Sozinhos em casa... a vida dos filhos das rabidantes

PorSheilla Ribeiro,12 jan 2020 8:35

Às 5 horas da manhã o alarme toca e começa o dia para a vendeira de frutas, Celina da Cruz. Para a frente, um longo de dia de trabalho, que só termina por volta das 18 horas. E para trás ficam os filhos que, sozinhos, têm que se desenvencilhar até ao regresso da mãe. Assim é também a rotina de muitas outras famílias de vendedeiras na Cidade da Praia.

“Faço isso há tantos anos que, por vezes, acordo antes do alarme, inclusive aos fins-de-semana”, afirma Celina da Cruz, a única responsável pelo sustento dos filhos, uma situação que a obriga a levantar-se cedo de segunda a sábado, faça chuva ou faça sol, com a sua banheira cheia de frutas carregada na cabeça.

Celina é vendeira ambulante, ou seja, não fica parada num sítio. “Ando de bairro em bairro para catar moedas, porque eu sei que ali é que está o pão dos meus filhos”, continua esta mãe de duas meninas, 21 e 15 anos, e de dois rapazes, 23 e 17 anos. A mais velha das meninas é quem toma conta da casa e dos irmãos, conforme informa.

A filha de 21 anos, não é a mais velha dos irmãos. Entretanto, a mãe explica que o mais velho é deficiente mental e, por isso, não tem condições de ser o responsável. Durante o dia, Celina não regressa para casa para comer ou ver como os filhos estão.

“Eu tenho o hábito de comer na rua, então não vejo a necessidade de lá ir. Eles já são crescidos, podem perfeitamente desenrascar-se”, diz. Contudo, a rabidante (como são chamadas) declara que o marido, desempregado, é quem verifica como estão os filhos e por vezes até providencia o almoço uma vez que “a sua função é buscar o sustento da família”.

Outra mãe, a mesma realidade

Por sua vez, Leny Tavares descreve que, de segunda a sábado, sai de casa antes das 9h30 para vender frutas, deixando os filhos sozinhos em casa, para regressar por volta das 19 horas ou um pouco mais tarde, mas sempre antes das 20 horas.

“Por vender frutas, por vezes, fico num lugar específico, mas quase sempre coloco a banheira na cabeça e vou a vários sítios vender”, diz.

Leny Tavares é mãe de duas meninas, uma de 8 e outra de 12 anos e de um rapaz de 10 anos. Com excepção da filha mais nova, os dois mais velhos ficam em casa sozinhos durante a manhã e depois de saírem da escola.

“A mais pequena estuda de manhã e quando regressa a casa os outros dois vão para a escola, à tarde. Para não ficar sozinha em casa fica com o meu sobrinho e mais uma amiguinha”, conta.

A rabidante conta que deixa a comida pronta antes de sair para vender e, caso estiver perto de casa, dá uma vista de olhos para ver se está tudo bem. “Não me preocupo tanto, porque na casa onde vivo há vizinhos no primeiro andar e sei que eles ficam de olho”, confia.

Filhos de rabidante

Clotilde “Clo” Piedade, 25 anos, formada em Engenharia de Sistemas e Informática, é filha de uma mãe rabidante, já falecida. Conforme narra, a mãe vendia linguiças no mercado do Plateau, saía de casa por volta das 8 da manhã e retornava às 14h30.

“Somos 7 irmãos e a irmã mais velha sempre cuidou de nós, era uma espécie de segunda mãe. Ela fazia o almoço, mas depois ensinou-nos a fazer de tudo. Tanto é que a minha mãe, quando chegava em casa, encontrava tudo feito”, refere a jovem.

Ao ir para o mercado a mãe de Clotilde Piedade deixava os filhos responsáveis pela venda de legumes em casa. Quem estudava a tarde, de acordo com a jovem, vendia de manhã, e quando a mãe chegava do mercado, vendia os legumes enquanto os filhos faziam as linguiças que seriam vendidas no dia seguinte.

“Sempre fomos nós os irmãos a cuidar um dos outros, não havia nenhum vizinho que cuidasse de nós. A nossa mãe criou-nos independentes”, assume.

Aluna do 10º ano, Patrícia Pires, de apenas 17 anos é também filha de uma rabidante. É ela quem toma conta da casa, apesar de viver ao lado da avó, uma vez que a mãe e o pai saem de casa às 5 e meia da manhã e só regressam ao final do dia.

“Eu faço de tudo em casa. Tomo conta da casa, cozinho e limpo quando volto da escola, que é no período da manhã”, conta a jovem acrescentando que, por ficar sempre sozinha em casa, não tem um adulto que supervisiona os estudos. A adolescente considera que talvez por isso, tenha reprovado no ano anterior.

“Os meus pais chegam em casa cansados e normalmente à hora do jantar, por isso não têm tempo para as reuniões na escola”, explica. A progenitora de Patrícia vende no mercado do Plateau enquanto o pai é pedreiro. Por ser a mais velha toma conta de um irmão de 11 anos.

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Patrícia não encara a ausência dos pais como um problema, pois considera-se mais madura do que as colegas da mesma idade e não precisa pedir autorização para sair quando lhe convém na ausência deles.

Entretanto, esta jovem está grávida de 6 meses, por isso não sabe se vai continuar os estudos por causa do bebé, uma vez que a mãe não pode ajudar a cuidar da criança. O pai do bebé, conforme conta, é um outro jovem da mesma idade cujos pais nem sabiam da sua existência, antes da gravidez ter dado nas vistas.

Vivendo num bairro onde há muitos filhos de rabidantes, a menina “adulta” diz não considerar que a culpa seja dos pais por estar grávida, afinal, disse “acontece”. Complementa ainda que apesar de estar sozinha em casa, nunca passou por nenhuma dificuldade uma vez que lhe é deixado dinheiro para comprar tudo o que precisar.

Irresponsabilidade?

Apesar de ser filha de uma rabidante, Clotilde acredita que “algumas mães rabidantes são irresponsáveis”.

“Mesmo que queiram buscar o pão para os filhos. Penso que ou poderiam levar os filhos com eles para mais segurança ou procuravam uma forma de os meninos nunca ficarem sozinhos”, opina. A ponderação desta jovem baseia-se no facto da mãe ter colocado a ela e aos irmãos num jardim-de-infância e de ter acompanhado os estudos de cada um, apesar da desistência dos rapazes, ainda no secundário.

“Mas, o bom de ter uma mãe rabidante é o facto de aprenderes a batalhar desde muito cedo. Minha mãe morreu, mas, continuamos a fazer o seu negócio, continuamos a vender no mercado. A minha irmã mais nova pagou a universidade até ao 2º ano do curso, depois a minha mãe adoeceu e veio a falecer. Agora somos nós as irmãs que pagamos com o dinheiro das linguiças”, diz.

Clo revela que após a doença da mãe, a irmã mais velha passou a frequentar o mercado para vender as linguiças mas, após ter o bebé, a irmã mais nova, Ana, passou a vender de manhã e a frequentar a universidade à tarde.

“Foi com o dinheiro da linguiça que nos desenrascamos e é com isso que vamos continuar a desenrascar para arranjar a nossa casa. Para ser rabidante é preciso ter paciência. Foi com isso que ganhamos enquanto a minha mãe vendia, há dias em que há vendas e há dias em que não”, lamenta.

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Apesar de considerar “irresponsabilidade” deixar os filhos durante o dia sozinhos, Clotilde Piedade admite que, enveredar “pelo caminho errado”, depende da educação dos pais, sendo rabidantes, ou não.

“Há muitas rabidantes que passam o dia todo fora, longe dos filhos, o que acaba por dificultar bastante, em saber o que é que os filhos fazem. Connosco foi diferente, porque apesar de sair para vender, a nossa mãe nunca esteve ausente, não faltava uma reunião da escola. Mesmo depois de crescidos para sair tínhamos de dar satisfações, caso contrário ninguém saía”, relata.

Janine, tia de filhos de rabidantes

Janine Moreno é proprietária do jardim de infância Cantinho de Alegria onde frequentam muitos filhos de rabidantes.  Conforme explica ao Expresso das Ilhas, esses são aqueles que ficam no jardim das 8 ás 18 horas para não ficarem sozinhos em casa. Os restantes ficam apenas meio período.  “Por serem pequenos ainda, o jardim acaba por ser uma alternativa, mas eu pergunto e quando forem para a escola? Quem vai tomar conta deles? É uma situação complicada”, expressa.  Para Janine Moreno, o pão de cada dia é importante.Entretanto, torna-se necessário prestar atenção aos filhos, que “muitas vezes ficam sujeitos a fazer más escolhas por falta de orientação”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:Sheilla Ribeiro,12 jan 2020 8:35

Editado porFretson Rocha  em  13 jan 2020 19:11

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