“Pequenos comerciantes foram afastados das principais ruas das maiores cidades”

PorExpresso das Ilhas,7 set 2019 8:55

2

A presença de comerciantes chineses em África e especificamente em Cabo Verde tem sido polémica ao longo dos anos e conheceu um novo episódio quando, na semana passada, a administradora da empresa Confecções Alves Monteiro acusou os donos das lojas chinesas de fazerem concorrência desleal à sua empresa.

Em declarações à Inforpress, Jael Alves Monteiro afirma que, desde 2016, a CAM vem dando conta que as lojas chinesas, em todo o país, estão a vender uniformes escolares com a marca da empresa, fazendo as pessoas crerem que se trata de produtos produzidos pela empresa nacional.

“A concorrência dos chineses é uma concorrência desleal e que nos tem criado muitos problemas e muitos constrangimentos”, acrescentou.

Para Amílcar Monteiro o comportamento dos empresários e comerciantes chineses em Cabo Verde tem sido prejudicial para a economia. “Os prejuízos já são um facto”, diz este gestor ouvido pelo Expresso das Ilhas.

“Os pequenos comerciantes foram afastados das principais ruas das maiores cidades do país. Hoje vamos à Assomada, por exemplo, e quase que não se encontram comerciantes. A cidade da Assomada há uns anos atrás tinha muitos comerciantes, havia muito comércio local e desde a entrada dos chineses, os cabo-verdianos praticamente saíram do negócio. Só alguns é que conseguiram prosperar neste cenário”.

Faltam estratégias e planeamento

Mas a responsabilidade, aponta Amílcar Monteiro, pode e tem de ser atribuída à falta de planeamento no sector do comércio nacional.

“É uma situação que nos remete a algo que já vinha sendo feito e que tem a ver com o planeamento da actividade comercial. O comércio tem de ser planeado, o comércio interno e a sua repercussão em relação ao comércio externo têm de ser planeados. Se não forem o Estado fica sujeito a várias situações que fogem ao controlo”.

A forma como os comerciantes chineses entraram no mercado nacional é outro aspecto a ter em conta. “Quando vemos uma pequena loja chinesa, aparentemente essa loja tem características semelhantes a uma loja informal. Tem um ou dois funcionários, tem um stock e é uma pequena loja. Mas a diferença é que essa pequena loja chinesa é como se fosse uma filial que é abastecida através de uma rede, que beneficia de vantagens de escala e de uma organização que está por trás mas que nós não vemos. O papel dessas lojas chinesas é completamente invisível para a concorrência como um todo, mas o efeito é extremamente danoso quando se percebe que eles não actuam isoladamente”, explica Amílcar Monteiro.

Outro factor. Os comerciantes cabo-verdianos continuam a actuar de forma isolada e, garante Amílcar Monteiro, isso acaba por ser prejudicial.

“Quando os nossos empresários não têm estratégias em comum de compra lá fora, compram de forma individual e em pequenas quantidades acabam por trazer produtos com um preço muito caro e acabam por perder espaço para a concorrência dos chineses”, diz.

A presença de lojas chinesas em Cabo Verde tem igualmente os seus pontos positivos.

Amílcar Monteiro reconhece que “há sempre situações positivas. Agora há disponibilidade de bens. As pessoas têm a possibilidade de vestir bem. Houve um momento em que os chineses entraram e todos beneficiamos da disponibilidade de itens que eles trouxeram para o mercado”. No entanto, ressalva, “a verdade é que eles trouxeram esses itens que são, frequentemente, de baixa qualidade”.

A ausência de uma Autoridade da Concorrência

Há outro factor que tem sido, na opinião de Amílcar Monteiro, fundamental para impedir que o sector do comércio em Cabo Verde se desenvolva de uma forma mais equilibrada: a ausência de uma Autoridade da Concorrência.

“Há anos que se fala nisso. Existem as agências reguladoras, cada uma delas tem alguma competência nessa área, mas a concorrência acaba por ser algo transversal que exige uma especialização para se perceber como é que esse tipo de comportamento afecta o nosso desenvolvimento”.

“É uma situação bastante complexa e que requer um maior diálogo entre os próprios cabo-verdianos, para nós entendermos como fazer frente a essa concorrência” feita pelas lojas chinesas, destaca o gestor.

Dado adquirido. As lojas chinesas estão em Cabo Verde para ficar e, por isso, “não adianta chorar sobre o leite derramado agora que há uma realidade assente e os comerciantes saíram do mercado”.

“Nós liberalizamos o nosso comércio. Cabo Verde tem uma pauta aduaneira que é das mais livres do mundo. Nós temos 99% da nossa pauta aduaneira que é consolidada a nível da OMC e isso cria uma abertura total. Um operador chinês que esteja no nosso mercado tem a possibilidade de operar com uma liberdade que nem na China consegue ter”, aponta.

Com maior poder de compra, com uma rede de abastecimento completamente estruturada e montada os comerciantes chineses “acabam por empurrar o operador nacional para fora do mercado. Nós deixamos de ser comerciantes para sermos apenas passivos consumidores. Mas mesmo sendo passivos consumidores há a questão da qualidade do produto que está a ser trazido para Cabo Verde que não tem qualidade nenhuma e não há aí ninguém para controlar. Por exemplo, muitos dos produtos alimentares que se estão a consumir em Cabo Verde estão com a data de validade prestes a vencer. Porque é mais fácil comprar esses produtos do que fazer um abastecimento sério, responsável, que tenha preocupação com o ambiente, as pessoas, a sociedade”.

“Esse tipo de questões é sério. Não sei o que o governo está a fazer sobre isso”, diz ainda Amílcar Monteiro.

Fenómeno continental

A presença chinesa é uma realidade que ultrapassa o espaço nacional. “Toda a África tem situações do género e isto requer do Estado uma maior clarividência em relação ao que é que o governo chinês faz e obriga a que se tomem medidas para proteger o operador nacional que não está preparado para este tipo de concorrência, para a sofisticação da forma como os operadores chineses entraram no nosso mercado e acabam por transformar o nosso mercado”, explica Amílcar Monteiro.

Na Nigéria, por exemplo, como é descrito numa reportagem do The New York Times, “os produtos chineses estão espalhados um pouco por todo o lado e são prova do domínio chinês no que respeita ao comércio global”.

Porém, produtos de má qualidade ou falsificados são um problema nacional na Nigéria, a maior economia da África, onde consumidores pobres, como destaca aquele jornal norte-americano, têm poucas alternativas.

“Alguns produtos de má qualidade são benignos, como camisas, calças e vestidos fabricados na China, com costura irregular e fios perdidos que enchem os mercados de rua. Mas a cabos eléctricos, tomadas e outros materiais do género fabricados na China, são omnipresentes em novas residências e escritórios e estão ligados a dezenas de incêndios por ano apenas em Lagos”, relata o The New York Times.

A relação entre China e Nigéria é uma rede complexa de dependência, replicada em dezenas de países em desenvolvimento ao redor do mundo, como Chile, Etiópia e Indonésia. Tais laços são parte integrante das ambições globais da China.

Mas esses esforços também colocam desafios novos e imprevisíveis para Pequim. A China fez grandes empréstimos a países exportadores de commodities, que agora estão enfrentar baixos preços.

Ao mesmo tempo, o sector de fabricação altamente competitivo da China devastou muitos rivais de menor escala na África, Ásia e América Latina. A promessa do presidente chinês Xi Jinping de melhorar as relações comerciais com África, em parte, parecia destinada a reprimir as críticas ao que alguns vêem como um relacionamento desigual que beneficia amplamente a China.

Para apoiar o comércio crescente na Nigéria, a China está canalizar milhares de milhões de dólares para construir estradas, linhas ferroviárias, terminais de aeroportos, centrais de energia e outras infra-estruturas necessárias. A China é a principal financiadora da Nigéria, onde a instabilidade política e a violência fizeram os interesses ocidentais estremecerem.

A Nigéria, por sua vez, tornou-se o maior cliente no exterior das empresas de construção chinesas. É um mercado importante para Pequim, numa época em que o crescimento da própria China está a diminuir.

Mas o amplo alcance da China agora encontra resistência na Nigéria.

Em Abuja, a capital, o novo governo está conduzindo investigações anticorrupção em grandes contratos de construção chineses assinados pela liderança anterior. Os governos estaduais da Nigéria estão a resistir para pagar muitos desses projectos, expondo a China a perdas potencialmente pesadas.

Em Kano, manifestantes enfurecidos nas ruas culpam a generalizada falta de empregos na China, que está fabricando desenhos de tecidos africanos em tons cintilantes mais baratos que a Nigéria. O emprego no sector têxtil e de vestuário da Nigéria caiu para 20.000 pessoas, de 600.000 há duas décadas.

CCISS sem queixas

“Eu não concordo com a ideia que se estejam a expulsar os comerciantes cabo-verdianos do mercado”, diz, por seu Lado, Jorge Spencer Lima, Presidente da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Sotavento.

Spencer Lima, em conversa com o Expresso das Ilhas destaca que “no caso da contrafacção existem mecanismos para se controlar isso. As pessoas é que não apresentam queixa nas entidades competentes como a IGAE e o Instituto da Qualidade”.

Havendo queixa e provando-se esses casos de alegada contrafacção “aí sim há razões para se levar o caso para outra vertente. Mas não se pode estar só a falar, é preciso agir nesse sentido e, até prova em contrário, as instituições funcionam”. Por isso, reforça, “existindo essas queixas elas devem ser dirigidas a essas entidades. Só depois disso é que se devem começar a fazer queixas públicas”.

A CCISS, garante o seu presidente, “até agora não recebeu uma queixa. Eu sei que há essa coisa [reclamações contra comerciantes chineses] mas ninguém se queixa e não havendo queixas não se pode fazer nada”, diz Spencer Lima.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 927 de 04 de Setembro de 2019. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Expresso das Ilhas,7 set 2019 8:55

Editado porAndre Amaral  em  9 set 2019 11:52

2

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.