Em entrevista à Lusa, Nelson Cunha, que vive há dez anos nos Estados Unidos, considera que existe “muita complexidade” na experiência de vida de diversos grupos populacionais e comunidades no país, que tem a ver com “traumas causados por questões raciais”.
“Por exemplo, eu sou ‘preto’, eu sou imigrante, mas se eu me comparar com outro ‘preto’ aqui nos Estados Unidos, talvez eu esteja em melhor posição. Porquê? Porque eu não tive os traumas que eles tiveram aqui, crescendo dentro de um sistema tão fechado, reprimido”, considerou o cabo-verdiano, que também viveu em Portugal durante vários anos.
Nelson Cunha recorreu aos protestos que há meses têm tomado as ruas de inúmeras cidades nos EUA e no mundo, com o ‘slogan’ “Black Lives Matter” (vidas negras importam): “É tudo fruto, resultado ou consequência de medidas e políticas feitas propositadamente para prejudicar os afro-americanos”, disse.
“Nós, imigrantes africanos, não trazemos esse peso”, acrescentou o conselheiro do departamento de Desenvolvimento Económico da Câmara Municipal de Boston.
“Eu, apesar de ser africano, não tenho esse peso porque os meus pais, os meus avós, os meus antepassados não passaram por isso. Para mim é mais fácil vir e ver uma cosia de uma outra forma. Enquanto eles [americanos] não, eles têm muito mais carga do que nós”, considerou.
O cabo-verdiano acrescentou também que as pessoas que desvalorizam o movimento “Black Lives Matter” com a resposta “todas as vidas importam” demonstram ignorância e desconhecimento da história, duas coisas também transmitidas por “quem tem controlo”.
“Claro que todas as vidas importam, mas nem todas as vidas foram reprimidas, abusadas, maltratadas”, contrapôs. Nas suas palavras, “as vidas amarelas, as vidas vermelhas, as vidas cor-de-rosa sempre importaram”.
Nelson Cunha é natural de Santa Cruz, na Ilha de Santiago, Cabo Verde. Viveu lá grande parte da infância e juventude, até que se mudou então para Portugal, para trabalhar e continuar os estudos. Foi por incentivo do pai que se convenceu a viajar para a América.
Quando visitou os Estados Unidos pela primeira vez, há mais de dez anos, sentiu “uma coisa que nunca tinha sentido antes”: “o sentido de comunidade” entre os imigrantes cabo-verdianos e de outros países de língua portuguesa, que “estão sempre a defender o interesse colectivo”.
Sem dúvidas, o cabo-verdiano diz que “certamente que sim”, as comunidades lusófonas nos Estados Unidos apoiam os imigrantes que têm interesse em tornar-se líderes.
O conselheiro disse que ficou “fascinado” com as oportunidades que as comunidades lusófonas criam nos Estados Unidos: “a primeira coisa é o indivíduo ter vontade” e motivação.
“Basta [a pessoa] ter vontade e querer ter um papel importante ou fazer algo que beneficie não só a própria pessoa, mas as pessoas que estão ao redor, e encontra sempre apoio”, declarou.
Para Nelson Cunha, que também é autor de um livro de poesia, traça-se assim a diferença entre os EUA e Portugal ou Cabo Verde: para os imigrantes, “não há o poder central preocupado com o que se passa com a comunidade cabo-verdiana, brasileira ou a comunidade de leste”.
Há dez anos, Nelson Cunha começou o percurso nos Estados Unidos ao trabalhar no restaurante cabo-verdiano Cesária, em Boston, que é “quase uma embaixada”. Nesse começo nos Estados Unidos, aderiu a aulas de inglês para estrangeiros, conheceu mais pessoas e fez amizades, tendo-se interessado pelas atividades comunitárias e por grupos religiosos.
Fez voluntariado com uma organização não-governamental de capacitação, empoderamento e liderança de residentes de uma área de Boston, por causas comunitárias.
O cabo-verdiano foi também convidado a dar aulas de informática na mesma escola onde aperfeiçoava o idioma. Depois, evoluiu para dar aulas de inglês em contexto de conversação.
Deu o “próximo passo” como trabalhador-estudante numa ‘community college’ (faculdade comunitária), de onde transferiu para a Tufts University, uma das melhores universidades da Nova Inglaterra.
Na Tufts University, estudou Ciências Políticas e estagiou no que pode ser considerada a Câmara Municipal de Boston. Do estágio, evoluiu para um trabalho fixo para a cidade, como conselheiro do departamento de desenvolvimento económico.
Durante o seu percurso nos EUA, Nelson Cunha constatou que os imigrantes que falam português “fazem as coisas com um papel de desprendimento” não para ganhos próprios, mas “desde que beneficie a comunidade”.