A covid-19 obrigou a uma mudança de hábitos, com o distanciamento social a ser recomendado pelas autoridades, como forma de travar a propagação do vírus. Mas não estamos todos no ‘mesmo barco’. Para os deficientes visuais, o uso de máscara e a necessidade de evitar o contacto significam a supressão de sentidos com os quais mitigam a falta de visão.
O toque, o olfacto, a proximidade face ao outro são fundamentais para a orientação de pessoas com deficiência visual. Habituados a usar os braços e as mãos na locomoção, acostumados a tactear superfícies e objectos, a sentir cheiros, como forma de reconhecer o que os rodeia, os cegos tiveram que mudar as suas rotinas.
Marciano Monteiro, presidente da Associação dos Deficientes Visuais de Cabo Verde (ADEVIC), afirma que, para os invisuais, a covid-19 gerou um ambiente desconhecido, de riscos acrescidos.
“As mudanças vieram e para todos. As pessoas com deficiência visual não estão fora desse ‘todos’, porque temos riscos e os nossos são ainda maiores. Isso quer dizer que temos acréscimo de obrigatoriedade, nomeadamente na questão do uso de máscaras e de outras medidas de segurança que a pandemia nos impõe”, comenta.
Sem o sentido da visão, os cegos apelam a outros sentidos, numa dinâmica sensorial que lhes permite perceber o que se passa à sua volta, identificar pessoas e localizar lugares. Uma situação complexa.
“É uma questão complicada. O tacto é uma das vias para a transmissão da doença e para as pessoas com deficiência visual o tacto é um dos meios para interacção com objectos e pessoas. O que devo dizer, enquanto pessoa com deficiência visual, é que temos que ter muito cuidado. O ideal é evitar os contactos, na medida do possível. Lá onde não for possível, temos que ter cuidado e, logo após ao contacto, fazer a desinfecção das mãos”, relembra o presidente da ADEVIC.
Renato Almeida, ‘Nana’, mora em São Vicente. É cego. Está consciente dos cuidados acrescidos que lhe são pedidos, mas explica que o toque é inevitável.
“Este é um constrangimento muito complicado. Neste momento, tens que ter cuidado onde e como estás a colocar as mãos. Os nossos olhos são as nossas mãos, sem as mãos não somos nada. Então, neste momento, é muito complicado, temos que evitar tocar e muitas outras coisas”, desabafa.
Com uma bengala ou com um guia, o invisual caminha apoiado. No actual contexto, a sugestão de ‘Nana’ é só uma: evitar deslocações.
“A melhor opção é não sair de casa, pelo menos para mim. É um inimigo invisível que não sabemos onde está. Mais vale não arriscar e ficar em casa até que a situação esteja suavizada”, defende.
Na Praia, Manuel António Mendes de Pina, ‘Codé de Júlia’,contraria o medo de sair, mas relembra a necessidade de respeitar todas as normas de segurança.
“Quando preciso de sair de casa, por exemplo, para ir ao hospital, levo a minha muleta [bengala] e também levo comigo a minha filha, para me segurar. Tenho medo, mas precisamos de sair. Às vezes, colocamos as mãos por descuido, mas lembramo-nos logo”, conta.
Ter o toque como essencial obriga os deficientes visuais a cuidados redobrados com a higiene. Manter mãos, óculos e outros objectos desinfectados é uma preocupação sem intervalo. Marciano Monteiro recorda que a bengala, por contactar com o chão, é um potencial foco de contágio, pelo que exige atenção especial, com limpeza depois de cada utilização.
“Com água e lixivia, na parte onde se coloca as mãos. Com esta conjuntura, é necessário que se aplique este tipo de medidas. Se não aderirmos a estas medidas sabemos quais são as consequências e isto vale para pessoas com ou sem deficiência. É necessário que tenhamos consciência disso, que não estamos numa situação normal”, alerta.
Desafiados diariamente, com ou sem pandemia, os deficientes visuais estão habituados a procurar respostas para problemas que surgem no seu caminho e sabem como poucos a importância de lidar e superar qualquer tipo de limitação.
Questionado sobre as dificuldades acrescidas desta população, o Director Nacional de Saúde recorda que as medidas de segurança sanitária são válidas para todos.
“As máscaras, apesar de servirem de barreira, ainda assim permitem a percepção do cheiro. Principalmente em pessoas que têm alguma deficiência visual, outros sentidos ficam mais apurados. As medidas são iguais, têm que andar com o seu frasco ou embalagem de álcool gel ou de álcool glicerinado, para poder fazer a higiene periodicamente, para evitar contaminações. Infelizmente, a situação obriga-nos a ter essas medidas de prevenção, que poderão condicionar as pessoas com deficiência”, refere.
Segundo o último recenseamento (2010), Cabo Verde terá cerca de 13 mil deficientes visuais.
com Lourdes Fortes e Ailson Martins
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 969 de 24 de Junho de 2020.