A minha avó Lídia

PorCarla Correia,27 mar 2021 7:19

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A minha avó Lídia teria completado este ano 92 anos. A distância não nos permitiu conviver tanto quanto gostaríamos. Mas lembro-me de algumas peculiaridades dela. Das cartas que me escrevia, com uma letra desenhada e um português impecável, apesar dos poucos estudos. De como cheirava tabaco às escondidas, julgando que ninguém dava conta do seu cancan. De como se sentava pachorrentamente na soleira da porta, observando e cumprimentando os passantes. E de como, sempre ouvi dizer, não levava desaforo para casa, que nha Lídia anêra d'brincadera!

Também de como respondeu, aqui em Portugal, à minha outra avó, portuguesa, julgando estar num português afinado: "oh comadre, nem farelo!" deixando-a confusa. Ou ainda de como era suposto passar um ano connosco, mas assim que o frio começou a apertar, fez as malas e arrancou para o calor do seu Mindelo. 

Nha Lídia era uma mulher como tantas outras em Cabo-Verde, vivendo entre dificuldades e sacrifícios para criar as filhas. Valeram-lhe estas mais tarde quando foram, todas, para o estrangeiro, passando a enviar-lhe ajuda. Mesmo assim, tinha sempre qualquer coisa para dar a qualquer um "mas cuitod" que lhe batesse à porta, e ainda criou algumas raparigas de famílias com mais dificuldades. Afinal de contas, a pobreza é sempre mais solidária que a fartura.

Pelos meus 14 anos, fui com a tia Zau passar as férias de verão em casa dela. Viémos do aeroporto, e lá estava ela à porta, esperando ansiosa a nossa chegada. "Oh Carla..." atirou-me ainda de longe com um aceno. "Bem-vinda", enquanto me abria a porta da sua casinha. 

A casa era pequena, mesmo muito pequena para os padrões de uma jovem lisboeta. Mas era limpa, asseada. Senti-me logo bem ali.

Entrei no improvisado e apertado corredor, passando pela sala minúscula e pelo único quarto. Uma mesinha pequena no corredor servia para as refeições e para passar a roupa a ferro. Logo, uma porta levava-nos a um quintal pequeno, onde uma estrutura de madeira se encostava a uma escada. Lá em cima, uma modesta cozinha, onde de vez em quando subia, lembro-me, para tirar um puntinha de um queijo de Santo Antão que por lá andava.

- E a casa de banho? - perguntei. A estrutura de madeira escondia uma lata com um tampo feito também de madeira. Era desconfortável, mas teria que me habituar - mas e os banhos? Apontaram-me dois tambores e um recipiente de plástico amarelo - aqui o banho é de caneca.

Fiquei um pouco chocada. Tomava banhos de mangueira ocasionais, mas não imaginava ter de tomar banho diariamente ao ar livre, de biquíni. Lavar os longos cabelos naquelas condições, que chatice. Mas a verdade é que, logo no dia seguinte, já estava adaptada.

O calor fazia-me acordar cedinho. A avó Lídia ia trabalhar, servia cafés na Electra. Lídia de Electra, era conhecida assim. Eu, que estava habituada a comer nestum, passei a comer uma cachupa refogada, que pesava um pouco naquele calor. Mas comia sem reclamar, e passei a gostar. Depois ia para a Lajinha com a Zau e os amigos dela, ou com o meu amigo César. Lembro-me que brigavam comigo porque, no regresso, eu trazia os chinelos na mão, e fazia quase todo o caminho, da Lajinha até para lá da Praça Estrela, descalça. Apesar de "haver vidros e ser perigoso, hm hm, ess mnininha é doida!", e das pedras estarem a escaldar do sol quente, sabia-me bem aquele pé no chão. A ligação quente e umbilical àquela cidade aquecia-me o coração. E ao chegar, lá estava a avó Lídia na soleira da porta. Mandava-me tomar o meu banho de caneca com um ralhete por vir descalça, onde é que já se viu?, e a água fresca do tambor contra o chão de cimento era como um bálsamo para os pés escaldados e para o espírito. Fazia-me sentir filha da terra.

Um fim de semana fomos para o Festival da Baía das Gatas. Dormimos numa tenda sobrelotada e extremamente desconfortável. Assim que raiava o sol, saía a andar pela praia, onde ficava todo o dia distraída entre muitos banhos, sol ardente e conchas. Quando voltámos finalmente para casa, estava de novo a figura da avó Lídia à espera, à porta, como se não fizesse outra coisa, não existisse noutra dimensão que não fosse a de nos esperar na porta. Assim que me viu, perguntou com o seu ar de abusada: "o quê bsot fazê que nha neta?? Bsot leva dali um portuguesa branquinha e bsot ta trazem um mnininha preta?"... e lá me mandou de novo para o reconfortante banho de caneca, que após aqueles dias exaustivos, mais me pareceu um pedaço de céu.

Também a tia Maria Luísa me veio buscar para uns dias em casa dela, lá na morada, com direito a banho de pressão e tudo. Já nem falo da comida, abundante e deliciosa, e da limonada especial! Passei ali muito bem e fui tratada como uma princesa, como aliás é hábito da tia, que recebe toda a gente com especial carinho. E eu, uma rapariga da cidade, em plena Praça Nova sentia-me também em casa.

Hoje, quando olho para trás, vejo que tenho tanto da menina educada da Praça Nova como da mnininha da quase fralda, ali para trás de Praça Estrela, a tomar banho de caneca, de pé no chão e cabelo ao vento, sentada na soleira da porta na companhia da minha avó Lídia.

E lembro-me de como fui feliz na liberdade daquela casinha. 

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Autoria:Carla Correia,27 mar 2021 7:19

Editado porSara Almeida  em  28 mar 2021 7:53

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