Com 22 milhões de casos confirmados, o SARS-CoV-2 alterou hábitos e rotinas. Para a maioria de nós, a pandemia significou a entrada num mundo desconhecido, de vírus, infecções e doenças. Os jornais, as rádios e as televisões encheram-se de notícias sobre estudos e descobertas. A investigação científica acelerou o passo e o mundo acompanhou em directo. Mas estaremos preparados para perceber o que a ciência nos diz?
A divulgação científica é o processo através do qual o conhecimento científico chega a públicos não especializados. Retirar a ciência do meio académico e levá-la ao encontro das massas, numa linguagem simples e compreensível, é o propósito desta actividade.
Hélio Rocha é doutorando em Medicina Tropical e Saúde Global, professor e investigador da Universidade Jean Piaget, onde coordena um projecto de impressão 3D para dar resposta à covid-19 em Cabo Verde. Destaca o papel da disseminação científica.
“A divulgação científica, embora muitas vezes percebida como o parente pobre do processo da construção do pensamento científico, desempenha um papel fundamental nesse processo, pois possibilita o contacto do grande público com os conteúdos sobre os quais os cientistas estudam”, refere.
Nesta equação, os meios de comunicação social jogam um papel fundamental, pela capacidade que têm de descodificar mensagens e fazê-las chegar a um grande número de pessoas.
Jornalista de ciência e tecnologia há mais de 20 anos, em Portugal, Rita Hasse Ferreira, avalia como “muito positivo” o espaço que a divulgação científica conquistou num passado recente.
“A covid-19 veio dar mais visibilidade à ciência e respectiva importância como um todo, abrindo oportunidades para aproximar o público das actividades científicas, de forma a que compreenda como funciona a ciência, qual a sua relevância e porque é tão importante a ciência baseada em evidência”, comenta.
A confiança na ciência foi posta à prova em 2020. O investigador no Medical Research Council Laboratory of Molecular Biology e na Clare Hall College, da Universidade de Cambridge, Jailson Brito Querido, coloca em perspectiva os últimos meses e recorda a necessidade de a comunidade científica reivindicar um outro papel na esfera pública.
“Durante séculos, a ciência esteve fechada nos meios académicos e isso teve um enorme custo. Uma das razões para o rápido crescimento do movimento antivacinas e de outros grupos é justamente a ausência da ciência e dos cientistas nos debates sobre as principais questões que afectam o nosso dia-a-dia. Hoje, finalmente, a comunidade científica está a ter a oportunidade de ter um papel mais activo no debate social”, defende, apesar de admitir que a grande maioria dos cientistas continua a resistir a uma maior abertura à comunidade.
A produção de conhecimento científico vive de tentativa e erro. Os cientistas formulam hipóteses e depois procuram confirmá-las ou desmenti-las. Falhar e recomeçar é parte da rotina. É este o processo que temos acompanhado. Aquilo que nos parece uma contradição é, na realidade, a ciência a ser ela mesma.
“Os resultados do conhecimento científico não são verdades absolutas e inalteráveis, mas esta dinâmica não é aceite de ânimo leve pelo público, porque gera instabilidade, angústia e incertezas”, explica a antropóloga Celeste Fortes, investigadora e docente da Universidade de Cabo Verde.
Celeste, que tem trabalhado na transferência de conhecimento das ciências sociais, acredita que a crise em torno do coronavírus poderá contribuir para derrubar os “muros da academia”.
“Se conseguirmos quebrar este muro, estaremos em posição de fazer ciência. Se a ciência se fecha sobre si própria, então ela não é ciência”, ambiciona.
Hélio Rocha preocupa-se com a possibilidade de, terminada a pandemia, a ciência sair da agenda.
“Hoje fala-se muita da ciência, devido a uma situação que, mais tarde ou mais cedo, irá ser resolvida. E depois? Vamos esperar a próxima pandemia para nos lembramos da ciência?”, questiona.
Jailson Querido não está particularmente optimista.
“Numa sociedade onde há um forte crescimento da pseudociência, com graves impactos na saúde pública, é importante ter a ciência mais próxima das pessoas e haver um canal de comunicação entre quem faz ciência e a comunidade. Contudo, duvido que a ciência vá manter essa posição preponderante nas tomadas de decisão no pós-pandemia. A nossa sociedade não mudou assim tanto”, vaticina.
A crise sanitária tornou evidente que não basta produzir ciência, é preciso saber comunicá-la. A jornalista Rita Ferreira, que está a concluir um mestrado em Comunicação de Ciência, aposta na apropriação da ciência por parte da sociedade, na sua compreensão “como o bem-público que é”.
“Os cientistas têm de ser melhores comunicadores, explicar o que sabem e como o sabem, e nós temos de ser melhores ouvintes”, conclui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 978 de 26 de Agosto de 2020.