“O meu percurso é a prova de que os empregos não têm género”

PorSara Almeida,14 nov 2021 9:35

Emigrou, ainda criança, para França onde construiu o seu caminho pessoal e profissional. Regressou esta semana a Cabo Verde, como ministra e em representação do governo francês, para a tomada de posse do Presidente José Maria Neves, e participou em uma série de eventos em que a questão da igualdade de género e empoderamento das mulheres estiveram no centro. Em entrevista ao Expresso das ilhas, estes são também temas de que falamos, entre outros da área da sua tutela como a integração e a diáspora.

Elisabeth Moreno fala-nos ainda da sua história de vida, ela própria inspiradora, onde nem género, nem outras barreiras a derrubar, impediram a sua trajectória de sucesso e vontade de participar na construção de um mundo mais justo e equilibrado.

De Tarrafal para França. Fale-nos um pouco de si. Nasceu no Tarrafal e emigrou muito nova para França. O que se lembra da sua infância em Cabo Verde?

Eu tenho lembranças tanto felizes como dolorosas. Felizes porque como todas as crianças desta idade, havia uma forma de descuido, de alegria de viver. Eu lembro a minha aldeia, os meus companheiros de jogo, o cerimonial da água, a escola na casa dos meus avós em Casa Choca, a bondade dos meus avós que cuidavam das crianças que tinham ficado em casa enquanto os pais saiam para cuidar das terras, dos animais, etc. Mas eu também lembro um drama que quase tirou a vida da minha irmã e que definitivamente mudou a vida da minha família. E lembro a minha chegada a Portugal, onde encontramos o meu pai que depois nos levou para França.

É mulher de negócios e política. Antes de se tornar mais conhecida do grande público, ao assumir o ministério da Igualdade de Género, Diversidade e Igualdade de Oportunidades, tinha já uma história de sucesso a nível profissional. Qual o “segredo” desse sucesso?

Os estudos, o trabalho e os encontros da vida. Eu logo entendi os obstáculos com os quais podemos ser confrontados quando não sabemos nem ler, nem escrever, nem falar a língua de um país. Sendo a irmã mais velha, eu senti-me rapidamente responsável por ajudar os meus pais que trabalhavam muito. Entretanto, além de cuidar dos meus irmãos e irmãs, eu agarrei-me aos estudos como uma boia no oceano. Fiz estudos de Direito porque queria trabalhar como advogada depois de ter constatado as injustiças e as discriminações que algumas pessoas podiam enfrentar. Finalmente, fui nomeada Ministra depois de ter passado pelo mundo dos negócios. Eu comecei por co-fundar uma empresa de construção que dirigi durante cerca de dez anos. Foi assim que eu aprendi tudo, da gestão aos recursos humanos passando pelo comércio, as finanças e o marketing. Depois mudei o percurso para o mundo das novas tecnologias e tive a oportunidade de trabalhar para multinacionais em quatro dos cinco continentes. A tecnologia e a construção são, portanto, considerados como sectores muito masculinos. O meu percurso é a prova de que os empregos não têm género. Se vocês estão animados, trabalham, aceitam alguns riscos e sabem rodear-se das pessoas certas, vocês podem tentar tudo e, quem sabe, conseguir! Eu também segui todo um trabalho de desenvolvimento pessoal, tendo escolhido o coaching e o mentoring para lutar contra a minha falta de autoconfiança e a autocensura ligada ao facto de ser uma mulher negra, num país europeu, vinda de uma condição social desfavorecida. Eu penso que, além de tudo, para conseguir [algo] na vida temos que aprender a conhecer-nos primeiro, ser conscientes das nossas forças e fraquezas e lutar contra os nossos próprios pensamentos limitantes.

Como vê a situação da equidade de género em França (em geral)? Quais os maiores desafios e o que está a ser feito para os colmatar?

O presidente Macron resolveu identificar a igualdade entre os homens e as mulheres como a grande causa do seu mandato. A totalidade do seu governo tem uma ambição forte sobre estes assuntos, quer seja o ministério da educação nacional – porque a cultura da igualdade começa desde muito novo – quer seja o ministério da saúde, do trabalho, da justiça, etc.

Nós identificámos dois eixos fortes para progredir com a causa das meninas e das mulheres. O primeiro é a luta contra as violências sexistas e sexuais, as violências conjugais, violações sexuais, o incesto, a prostituição das menores, etc. O segundo eixo tem a ver com as desigualdades económicas. No mundo inteiro, em 2021, as mulheres continuam sofrendo discriminações importantes no mundo económico. Elas ocupam os empregos mais precários, menos reconhecidos e menos valorizados. Por estas razões, levámos a votos uma lei de transparência dos salários nas empresas com mais de cinquenta trabalhadores e o Senado acabou de votar, na segunda leitura, uma lei que abrange todas as mulheres, aquelas que criam os filhos sozinhas, aquelas que estão no ensino superior, aquelas que empreendem e vamos até impor cotas para que as mulheres possam ocupar funções nas grandes instâncias de direcção. As mulheres devem estar em capacidade de participar de todas as decisões estratégicas que as afectam, no mundo profissional, no espaço público, no mundo político, etc. Isso é uma condição indispensável para um mundo mais justo e equilibrado.

Conhece algumas iniciativas em Cabo Verde (lei VBG, campanhas de prevenção gravidez na adolescência, etc.)? Qual a sua percepção da luta pela igualdade e equidade de género, aqui, em Cabo Verde?

Congratulo Cabo Verde nas suas iniciativas a favor da igualdade dos géneros. O país é exemplo nesses assuntos, quer sejam políticos, económicos ou sociais. As questões da igualdade de género estão presentes no debate público do mundo inteiro. Tivemos a prova quando organizámos o Fórum Geração igualdade com ONU Mulheres em Junho, na França. Através da Lei paridade e da lei VBG, Cabo Verde faz parte dos cinco primeiros países da África a se terem comprometido, com muita vontade, nesta questão da igualdade de género. As mulheres ocupam desde há muito tempo funções com responsabilidades em todas as esferas da sociedade. Temos que preservar essa exemplaridade invejada por muitos países. Parece-me que as meninas atingem o mesmo nível de educação que os meninos, um eixo essencial para a emancipação dessas meninas. Penso que há ainda muito trabalho para fazer sobre as questões de violências contra as mulheres, violências conjugais e intrafamiliares, a prostituição dos menores, a prevenção da gravidez precoce, etc. Temos de proteger a nossa juventude destes flagelos que estragam tantas vidas e impedem tantas meninas de realizar-se. Penso que é indispensável educar a nossa juventude sobre a vida afectiva e saúde sexual e reprodutiva.

Tem tido, ao longo dos anos, um papel activo junto à comunidade cabo-verdiana em França. A nível de género, como está a comunidade? E, ainda a este nível, quais os principais desafios?

As mulheres da diáspora em França são extremamente activas e dinâmicas, em particular na vida associativa e no empreendedorismo. É uma mulher, Fernande Semedo, que é a actual presidente da Federação das associações cabo-verdianas em França. As meninas estudam, são ambiciosas, e orgulho-me muito disso. Mas ainda existe muita violência conjugal e feminicídios. Não podemos aceitar tais fenómenos na comunidade. Existe um trabalho importante pela frente a fim de educar os autores dessas violências e encorajar as mulheres a sair para proteger as suas vidas e as vidas dos seus filhos. A vergonha e o medo têm que mudar de campo. A França demonstra tolerância zero nesses assuntos.

Falando agora da igualdade de oportunidades. Os cabo-verdianos, em geral, são bem recebidos/vistos em França? E de uma forma mais geral. Como encarar a migração e integração de comunidades?

França tem uma tradição de acolhimento muito enraizada. Quase quarenta mil cabo-verdianos vivem agora em França. Muitos deles têm sucesso, outros enfrentam mais dificuldades. A minha responsabilidade é assegurar a igualdade dos direitos, do tratamento e do acesso às oportunidades para todos. Nós desejamos promover a educação em todos os lugares, é por isso que acolhemos os estudantes e promovemos uma boa política de bolsas. Eu considero, entretanto, que as diásporas são um extraordinário trunfo tanto para França como para Cabo Verde. Os membros da diáspora são formados, têm uma dupla cultura rica e preciosa nesse mundo globalizado. Enquanto traço de união entre as duas margens do mediterrâneo, as diásporas desempenham um papel essencial no dia-a-dia e ajudam a conectar-nos uns aos outros. Uma conexão que temos de consolidar. É por isso que lançamos um programa chamado «Talentos em comum» cujo objectivo é utilizar a experiência das pessoas da diáspora nas nossas relações bilaterais. O presidente da República considera que as diásporas são aceleradores de mudança nas relações entre França e África. O continente precisa de todos os talentos para continuar o seu desenvolvimento e certos membros da diáspora estariam muito felizes em participar. Vamos unir estes laços!

França é também um parceiro de Cabo Verde. A sua visita pode ser vista como um intensificar dessas relações bi-laterais?

Claro. O presidente da República quer mandar uma mensagem forte de amizade entre França e Cabo Verde. A amizade entre os nossos dois países é histórica e temos a vontade de dinamizar ainda mais as nossas relações, em particular as nossas actividades económicas, com a ligação entre empreendedores franceses e cabo-verdianos, através da apresentação das potencialidades de Cabo Verde e através da partilha dos nossos saber-fazer respectivos. Durante a Cimeira África França em Montpellier, no dia 8 de Outubro, para a qual quatro cabo-verdianos foram convidados, o Presidente manifestou a sua vontade de escrever um novo capítulo entre os nossos dois continentes. Ele desejou reforçar a relação directa com a sociedade civil, os jovens, e os empreendedores em particular.

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Biografia

Elisabeth Moreno nasceu no Tarrafal, ilha de Santiago, a 20 de Setembro de 1970. Quando tinha seis anos um acidente doméstico provocou ferimentos graves à sua irmã, pelo que a família, em busca de melhor tratamento médico, emigrou para França. Filha de pais que não sabiam ler nem escrever, Elisabeth agarrou-se aos estudos e licenciou-se em Direito. Posteriormente, adquiriu o grau de mestre em Direito Comercial e, em 2006, o MBA em Global Business.

Na sua vida profissional, fundou uma empresa de construção e exerceu cargos de chefia em empresas tecnológicas como a Dell, Lenovo e Hewlett-Packard. Era, aliás, vice-presidente da HP para a África, quando foi convidada para o recém-designado primeiro-ministro, Jean Castex, para integrar o Governo, em 2020.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1041 de 10 de Novembro de 2021.

 

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Autoria:Sara Almeida,14 nov 2021 9:35

Editado porSara Almeida  em  15 nov 2021 15:15

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