Seis meses depois da COVID : Há sinais de “relaxamento” embora com aumento de casos e mortes

PorSheilla Ribeiro,26 set 2020 8:35

A 19 de Março deste ano Cabo Verde registava o seu primeiro caso positivo de COVID-19. Tratou-se de um turista inglês que se encontrava na ilha da Boa Vista. O mesmo viria a falecer dias depois. Desde então, os números de novos casos e óbitos não pararam de subir. Mas, mesmo assim, regista-se um certo “relaxamento”, o que não chega a ser de todo mau. Afinal há que deixar o pânico de lado e aprender a conviver com o vírus que, pelos vistos, vai ficar mais um pouco.

Edilson Varela, morador da Rua Tabanca em Achada Santo António, na Praia, conta que foi diagnosticado com COVID-19 no dia 20 de Julho. No início, informa este jovem de 25 anos, ficou em isolamento no hospital de campanha montado na escola de Hotelaria e Turismo de Cabo Verde (EHTCV), por dez dias.

“Quando foi decidido que as pessoas poderiam fazer o isolamento nas suas habitações, disseram que eu já poderia voltar para casa e que eu podia voltar a fazer o teste depois de 15 dias, mas eu fiz depois de oito dias porque em momento algum tive sintomas. Voltou a dar positivo, mas os profissionais de saúde disseram-me que era uma pequena quantidade de vírus que ainda estava no meu organismo e, por isso, não mais voltei a fazer o teste”, relata.

Hoje, afirma, continua sem sentir nada, por isso, diz pensar que não teve nenhuma sequela. Entretanto, revela que antes de testar positivo corria todos os dias, mas que depois de ter ido para o isolamento passou a correr menos e, quando voltou a correr, passou a sentir muito cansaço. Contudo, diz que uma médica o tranquilizou, afirmando que isto é “normal”.

“Continuei a fazer a minha vida normalmente. Uso máscara, mas, na maioria das vezes, não uso, principalmente quando estou em casa ou com os meus amigos que vivem na rua por atrás da minha casa.

Este entrevistado que diz ter sido contaminado depois de estar em contacto com a avó de 90 anos, que contraiu o vírus no Centro de Saúde, conta ainda que durante o período que esteve à espera do resultado levou a vida normalmente. Aliás, refere que nem estava a cogitar a hipótese de vir a testar positivo, uma vez que não apresentava qualquer sintoma da doença, contrariamente da avó.

“Estava normal e, com confiança, saí à rua, com máscara, saí e estive com amigos. Eu nem sequer ia para o isolamento, mas fui porque a minha avó já tinha regressado a casa para que ela não corresse o risco de uma segunda infecção. Os meus contactos todos testaram negativo. Somos uma família de sete pessoas e apenas três testaram positivo”, acrescenta.

Depois do isolamento

Edilson Varela conta que quando estava a deixar o isolamento institucional os médicos disseram-lhe que iam fazer o acompanhamento da sua situação mas alega que nunca ninguém lhe ligou para saber como estava. “Nem sequer preenchi uma ficha ou papel de alta, nada, quanto mais acompanhamento médico. Saí eu e a minha bagagem”, completa.

“No isolamento domiciliar fiz a minha rotina normal, sentava na rua com os amigos, normalmente, com máscara. No EHTCV ficava no quarto, no corredor e saía para tomar sol às 16 horas, se o sol estivesse muito quente saíamos apenas às 17 horas. Era ficar no quarto ao telefone, dormir, falar com colegas e mais nada. Em casa fiz a minha vida normalmente”, relata.

Outra experiência

Contrariamente a Edilson Varela, Sheila Semedo, da zona industrial do Tira Chapéu, também na cidade da Praia, fez todo o seu isolamento em casa. Segundo conta, foi diagnosticada com COVID-19 no dia 8 de Agosto, tendo-se isolado em casa até o dia 19 de Agosto. Na sua casa, apenas ela e sua avó foram infectadas.

“Não sei como contraí o vírus. A minha avó começou a ter sintomas no dia 1 e fez o teste no dia 3, no dia 5 recebeu o resultado positivo e tivemos de fazer o teste aqui em casa. Estive dois dias à espera do resultado. Enquanto estava à espera saí só até à soleira da porta”, narra.

Esta recuperada faz ainda saber que durante os 14 dias de isolamento ficou encarregada de cuidar da avó. Sua rotina, segundo revela, era acordar, tomar banho, preparar o banho da avó, para depois fazerem o desjejum, lavar as roupas de cama, limpar o chão, a casa de banho, a maçaneta da porta e o comando da televisão do quarto, dentre outros.

“O resto do pessoal que não acusou positivo ficou nos outros cómodos da casa. A minha tia deixava a comida na porta do quarto que eu dividia com a minha avó. Esta ficava o dia todo no quarto, eu saía para tomar sol na soleira da porta, mas não passava da porta e ninguém estava na rua. Quando entrava, desinfectava a maçaneta”, prossegue.

“Depois de recuperar nada mudou, não senti nada de diferente, na semana passada molhei-lhe na chuva e tive constipação, mas foi só isso e voltei ao normal. Até hoje, depois da COVID-19 não senti nada de diferente na minha saúde, a minha avó também voltou ao normal e espero que continue assim”, avança ainda Sheila, completando que a avó fez o teste para ver se estava negativo, mas ela não.

“Eu não fiz o teste, vieram fazer o teste à minha avó em casa. No meu caso, ligaram a dizer que já me tinham dado alta e que se eu queria a declaração de recuperado teria de passar para a ir buscar”, pontua.

Ainda nas suas declarações, esta entrevistada frisa que, durante o período de isolamento tiveram acompanhamento médico através de telefone, mas que “depois de recuperadas nada”.

Sheila refere também que depois da COVID-19 a única coisa que mudou foram os cuidados que passou a ter. Agora, afirma, só sai de casa se tiver muita necessidade, como ir ao minimercado ou tratar de algum documento.

“Já conhecemos melhor o vírus”

O médico e ex-delegado de Saúde de São Vicente, José Manuel Aguiar, afirma ao Expresso das Ilhas que, seis meses depois, já se conhece melhor o vírus, embora ainda seja temido e não se saber ainda como irá comportar-se no futuro.

“Conhecendo o vírus também aprendemos a lidar com a situação. Esse lidar com a situação é que nos traz algumas preocupações. Primeiro porque, de início, quando não se conhecia absolutamente nada sobre o vírus, havia uma certa tendência a ouvir, a escutar e a cumprir as diversas recomendações que eram feitas porque estávamos atravessando um deserto de conhecimento sobre o vírus, então tomava-se todo o cuidado para não se contrair a infecção pelo Sars-cov-2”, ressalta José Manuel Aguiar, relembrando que diversas medidas foram implementadas, chegando ao ponto de ser declarado estado de emergência, para o cumprimento de algumas normas estabelecidas.

Entretanto, acrescenta que, com o passar do tempo, as pessoas acabaram por se habituar e as circunstâncias e o grau de cumprimento das directrizes passaram a ser “cada vez menores”, expondo-se ao risco da contracção da infecção e a propagação do vírus.

“Penso que habituamos a conviver com o vírus, menosprezando o próprio facto de se tratar de uma pandemia trazendo consequências imprevisíveis para o futuro”, diz este profissional de Saúde, alertando que uma das particularidades da infecção pelo sars-cov-2 é que grande parte dos infectados mantêm a infecção sem qualquer manifestação de sintomas, “o que leva a uma certa descrença, por parte da população, na gravidade da situação do vírus”.

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José Manuel Aguiar afirma ainda que, de entre outros aspectos, o facto de o grau de letalidade do vírus ser baixo faz também com que as pessoas minimizem o “carácter sério” da pandemia e suas consequências futuras que poderão advir do não cumprimento das regras básicas estabelecidas.

Por tudo isto acredita este profissional de saúde que é preciso, pelo menos em termos de comunicação, melhorar porque, sublinha, a forma como se está a apresentar a evolução da epidemia “parece ser de uma forma tão ligeira que leva as pessoas que não estão cumprindo a continuar a não cumprir”.

“Seria um grande contributo se as pessoas colaborassem”

Por seu turno, a médica Maura Delgado, que trabalha directamente com pacientes da COVID-19 na ilha do Sal, entende que seria “um grande contributo se as pessoas colaborassem” com as autoridades sanitárias ao ponto de tornar mais fácil atingir o objectivo, que é diminuir os números de casos e levar a zero a taxa de mortalidade, num país “tão pequeno” onde “já morreram muitas pessoas”.

Segundo descreve, os doentes assintomáticos ou ligeiros que cuidou sempre tiveram um prognóstico benigno e até agora nenhum dos que já receberam alta procuraram as instituições de saúde com alguma reclamação.

“Agora os pacientes graves ou severos que recuperaram, a literatura diz que podem ficar com sequelas para o resto de suas vidas, isto é um facto e já foi confirmado. Porém, eu não posso mencionar nenhum exemplo porque depois de receberem alta, fazem o seguimento com outros médicos”.

Nas suas declarações, Maura Delgado apelou à população para que siga as recomendações das autoridades sanitárias no sentido de evitar a propagação da doença.

“A realidade é que toda a gente está cansada da COVID-19, todos querem voltar a sua vida normal, a sua rotina habitual sem o uso de máscaras, sem estar a seguir todas as recomendações. Eu sei, mas infelizmente é necessário. E as pessoas, embora estejam cansadas, se continuarem a ir contra as recomendações, vamos continuar a ter mais e mais casos”, acrescenta.

A importância do uso das máscaras

Ao Expresso das Ilhas também falou o médico e antigo delgado de Saúde da Praia, José da Rosa, que diz que em Cabo Verde não tem havido nenhuma informação sobre a vida pós-COVID-19 e que, aparentemente, parece que tudo está bem.

“Já temos uma percentagem muito boa de pessoas que já recuperaram da doença e ainda não há estudos consistentes sobre as sequelas, ou qual a percentagem das pessoas que realmente têm sequelas”, elucida este profissional, apontando ainda que há vários outros aspectos que podem ser abordados nesta luta, como a questão do uso obrigatório das máscaras nos lugares públicos.

“Isto é muito importante, porque uma infecção que se transmite por via aérea, através do ar, sem dúvidas a máscara é um método de barreira que vai impedir que o vírus espalhe, porque o vírus fica retido praticamente na máscara que se usa e se as pessoas todas usarem o risco de contaminação diminui drasticamente”, sugere.

José da Rosa afirma ainda que a higienização também elimina o risco, nomeadamente a desinfeção das mãos, das superfícies, dentre outros. Isto tudo é, segundo defende, uma questão de diminuição dos riscos de transmissão.

Outro “aspecto importante” apontado por José da Rosa é a questão das interdições das praias e dos eventos desportivos.

“Passamos vários meses sem ir às praias, isto também foi uma medida muito drástica em relação aos ilhéus. Já está provado que estar ao ar livre diminui a capacidade de transmitir o vírus e se uma pessoa estiver na praia de mar, cumprindo o distanciamento, não havendo ajuntamentos desnecessários, o risco de contaminação é baixo”, argumenta José da Rosa para quem interditar as praias “foi demasiado”.

O médico diz entender que, com regras, poder-se-ia alargar o horário de frequentar praias. Até porque, reforça, neste tempo de “imenso calor” e que as pessoas têm a necessidade de estar ao ar livre, estar na praia, o risco de contaminação é mínimo.

Em relação às actividades desportivas, este médico afirma que hoje em alguns países já se permite determinadas percentagens de pessoas a assistirem provas desportivas e até mesmo espectáculos.

“Nós temos que ver um pouco isso, não habilitar a 100%, não vai ser possível, mas desde que haja distanciamento, haja o cumprimento do uso de máscaras, haja a higienização, com proibição a 100% de bebidas alcoólicas, por exemplo, ter algum controlo com as autoridades policiais, acho que é possível num lugar aberto facilitar a ida das pessoas às actividades desportivas, ao lazer”, reitera.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 982 de 23 de Setembro de 2020.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,26 set 2020 8:35

Editado porDulcina Mendes  em  28 set 2020 7:28

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