Escutismo: Que desafios para o mundo actual?

PorSheilla Ribeiro,24 abr 2022 8:41

O escutismo foi desde sempre considerado como uma escola de valores e de competências transversais para a vida, caracterizada pelo sistema de patrulhas, pelas actividades ao ar livre, pelo imaginário e pelo jogo. Muitos são os que foram escuteiros e que com eles guardam lembranças. Entretanto, o facto de os jovens estarem constantemente conectados à internet por meio dos smartphones e o período pós-pandemia podem constituir um desafio para a educação de crianças e jovens, através desta actividade, segundo a Associação dos Escuteiros de Cabo Verde e o Corpo de Escutismo Católico Cabo-Verdiano.

Ao Expresso das Ilhas, a Comissária Geral da Associação dos Escuteiros de Cabo Verde (AECV), Leonilde Lima, diz que os desafios que o escutismo enfrenta actualmente são os mesmos desafios que os jovens enfrentam.

Isto, conforme explica, pelo facto de congregar muitos jovens, quando chegam com uma situação de violência, por exemplo, os dirigentes têm de saber como comportar-se e contornar a situação.

Um outro desafio apontado por Leonilde Lima tem a ver com os voluntários adultos e pais que queiram voluntariar-se.

“Podemos ter um grupo com 120 crianças, mas apenas 10 adultos. E quando temos um grupo de 120 crianças, queremos ter muitos adultos para dar resposta a todos os desafios que as crianças apresentam. Mesmo aos pais a quem pedimos para serem voluntários, sempre dão alguma desculpa. E isso é um outro desafio que temos, ter pais junto de nós”, indica.

Ao contrário do que acontece com os adultos, a Comissária Geral da AECV afirma que as crianças ainda adoram o escutismo, que lhes proporciona o sentimento de liberdade.

“Não realizamos as actividades dentro das escolas ou num espaço fechado, fazemos tudo na natureza, com muitas brincadeiras, então querem sempre estar nas reuniões. Há vezes em que os pais ligam a pedir que voltem para a casa. A reunião normalmente termina às 17h00 mas, por vezes, ficamos até às 19h00”, conta.

No que se refere aos adolescentes, esta responsável afirma que tem sido um grande desafio, uma vez que vêm com tudo o que engloba o seu desenvolvimento, com todos os conflitos e transformações por que passam.

Leonilde Lima refere que querem rebelar-se, não aceitam facilmente uma ordem pelo que as actividades têm de ser negociadas.

Entretanto, admite que a AECV tem procurado atrair os adolescentes denominados influencers e torná-los activos no escutismo.

“Os influencers conseguem atrair muitos adolescentes para o escutismo. E estando eles activos, muitos outros aderem ao movimento”, reconhece.

Desafio pedagógico

Por sua vez, a Chefe Nacional do Corpo de Escutismo Católico Cabo-Verdiano (CEC-CV), Zezinha Alfama, garante que o escutismo manteve a essência daquilo que o fundador Baden-Powell almejou. Ou seja, educar para formar cidadãos úteis, saudáveis e felizes.

Contudo, refere que há muitos desafios que o movimento enfrenta, começando pelas famílias.

“Penso que todos os antropólogos, sociólogos e psicólogos têm a leitura da família cabo-verdiana. Temos famílias sem tempo de qualidade para os seus filhos. Neste momento propõe-se reeducar os pais e outros componentes com mais idades porque não sabem educar os filhos devido às mudanças. Deve-se fazer adequações às mudanças”, ressalta.

Zezinha Alfama refere-se a uma juventude num mundo muito mais aberto e onde quem educa não são apenas aqueles que estão mais próximos da criança, mas também a escola e o mundo digital à sua volta.

“Estamos num mundo de subjectivismo onde as pessoas que conseguem falar mais alto conseguem mostrar, através das suas atitudes e prácticas, que o melhor é o mundo do prazer. Tudo isso faz uma grande pressão sobre os adolescentes e jovens nessa loucura de ter mais e ser mais, sem limitação. Um mundo onde a educação é para a competição. E o escutismo educa para a cooperação”, precisa.

É neste sentido que se torna necessário criar jogos de cooperação e o foco deve ser o sistema de patrulha.

Segundo a Chefe Nacional do CEC-CV, os jovens ainda procuram, e muito, o escutismo. Factor que constitui para o CEC-CV o desafio de receber a totalidade da procura.

“Isto porque não nos interessa apenas a quantidade, a qualidade é fundamental porque temos de trabalhar cada menino. O que devemos fazer é capacitar, capacitar e capacitar os dirigentes”, realça.

Por outro lado, Zezinha Alfama reconhece que ainda há jovens que não procuram o escutismo ou por desconhecerem o que significa ou pelo facto de este exigir disciplina e rigor.

“Outros podem não nos procurar porque pensam logo à primeira que os escuteiros devem ter uniformes, que é mais uma reunião para irem, para além das reuniões dos pais nas escolas, ou ainda porque é algo da igreja. Mas, aqueles que vierem e descobrirem que somos muito mais do que isso, que somos um tesouro, uma escola que prepara os mais novos para a vida, não querem mais sair”, revela.

Por seu turno, a responsável da AECV fala em crise de valores da sociedade.

“Falta valores nas pessoas e o escutismo traz valores. Quando fazemos um acampamento, uma actividade, é sempre com um objectivo. E pedimos aos pais confiança, ou que adiram ao escutismo, já que aceitamos adultos. De modo a que possamos construir uma sociedade melhor. Quem realmente está preocupado com o filho, com a sociedade, ou violência apelamos a que juntemos as forças e não ficar parados”, apela.

Tecnologia, Pandemia e Escutismo

Para Leonilde Lima, apesar de muito apegados às tecnologias, os jovens ainda têm interesse pelo escutismo.

“Estamos a tentar ao máximo não fazer actividades monótonas, uma caminhada, um acampamento, uma praia, ainda são actividades que fazem com que larguem os telemóveis ou jogos”, assegura.

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No que se refere à pandemia, a Comissária Geral da AECV aponta que a associação passou por maus bocados.

“Com o confinamento os nossos jovens ficaram mais apegados às suas casas, aos jogos electrónicos, às televisões e o retorno foi um baque. Mesmo para os dirigentes. Tivemos de criar, outra vez, a dinâmica até retomarem o hábito de irem às reuniões, e sofremos um bocadinho com isso. Estamos ainda a retomar”, realça, acrescentando que perdem alguns membros, embora estejam a entrar outros novos.

Já Zezinha Alfama assevera que o método criado por Baden-Powell foi tão excelente que o sistema de patrulha ajudou a viver o escutismo mesmo não estando reunidos nos finais de semana, devido à pandemia.

“As patrulhas têm seis a oito elementos. Há tarefas que foram dadas por sistema de patrulha e os membros que viviam mais perto um dos outros reuniam-se e faziam os trabalhos. E o mundo digital, por incrível que pareça, também tem o seu lado positivo, que é o de permitir a troca de ideias e de mensagens através do meio digital. É assim que o escutismo não parou durante a pandemia”, reconhece.

A Chefe Nacional do CEC-CV realça que estiveram na comunidade, junto com as associações comunitárias e as Câmaras Municipais, fazendo o levantamento de pessoas e famílias vulneráveis, levando cestas básicas, fazendo campanha a favor da vacinação, entre outras tarefas.

Assume que a pandemia fez com que o escutismo regressasse com mais força e muitos novos elementos, pelo facto de as crianças terem sentido falta de se juntarem e das reuniões semanais.

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“O desafio de ser escuteiro é lidar com a incompreensão dos outros jovens” - Yanick Araújo

Yanick Araújo, 28 anos, entrou no escutismo em 2017. No seu entender, actualmente o desafio em ser escuteiro é lidar com a incompreensão dos outros jovens do porquê estar nesse movimento, quais os benefícios e lidar com a “pressão social” uma vez que serem “taxados de pessoas que não têm o que fazer”.

“Sempre há o interesse pelo escutismo, mas falta aos jovens a coragem de se aproximarem porque o que o escutismo exige, e muitos jovens não estão preparados para abrirem mão da vida que levam, para enfrentarem os desafios de serem escuteiros”, observa.

Prosseguindo, o jovem escuteiro aponta exigências como a disciplina, o respeito pelos mais velhos, a obediência aos chefes.

“Enquanto escuteiros não colaboramos com a delinquência, álcool e drogas, violência e muitos outros males sociais que são característicos dos jovens de hoje em dia. Muita paródia, muito divertimento, porém sem responsabilidade. O escutismo é pelo serviço e custa um bocado abrir mão desses factos”, frisa.

Yanick Araújo diz que não teve de abrir mão de nada porque desde sempre teve de conquistar a confiança dos pais e dos irmãos, até ganhar a sua liberdade.

Ao entrar no escutismo, Yanick Araújo explica que passou a ser uma pessoa mais organizada, que sabe desenvencilhar-se melhor e que sabe enfrentar os desafios com outra perspectiva.

“O escutismo deu-me um conjunto de ferramentas que me ajudou a ser uma pessoa melhor. Uma pessoa mais capacitada para enfrentar os desafios que a sociedade nos impõe”, afirma.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1064 de 20 de Abril de 2022. 

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Autoria:Sheilla Ribeiro,24 abr 2022 8:41

Editado porAntónio Monteiro  em  24 abr 2022 12:11

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