João Montrond Barros, agente prisional, foi assassinado a tiro em Achada Grande Trás às primeiras horas de domingo (19). Um grupo de rapazes – há 9 suspeitos– abordou a vítima e outros familiares na rua, junto à sua morada para os assaltarem. Ao notarem que o agente prisional estava armado, balearam-no na cara, com uma boca bedju. João, de 51 anos, não resistiu aos ferimentos e faleceu ainda antes de chegar ao Hospital Agostinho Neto. No assalto, além de pertences como os telemóveis, levaram a arma de serviço do agente prisional.
Foi o segundo caso de morte a tiro no bairro de Achada Grande Trás em menos de dois meses. A 5 de Maio, Mauro, conhecido como Mantcholi, foi baleado na cabeça quando voltava do trabalho para o almoço. No mesmo dia, no mesmo bairro, um outro homem, de 33 anos, foi assaltado e esfaqueado. Também não resistiu aos ferimentos.
Em Fevereiro, um alegado “ajuste de contas” levou à morte de Júnior Tavares, por três encapuzados, perto da sua residência em Eugénio Lima. O rapaz, de 21 anos, que saíra poucos dias antes da prisão, foi executado com três tiros.
Em Janeiro, em Vila Nova, Bruno, de 22 anos, foi morto a tiro em Vila Nova, alegadamente por membros de grupo rival.
E andando para trás no tempo, encontramos vários outros casos. Casos que se amontoam nas parangonas pela sua gravidade. Fora do espaço mediático sucedem-se os casos menos graves, sem vítimas mortais, como assaltos a residências e caçubodies em que há igualmente recurso a armas brancas e de fogo, tiroteios entre gangues… as ruas em guerra.
Um outro fenómeno que parece estar a acontecer é o roubo de armas de fogo. À vítima mortal deste domingo, como referido, roubaram também a arma de serviço, uma Makarov, segundo relato de testemunhas. E é de lembrar, dois casos, com 20 dias de distância que aconteceram no final de 2021, início de 2022: dois agentes da PN foram assaltados, com recurso a boca bedju e a sua arma de serviço roubada. Ambas foram posteriormente recuperadas.
Entretanto, ontem, 21, a Polícia Nacional anunciou ter detido 6 suspeitos do roubo e homicídio ao agente João Montrond, entre os quais uma criança de 13 anos. Há ainda 3 outros suspeitos a monte. Foram apreendidas três boca bedjo e uma faca, mas não há informação sobre a arma do agente.
A lei
O recurso às armas brancas e de fogo, com destaque para as boca bedju, em muitos crimes e a sua ligação a uma eventual escalada da violência urbana é uma realidade há muito conhecida. Ao longo dos anos várias medidas foram sendo tomadas com bastante insucesso ou sucesso pontual.
Em Novembro de 2019, durante um “pico” de violência na capital (e ainda antes do aumento em 33% das ocorrências da criminalidade registado em 2021) o governo anunciou 14 medidas para combater a criminalidade, entre elas a revisão da lei das armas, que se previa chegar ao parlamento ainda antes do fim desse ano. Não foi.
Na semana passada, a referida primeira alteração Regime Jurídico relativo a armas e munições (que data de 2013) foi finalmente aprovado em Conselho de ministros e apresentado. As alterações prendem-se, essencialmente com a necessidade de actualização, nomeadamente a nível de conceitos e para introdução das novas classificações de armas. Prende-se também com o reconhecimento por parte das autoridades do recorrente uso de boca bedju e armas brancas na maior parte dos assaltos e recorrentes “situações de violência urbana“, principalmente na Praia.
Assim, em concreto, e conforme anunciado, a proposta prevê, entre outros, o agravamento das penas em relação à posse ilegal de armas de fogo, com destaque para as boca bedju, bem como de armas brancas, “uma vez que ainda subsistem obstáculos em relação à aplicação da lei no que toca a este tipo de armas. O texto normativo será pois clarificado.
Além disso, prevê-se ainda uma fiscalização mais apertada na entrada de armas no país, bem como o reforço dos procedimentos para obtenção de licença e autorização de aquisição de armas. E, voltando às boca bedju, uma acção mais forte também sobre os seus fabricantes.
Boca Bedju
Em Cabo Verde, nem as escolas estão a salvo das boca bedju. Em Outubro de 2021, recorde-se um aluno de uma Escola Secundária da Praia levou uma arma dessas para a escola e escola e disparou “acidentalmente” contra um colega. O tiro acertou de raspão e não houve ferimentos graves a registar. O caso foi entregue à polícia.
As armas de fabrico artesanal (boca bedju) são, como se sabe, um problema em antigo, Cabo Verde contra o qual nunca se conseguiu fazer um combate eficaz. Aliás, muitas vezes nem é feita a distinção, na maior parte das estatísticas, entre estas e as armas de fogo convencionais.
Algumas operações têm resultado na detenção e desmantelamento das oficinas, mas logo surgem outros. Foi notícia, por exemplo, que no passado 26 de Maio, a PN deteve em flagrante delito sete indivíduos em trabalhos de produção dessas armas, numa oficina situada dentro de uma casa abandonada, na Zona de Kelém na Praia. No local foram encontradas 10 armas, bem como material para fabrico de boca bedju. Foram encontradas mais três armas do mesmo tipo, abandonadas por suspeitos em fuga, na zona de Eugénio Lima.
Não encontramos divulgação de dados compilados e actualizados sobre as apreensões de boca bedju nos últimos anos. Mas sabe-se, até pelas notícias de rusgas e operações que a busca é realizada, pontualmente ao longo dos anos. Em, por exemplo, 2016 a Polícia Nacional apreendeu 87 armas artesanais e 232 de fogo convencional.
Dados da também PN, em relação aos homicídios cometidos com boca bedju, mostram no quinquénio 2016-2020 uma tendência para o aumento. No ano de 2016 houve 2 homicídios com recurso a este tipo de armas, no ano 2017, nenhum; 1 em 2018, 1 também em 2019 e em 2020 foram 4. Ao mesmo tempo, há uma redução do recurso a armas de fogo tradicionais. Em 2016 houve 29 homicídios com arma de fogo convencional e em 2020, 9. Quanto a homicídios com recurso a armas brancas: 22 em 2016; 15 em 2020.
Em 2017, ao que apurou o Expresso das Ilhas em reportagem publicada nesse ano, o custo de uma boca bedju variava entre 1500 e 7000 escudos, consoante o seu grau de sofisticação.
Operações
Entre as 14 medidas anunciadas em 2019 estava também o reforço de rusgas e detenção para identificação de pessoas com uso de arma ou ameaça de uso de arma. Essas operações têm sido realizadas todos os anos.
Este ano, em particular, desde Maio, foram realizadas quatro operações especiais de prevenção criminal em bairros da Praia, nas quais foram feitas algumas detenções e apreendidos objectos, supostamente provenientes de roubos, estupefacientes e foram, como era objectivo, também apreendidas armas e munições.
Aliás, nos objectivos das operações estão, em destaque, “o controlo, a detecção, a localização e a apreensão de armas, principalmente as de fogo que estejam em situações de posse ilegal e que podem estar associadas a outros delitos, como sejam, assaltos, agressões e brigas de grupos.”
Pelas notas divulgadas sabemos que até agora as operações decorreram nos bairros do Brasil (Achada Santo António), Eugénio Lima, Safende, Achada Grande Trás, Achadinha, Santaninha e Ponta d`Água.
No total foram aprendidas 6 boca bedju (metade das quais no Brasil), 4 armas convencionais, 56 facas, 8 maxins, 15 tacos de basebol, 1 machado, 2 catanas, 1 Frasco de gás lacrimogénio e 1 brinquedo em forma de revolver (alegadamente usado para assaltos). Ou seja, foram apreendidas mais boca bedju que armas de fogo convencionais, o que mostra a importância que deve ser dada a aquele tipo de arma de arma artesanal, agora evidenciada na revisão da lei de armas e munições.
Já em Maio de 2020, num balanço de operações realizadas durante dois meses, a PN revelava que apreendera 73 armas de Fogo, a maioria das quais (46) boca bedju.
Falhanços
Não se sabe ao certo quantas armas ilegais há em Cabo Verde. Não existe aliás nenhum método científico que o possa determinar com certeza, em nenhum país. Em Cabo Verde, em 2008, aquando da criação da Comissão Nacional de Luta contra a Proliferação de Armas Ligeiras e de Pequeno Calibre (COMNAC), essa entidade estimava que seriam entre cinco a oito mil, 80% das quais em Santiago. Outras fontes apontavam para 9500. Entretanto, entre 2000 e 2008 apenas houve 475 armas licenciadas, o que mostra que é um mundo muito à margem da lei.
Em 2014, a COMNAC lançou então uma campanha nacional de entrega voluntária de armas de fogo em situação ilegal. O alvo estimado, nessa altura era de 6500 armas. A campanha foi um fracasso, e ao fim de seis meses, saldou-se na devolução de apenas 20 armas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1073 de 22 de Junho de 2022.