pacatez da vila de cerca de 200 habitantes (exceptuando os mencionados assaltos na estrada).
A professora confirma que a comunidade é tranquila. As crianças, que nos observam curiosas mas em silêncio, “são bem comportadas e fazem sempre o que peço”, diz.
São menos de dez alunos. E a turma é mista, da primeira e segunda classe. No jardim infantil, ali ao lado, é quase a mesma coisa: oito crianças, metade com quatro anos, outra metade com seis.
Há uma outra turma do EB, de outro professor, no período da tarde com alunos mais velhos. A partir do 6º ano, os estudantes frequentam a escola de AGT. Têm transporte escolar garantido pela Câmara Municipal da Praia.
“Actividades para crianças aqui, não são muitas mas há sempre ocasiões especiais. Como quando algumas associações aparecem para organizar actividades culturais, a igreja adventista também... A festa de 1º de Junho e a de Natal são as mais aguardadas”.
Ir passear na cidade é sempre um momento especial, conta a professora que diz já ter levado a sua turma.
Pessoal do ministério da Educação aparece na escola com alguma frequência. “Estamos longe mas há sempre contacto”, responde Ricardina Martins que destaca a recente reabilitação da casa de banho como um dos grandes ganhos da escola básica de São Tomé.
A nossa conversa é interrompida pelo ensurdecedor barulho de um avião que, por momentos, parece estar a despenhar-se sobre a vila. Só nós nos assustamos. As crianças continuam impávidas e serenas a fazer o seu trabalho, habituadas que estão ao ruído. Afinal, o Aeroporto Internacional Nelson Mandela é ali ao lado e ali é rota de passagem dos voos diários.
“A vida aqui é complicada. Vida de mato. As pessoas catam a sua lenha para ganhar o pão. Os pescadores vão ao mar, mas o mar não tem dado muito. Situação complicada...”, resume Etelvina Andrade num raro momento em que o realismo se sobrepõe ao seu optimismo.
O desemprego é uma realidade comum às três localidades da “Praia rural” visitadas pela nossa reportagem.
Em São Tomé há poucos jovens, dizem-nos. A maioria sai cedo para viver na cidade onde há mais chances de conseguir trabalho. Mas há muitos que não conseguem e estão parados. Não querem muito ir para a pesca porque “não dá”.
Perguntamos se sentem parte integrante de Praia. Etelvina responde vivamente que sim.
“O pessoal da CMP vem cá de tempos em tempos. Ainda há dias estiveram aqui, a fazer levantamento porque dizem que vão fazer o calcetamento da estrada que vai dar ao mar”.
A responsável sanitária garante ainda que são ouvidos e os seus pedidos, na medida do possível, atendidos. Há um ano e tal ganharam a praça que pediram e não podia estar mais satisfeitos.
“Ficou bonita!”
O que São Tomé mais precisa?, perguntamos. A resposta foi rápida:
“Precisamos de água, que é fundamental! Água de rede. Não temos água canalizada. É preciso comprar quando vem cá o autotanque da Câmara. São 20 escudos por cada boião de água. Quem quiser encher o tanque de casa tem que comprar em carros privados”.
Outra necessidade apontada por Etelvina é a de muitos idosos locais: casas de banho nas habitações.
“É preciso olhar por estes idosos carenciados”.
Dureza e desencanto em São Martinho Pequeno
A primeira palavra que ocorre para descrever São Martinho Pequeno é... castanho. Sim, castanho. A seca castiga fortemente aquela área do município. Não se vislumbra verde que não seja o sujo das acácias retorcidas que ladeiam a inacreditável estrada que penetramos para lá chegar.
É que, por engano, fomos antes parar a São Martinho Grande. Esse, na divisão feita em 2005, coube ao município da Ribeira Grande de Santiago. E pelo que constatamos na rápida passagem, a situação actual é semelhante à da localidade vizinha e homónima.
Para desfazer o engano e chegar então a São Martinho Pequeno, e porque já se fazia tarde, cortamos pela estrada mais próxima. É uma velha estrada mal calcetada, daquelas em que as pedras são tortas e há troços que afundam, castigando duramente a viatura e quem nela segue.
As ruas de terra logo à entrada de SMP reforçam o castanho que nos entra na retina ao longo do percurso. Passamos por vários porcos e galinhas à solta até chegar ao que parece ser o centro da zona. A rua calcetada, as casa mais arranjadas e o edifício da delegação da Câmara Municipal da Praia assim nos fazem pensar.
A delegação é também centro comunitário, frequentado sobretudo pelos mais jovens que fazem uso da sala multimédia no andar de cima. Mas não hoje. Hoje os quatro computadores e a enorme televisão plasma estão fechados. Não há electricidade. Foi cortada. Também não há água. Um cano furado há mais de um mês, explica a senhora encarregada da limpeza, Jacinta Varela.
Mima, como prefere ser chamada, tem 52 anos e trabalha no centro há nove. Ela e o zelador da sala multimédia, José Manuel Lopes, são quem nos recebem. A delegada da Câmara não tinha lá estado nesse dia.
“Deve ter ido à cidade”.
Mima ajuda no jardim infantil que ali funciona mas que, naquele momento, já tinha encerrado as actividades do dia. As cerca de 25 crianças que ali vão diariamente já estavam em casa.
Na escola da zona as crianças só estudam até a 2ª classe. A partir daí, quem quer continuar vai para Trindade ou São Pedro, zonas relativamente próximas.
Perguntamos pela situação da saúde destas e Mima nos diz que não há nada de grave a apontar e que aparentemente estão bem nutridas (o jardim serve-lhes uma refeição).
Ainda bem que assim é já que o posto de Saúde da vila não funciona há três anos, isto é, desde que o agente sanitário reformou-se.
“Aqui a actividade principal é a criação de animais”, responde-nos Mima.
Quisemos saber se há muitas pessoas a dedicarem-se a uma profissão em prol da comunidade. Salão de cabeleireiro ou barbeiro? “Não”. Costureira? “Não”. Padeiro? Não desde que há dez anos morreu o senhor que fornecia pão... O pão que a comunidade consome vem da Cidade da Praia.
A falta de emprego é a principal queixa da população local. A seca castigou duramente a zona. Mas atribuem também outras causas ao desaparecimento das hortas que antes dizem que abundavam.
Isso já quem nos conta é o grupo de homens jovens que encontramos naquele que parece ser o ponto de encontro, a pedra bika da localidade: um quiosque, onde facilmente pudemos constatar que o principal produto à venda era o grogue.
Perguntamos se queriam falar. À cautela, concordam. E as informações, as queixas, as mágoas foram chegando.
Não há água. As muitas hortas que ali existiram no passado acabaram. Havia um furo de água que deixou de funcionar “porque as pessoas deixaram de pagar” o valor cobrado pelo Ministério da Agricultura.
Pergunto-lhes sobre a história do padeiro que morreu há dez anos e se é verdade que o forno ficou fechado e o pão vem da Praia. Confirmam. Pergunto aos jovens se nenhum pensa em aprender a fazer pão e aproveitar a “vaga”. Uns balbuciam que não há apoio. Outros admitem que é uma possibilidade a explorar.
É um grupo com idades entre os 25 e os 43 anos. Há entre eles pedreiros, ferreiros, marceneiros... mas quase todos acabam por ser também criador de animais.
“Pessoal da câmara esteve aqui há uns tempos com a conversa de que vão requalificar a estrada, as ruas...”, diz António Carlos, o mais velho do grupo.
Reclama da praceta que se fez há alguns anos e que diz não lhes servir, e irrita-se a falar dos políticos.
Os mais novos reclamam a falta de um bom campo para treinar futebol.
“Os rapazes que treinam futebol têm que ir para as outras zonas porque não temos um bom campo”, protesta Charles, 30 anos, pedreiro.
“Nós estamos abandonados! Eles tiraram daqui o trabalho. Havia obras e eles pararam e levaram para outras zonas. É de “abuso” que o fizeram”, diz António Carlos revoltado, e dirige-se para o balcão.
Tudo o que ali está mal é a sua justificação para beber, diz. Afirma ainda que do que ganha com a criação de animais só lhe dá para a bebida. E dirigindo-se ao balcão pede mais uma dose que recebe com as mãos trémulas.
O ar fica carregado. Alguns soltam protestos contra gentes que dizem que só lá vão em tempos de campanha e que depois os esquecem.
Estão descrentes das promessas e nem na Comunicação Social já têm fé. A televisão, dizem, já lá foi várias vezes. E nada mudou.
São Francisco e o sonho Sambala
A leste da capital, a cerca de uns 20km de distância. Das três localidades “esquecidas” do município – por causa do hábito de, geralmente, o reduzirem à cidade da Praia – São Francisco é a mais próxima e aquela que mais os residentes na cidade conhecem. Por causa da praia de mar, muito frequentada por nacionais e estrangeiros, e em tempos considerada a mais limpa do município. Porém, para lá chegar, mal se nota a vila que dá nome à Praia já que há estrada vai dar directamente à praia.
Há já uns bons anos que São Francisco ganhou estrada asfaltada e chegar lá é um salto tranquilo. Mas chegamos na hora mais agitada da escola primária local. A hora do recreio.
Foras as crianças a nos receberem. A professora tinha aproveitado o intervalo para dar um salto à casa, ali perto. Mais adentro, em outra turma, encontramos o professor Manuel Delgado, residente na cidade e a leccionar na localidade há três anos.
É ele que, algo cauteloso, nos dá algumas informações sobre a escola e as suas condições. São oito turmas, do 1º ao 8º ano (parece pequena para tanto). A partir do 9º ano, os estudantes deslocam-se às escolas secundárias da cidade. O transporte escolar é também aqui garantido pela câmara municipal.
“Aqui na escola o principal problema é que falta muitas vezes água para a casa de banho”, concede o professor, que aponta como melhorias da localidade nestes três anos que ali trabalha as estradas e arruamentos dentro da localidade.
No ano passado, em entrevista ao Expresso das Ilhas, António Lopes da Silva, o vereador da Cultura e do Saneamento da autarquia, elogiava repetidamente as obras de requalificação em São Francisco e o quanto estas contribuíram para aumentar a autoestima dos moradores.
As mulheres que encontramos à porta da escola a vender guloseimas reiteram a satisfação da comunidade em ter estradas melhores, ruas mais bonitas e uma praça renovada. Mas não demoram muito a apontar o desemprego que grasa e a falta de água.
Só em 2011 as casas de São Francisco passaram a ter água canalizada. E entretanto, em 2013 era notícia a penúria de água que durava vários meses. A escassez de água é também aqui problemática pois a criação de animais é a principal actividade.
As três vendedeiras queixam-se dos “políticos que só aparecem na época das campanhas”. Queixam-se também da associação comunitária local que dizem fazer demasiadas reuniões sem que nada aconteça depois.
O posto de Saúde da vila tem um agente sanitário para atendimento diário. Um médico desloca-se à comunidade de 15 em 15 dias.
Há uma construção mais ao longe. É uma capela da igreja católica, informam. E aproveitam para lembrar um campo relvado que dizem que lhes foi prometido e que ainda esperam.
Teresa, Txuca e Francisca recusam-se a tirar foto para a reportagem.
“Sima nu sta ruço li?!” (Mal arranjadas como estamos?!)
Na zona não há salão de cabeleireiro.
“Para quê? Havia um, mas as pessoas não ajudam. Iam todas arranjar o cabelo na Praia. O cabeleireiro fechou.”
Deixamos as três e seguimos rumo à praça onde um grupo joga à carta. Ao nos aproximarmos, notamos uma padaria. Fechada.
É a primeira coisa que perguntamos ao grupo composto de idosos e uns poucos jovens rapazes. A única mulher presente observa o jogo de cartas na esperança de que se lhe compre alguns dos pastéis que diz ter numa caixa à sombra.
Pois bem, a padaria fechou há já um bom tempo. Pães e bolachas vêm... da Praia.
Não somos obcecados por padarias. Esperamos que o leitor compreenda a alegoria que aqui tentamos traçar.
Dirigimo-nos ao senhor que parece ser o líder do grupo. João Barros, 62 anos, vive em São Francisco há 40 anos.
“Vim para São Francisco trabalhar na propriedade de um senhor chamado Edmundo Ramos. Naquela época havia mais água”.
Entre os problemas que elencam, a falta de água repete-se. Há também um problema persistente para os criadores, como se a escassez de pasto não bastasse: ataques de cães vadios e roubo de animais.
Já têm acontecido os moradores punirem os culpados por si mesmos já que a polícia aparece mas, é de vez em quando.
Um mais jovem mostra-se agastado com a constante falta de rede, principalmente da operadora Unitel T+.
“Os estudantes passam mal. Nunca há net. Muitas vezes ficam sem conseguir fazer os trabalhos”, desabafa e acrescenta mais adiante ocasiões em que o sinal da TV também está frequentemente em más condições.
Alguém se irrita e diz que há questões mais urgentes e preocupantes. Como o isolamento e precariedade de condições em que vivem alguns idosos. Muitos têm a electricidade cortada por acúmulo de dívidas, já que a pensão nem sempre permite o pagamento.
Zeferino Monteiro, ou Vital como prefere, é outro dos mais velhos do grupo que nos conta, saudoso, a boa época que a comunidade atravessou quando o resort Sambala esteve em funcionamento.
“Quando tinha Sambala kau staba sábi!” Quando funcionava o Sambala, o lugar estava bom. Lá escreveu Kaká Barbosa, ainda que ironicamente, “São Francisco bira mas sábi...”.
O facto é que havia muitas pessoas da comunidade a trabalharem no resort, “havia movimento, vendia-se muito peixe”.
Hoje, o Sambala definha, deserto. O saque tem-se feito gradual e silenciosamente.
“Há ladrões que chegam de bote, entram e tiram materiais. O que me dói é o que fizeram à máquina dessanilizadora. Aquilo poderia ter servido à comunidade. Mas foram tirando partes...”, conta Vital.
Há também os assaltos aos turistas que frequentam a praia durante a semana, a minar uma das raras possibilidades de um bom futuro para a localidade. Aos fins-de-semana, como há muita procura de banhistas, a polícia vem fazer rondas. Mas durante a semana é raro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019.