Geração Conectada : As antigas e as novas formas de brincar

PorSheilla Ribeiro,13 set 2020 9:58

Quem foi criança entre a primeira metade dos anos 80 até o começo dos anos 90, teve na televisão o seu grande entretenimento de massa. Mas, nos dias de hoje, a rotina de crianças e adolescentes está cada dia mais tecnológica e conectada por meio de dispositivos móveis. Por seu turno, as actividades recreativas tradicionais como pega-pega, cabra cega, jogos com bola, entre outros, estão cada vez mais raras e em vias de extinção.

Permitir ou não tecnologia para crianças? Este é o dilema de muitos pais que vêm os filhos cada vez mais dependentes das tecnologias, mais precisamente dos pequenos ecrãs, e menos abertos às brincadeiras que envolvem actividades físicas.

O facto é que existem prós e contras. Afinal, hoje já se nasce imerso numa sociedade que não vive sem tecnologia. Mas, esse dilema tornou-se mais profundo num contexto de pandemia em que o distanciamento social é um dos factores cruciais no combate ao vírus.

Sulan Silva é mãe de dois rapazes, um de sete e outro de quatro anos de idade. Esta mãe descreve a vida dos filhos antes da pandemia como sendo cheia de actividades. Segundo diz, de manhã iam para a escola, à tarde, explicação, aulas de futebol e no final do dia brincavam no parque perto de casa.

“Tinham uma vida normal. Nós passeávamos muito. Íamos ao Platô, à piscina e nos finais de semana saíamos com os meus sobrinhos e alguns amigos. O mais velho sempre gostou de jogar PlayStation, mas sempre nas horas livres. Ainda assim, a hora de ir à praça era sagrada, não falhava e, por isso, passava pouco tempo jogando”, relembra.

Isso, até a pandemia chegar. Agora, esta progenitora diz que os filhos têm medo de sair para a rua, principalmente o mais velho, que só quer ficar em casa em frente à televisão onde passa o dia a ver vídeos no Youtube.

Hoje, o filho de sete anos entende melhor da plataforma do que a mãe. No Youtube, ouvem música, assistem curiosidades desconhecidas e, principalmente, vêm os Youtubers brincar.

“Sinceramente nem sempre consigo controlar o que vêm ou deixam de ver no Youtube. Mas, estou constantemente a entrar no quarto para verificar se não estão a ver algo inapropriado”, admite.

Para além de um Smarth TV e PlayStation no quarto, os filhos de Silva dispõem de um Tablet com vários jogos instalados. Ao contrário do que acontece com a televisão, a mãe instalou um aplicativo de controlo das aplicações que são instalados no aparato. Cada vez que as crianças quiserem instalar um novo app a progenitora recebe um email a pedir autorização para a conclusão da instalação.

Com tantos aparelhos, Sulan Silva assume que o filho mais velho tornou-se “muito dependente” dos ecrãs.

“O mais velho está muito dependente, se saímos para ir a algum lugar e não levar o Tablet ele fica irrequieto, isolado e com vontade de regressar a casa. Já não quer ir a casa da avó porque lá não vai poder fazer as coisas que faz em casa. O mais novo, logo ao acordar pede o telemóvel, não posso chegar em casa que já vai pegar no meu telefone. Quando os primos vêm aqui a casa não brincam com carro, ou legos. Se não for Youtube são os jogos no meu telefone”, lastima.

O silêncio em casa

Antes do vício, Sulan Silva conta que a casa era barulhenta, já que os filhos andavam sempre a brincar. Hoje, a casa está sempre mergulhada no silêncio porque estão o tempo todo a jogar PlayStation ou a assistir vídeos no Youtube, quando não estão a fazer vídeos para o Tik-Tok, aplicativo de mídia para criar e compartilhar vídeos curtos.

“Estão a frente da TV a partir do momento em que acordam até a hora de dormir, isto quando não têm o meu telemóvel nas mãos”, queixa-se, completando que, apesar de ter essa consciência, ainda não experimentou cortar o vício porque senão os meninos ficam sem nada para fazer.

“Não tenho outra alternativa porque saio de casa de manhã para trabalhar e ao chegar no final do dia, por vezes não tenho paciência para brincar com eles. Para tirar-lhes os ecrãs era preciso ter disponibilidade para estar com eles a brincar. Tentei inscrevê-los na aula de natação mas quando vi que havia muitas crianças desisti. Por agora é preferível que estejam à frente da televisão e do jogo do que correr o risco de contrair o vírus”, pondera.

Sulan Silva comprou livros de história e de pintar, aguarela, lápis de cor, mas, conforme conta, os filhos não se interessaram. Por outro lado, o confinamento fez com que se interessassem pelo Tik Tok. Aliás, afirma, prefere que os miúdos façam Tik Tok do que assistir Youtube porque lhes permite “explorar o lado criativo”.

Aos finais de semana esta mãe usa o Netflix para assistir filmes em família. Entretanto, queixa-se de sempre ficar sozinha na sala.

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“Estamos ali sentados e de repente um levanta-se e vai para o quarto abrir a televisão e quando dou por mim estou sozinha à frente da TV. Isto de ter mais do que uma televisão em casa e a criança ter o seu próprio espaço fez com que tenhamos perdido essa cultura de reunir e ver televisão”, expressa.

Família diferente, o mesmo problema

Telma Rodrigues é mãe de duas meninas. Uma de 10 e outa de dois anos de idade e, à semelhança de Sulan Silva, descreve a vida das filhas antes da pandemia como sendo dinâmica e rodeada de outras crianças.

Apesar do dinamismo, narra, a mais velha não perdia uma oportunidade de passar o tempo em frente à televisão, assistindo Youtube. Quando se trata do telemóvel, também não perde uma oportunidade.

“Como as aulas ainda não começaram, a mais velha ainda está muito apegada à televisão e ao telemóvel, se eu fechar a televisão vai para o telemóvel onde fica a fazer o famoso Tik Tok. A mais nova, nem por isso, ainda prefere brincar com bonecas”, conta.

O facto de existir mais do que uma televisão em casa não facilita as coisas para Telma Rodrigues que, como diz, se fechar um, a filha corre para o outro aparelho.

No Youtube a filha assiste vídeos de mansões, de bonecas e de aventuras. Apesar de não gostar do vício, vê vantagem no facto de os vídeos serem em inglês.

“Há uns anos vivemos durante alguns meses nos EUA e, ao ver vídeos em inglês, ela não se esquece de falar, aliás fala muito bem. Mas, para mim há mais desvantagens do que vantagens, ela aprende e capta o mau comportamento das youtubers mirins, como por exemplo, responder em voz alta. Isto cria-lhe ilusões com mansões, fazer unhas, cabelo e outros “atrevimentos””, julga.

Quando Telma proíbe a filha de ver Youtube ela faz birra e pede para ir à rua brincar com outros meninos da vizinhança. “Mas ainda bem que o vício no Youtube não afectou a sua relação com outras crianças, ela sempre gostou de estar com outros coleguinhas. Aliás, na companhia de outras crianças nem se lembra do Tik Tok ou Youtube, lembra-se apenas de brincar com bonecas, de estar no parque, coisas normais,” gratifica.

A mais pequena, continua, ainda que prefira actividades normais, já faz Tik Tok com a irmã, por isso, esta mãe diz que quando as aulas começarem vai proibir o uso daquele aplicativo que, conforme diz, não é apropriado para crianças”.

“Os ecrãs tornaram-se numa extensão das mãos das crianças”

Para o educador João Semedo, os ecrãs tornaram-se numa extensão das mãos das crianças, uma vez que ocupam, cada vez mais, a maior parte dos seus tempos livres e disponíveis. Aliás, recomenda, que não é aconselhável proibir de todo o seu uso.

“A proibição pode sempre gerar o efeito contrário, aumentar a curiosidade e, certamente, que procurarão formas de aceder, às escondidas, sem regra ou orientação e os efeitos podem ser perversos” aconselha.

Conforme este especialista, a pandemia fez com que de certa forma os pais se sentissem “acuados” para impor o limite de tempo de estar em frente aos ecrãs, na medida em que até ao período do surgimento da pandemia e do confinamento as crianças tinham mais alternativas de ocupação dos seus tempos livres.

Antes, prossegue, iam para as escolas, havia um período em que tinham actividades extracurriculares e de ocupação de tempos livres, como as aulas de dança, de futebol, música, e de repente, viram-se em casa, com todo o tempo disponível, sem poder sair e conviver com colegas.

“Por outro lado, tínhamos pais que não estavam habituados e preparados para lidar com os filhos por muito tempo. Face a esta disponibilidade de tempo, falta de ocupação, impreparação e falta de hábito por parte dos pais, claro que os dispositivos móveis “ecrãs” passaram a ocupar mais as nossas crianças e para maioria dos pais foi uma das formas de garantir a ocupação, a tranquilidade das crianças, assim como o seu sossego”, fundamenta.

Segundo explica, é preocupante quando a criança usa as tecnologias não como uma extensão do convívio, mas como substituição, na medida em que esta atitude pode ter consequências gravosas a nível do seu processo de socialização, desenvolvimento físico, gestão de comportamento, emocional, assim como pode contribuir para o acelerar do surgimento de algumas outras patologias.

Vantagens do uso moderado e desvantagens do uso excessivo

Uma vez que os dispositivos móveis, actualmente, fazem parte do quotidiano, João Semedo, entende que é preciso socializar as crianças com esses aparelhos e conduzi-los para uma boa utilização.

“Estes dispositivos permitem aceder a um manancial enorme de informações, quase que em tempo real, e essas informações podem ser úteis, inclusive para as crianças. Hoje em dia uma boa parte das actividades escolares desenvolvem-se nessas plataformas. Por isso, as crianças têm de ter o domínio desses dispositivos, sob pena de ficarem excluídas desta nova sociedade cada vez mais tecnológica e cada vez mais tecnologizada”, opina.

Quando há uso excessivo, aponta desvantagens como problemas de socialização e comportamentais das crianças, impacto negativo na relação entre pais e filhos, atraso no desenvolvimento cognitivo, na medida em que as crianças muitas vezes limitam-se a copiar e repetir o que as personagens do mundo virtual dizem ou fazem, limitando o seu processo criativo e de expressão.

Deste modo, para garantir uma relação saudável das crianças e dos adolescentes com computadores, smartphones e vídeo games, o especialista em educação afirma que a primeira coisa a fazer é não proibir o seu uso.

“Não dá resultados e nem é recomendável. Em segundo lugar, deve-se estabelecer regras de utilização, deve-se definir o tempo, os momentos do dia e os propósitos, conteúdos. Deve-se ainda, fazer uma adequada supervisão, de forma bem pedagógica, para saber quais os conteúdos que estarão sendo consumidos pelas crianças”, indica.

Nesse sentido, o educador reitera que os pais devem participar, sempre que puderem, na” vida digital” das crianças.

“Um aspecto importante é que se deve criar alternativas às crianças em termos de ocupação para que possam fazer outras coisas e não estar presas sempre ao mundo digital ou ter o mundo digital como única alternativa para ocupação dos seus tempos livres. Aí a participação dos pais é fundamental. Deve-se ainda adequar os dispositivos à faixa etária das crianças e ajustar às suas necessidades. O controlo parental é fundamental”, assegura. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 980 de 9 de Setembro de 2020. 

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Autoria:Sheilla Ribeiro,13 set 2020 9:58

Editado porSheilla Ribeiro  em  14 set 2020 9:26

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