Pedidos de ajuda nas redes vs. sistema médico de evacuação de doentes para o exterior

O Expresso das Ilhas foi conhecer mais de perto histórias de pessoas que buscaram ajuda nas redes sociais para garantir um tratamento de saúde mais imediato e fugir assim da burocracia do sistema médico de evacuação de doentes para o exterior.

Cíntia Tavares é uma jovem de 26 anos, que partilhou um pouco da sua luta com o Expresso das Ilhas. Em 2018, a jovem começou a sofrer dores de cabeça. Um ano antes tinha perdido uma irmã que sofria da mesma enfermidade e acabou por falecer sem saber ao certo qual era a sua doença. Depois de fazer várias consultas no Hospital Agostinho Neto, na Praia, até mesmo uma tomografia computorizada (TAC) do crânio, a jovem ainda não tinha um diagnóstico certo.

Cíntia Tavares tomou a iniciativa de compartilhar a sua situação no Facebook. Várias pessoas começaram a indicar o influenciador digital Oracy Cruz e Jailson de Saltos, que fazem parte da Associação Safende Tudo Hora. A mesma conta que procurou os influenciadores e que lhe ajudaram a mobilizar uma campanha na rede social Facebook, contando a sua situação e implorando por ajuda. Em duas semanas ela arrecadou a quantia necessária para custear o seu tratamento em Dakar.

“Cheguei a Dakar numa sexta-feira à noite, e já no sábado tinha uma consulta. Com todos os exames que fiz no Hospital Agostinho Neto nunca disseram que eu tinha colesterol alto e muito menos que eu tinha início de infecção na cabeça”, disse ao Expresso das Ilhas.

Cíntia Tavares conta que esteve em tratamento durante um mês em Dakar e depois regressou a Cabo Verde.

Em 2021 a jovem voltou ao Senegal para consultas de acompanhamento. A mesma conta que precisa realizar essas consultas pelo menos uma vez por ano para acompanhar a evolução do tratamento, mas que por falta de condições financeiras ainda não conseguiu viajar este ano.

Eloisa Vieira, uma mãe que se viu no desespero com a doença da sua filha, conta que o medo a levou a ultrapassar todas as barreiras para pedir ajuda nas redes sociais para poder tratar a filha.

“A minha filha há dois anos atrás, quando tinha 15 anos, começou a sentir-se mal; tinha convulsões, ficava pálida e perdia os sentidos. Nós fizemos todo tipo de análise no Hospital Agostinho Neto, mas nada constou. Depois de vários meses indo e vindo do Hospital, os médicos disseram-me que a minha filha tinha um problema no coração, mas que não era nada grave e que podíamos voltar para casa, e que as convulsões com o tempo iriam passar”, confidenciou.

Segundo Eloisa Vieira era notório que o estado de saúde da filha não condizia com o parecer dos médicos. A menina tinha perdido muito peso e já não conseguia segurar a cabeça, nem ficar de pé. Tinha dificuldades para se alimentar e dependia da mãe para realizar qualquer movimento.

“Eu temia todos os dias a morte da minha filha. Por desespero de causa comecei a contar a minha situação, até que uma pessoa me indicou uma associação que ajuda as pessoas a conseguir ajuda para tratamento de saúde. Então procurei a Associação Safende Tudo Hora e implorei por ajuda para poder viajar para Senegal. Ajudaram-me a fazer um vídeo contando a minha situação. Eu sou vendedeira ambulante e já não tinha nenhum dinheiro para realizar nem mais uma consulta”, testemunhou.

A vendedeira ambulante disse à nossa reportagem que os médicos em Dakar diagnosticaram a sua filha com colesterol alto e glicemia, o que contradizia o diagnóstico do Hospital Central que dizia que a sua filha tinha problemas no coração, e prescreveram-na medicamentos que estavam a prejudicar à menina.

“Estivemos duas semanas em Dakar e já na volta a minha filha já era uma outra pessoa: o diagnóstico errado poderia ter ceifado a vida dela”, disse.

Safende Tudo Hora

Safende Tudo Hora é uma associação que tem desenvolvido várias campanhas nas redes sociais para tratamento de doentes para fora de Cabo Verde. Tem uma vasta rede de apoio dentro e fora do país. Bruno Semedo, membro da associação Safende Tudo Hora, sublinha que as pessoas procuram o grupo, quando já se esgotaram todos os recursos e quando os esforços de obter um resultado positivo no Hospital da Praia se tenham mostrado infrutíferos.

“A maioria das pessoas que procuram a nossa ajuda, muitos são doentes que ficam na lista de espera, por diversos motivos. Por exemplo, precisam aguardar uma resposta para cirurgias, outros precisam aguardar a chegada de especialistas de fora do país, até lidamos com casos de pessoas que foram colocadas na lista para evacuação, mas que devido ao longo período de espera, e por medo de morrerem sem um tratamento adequado, procuraram a nossa ajuda, como intermediários, para lançar apelo nas redes sociais, devido ao grande número de seguidores que temos na nossa página, o que se traduz em um grande número de visualizações, e que poderá ajudá-los a resolver o problema de saúde”, indicou.

Este responsável sublinha que em Dakar, com o diagnóstico certo, o doente começa o tratamento e num período de dois meses já notam melhorias na saúde, que muitas vezes em Cabo Verde demora anos para se resolver.

“O sistema de evacuação de Cabo Verde é muito lento. Há casos de doentes, que por conta da gravidade da sua doença, precisam fazer várias consultas com médicos diferentes. Muitas vezes nas juntas médicas há casos de profissionais que se recusam a dar um parecer positivo para a evacuação, alegando que a doença da pessoa não justifica a evacuação, sabendo que o doente realizou uma outra consulta, paralela ao Hospital Central e foi constatado um problema que justifica a evacuação. Ou seja, há uma contradição de opinião que acaba por prejudicar o doente”, considera Bruno Semedo.

Evacuação médica de doentes para o exterior

A evacuação para o exterior, de acordo com a representante do Ministério da Saúde, a médica Maria do Céu Teixeira, é um recurso do Ministério da Saúde de transferência de doentes quando estão esgotados os meios de diagnóstico e tratamento em Cabo Verde. Faz-se então uma junta médica, que é formada por um grupo de médicos.

“Nós temos duas juntas médicas, uma para Barlavento e a outra para Sotavento. Cada junta médica é formada por cinco elementos que são nomeados pelo ministro da Saúde sob proposta do conselho técnico de cada um dos hospitais. Cada conselho técnico dos hospitais é formado pelos directores clínicos e directores de serviços dos hospitais. Portanto, são escolhidos para compor a junta médica, um médico com alguma experiência, idoneidade e capacidade técnica”, explicou.

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Segundo Maria do Céu Teixeira, esses médicos são profissionais com um nível de evolução de carreira, graduado ou assistente, já com alguns anos de carreira.

Como é que os processos chegam à junta médica?

Maria do Céu Teixeira sublinhou que o médico assistente que acompanha o doente faz a avaliação do paciente, e esgotados os recursos nacionais de diagnóstico e tratamento, inicia-se o processo de relatório médico, com todos os exames complementares anexados. Este processo é discutido no serviço.

“Apesar de ser um médico assistente com capacidade de propor, há sempre uma discussão, com todos os elementos do serviço para avaliarem a situação e dar o seu parecer e contributos. Nós temos dois hospitais centrais e os doentes são transferidos de um para o outro, de acordo com a capacidade técnica de cada hospital para dar respostas a situações específicas. Quando estiverem esgotados todos os recursos de diagnóstico ou tratamento, é proposta à junta de saúde a avaliação da situação e dar parecer para a evacuação ou não do doente”, explicou.

Essa responsável acrescenta que para a evacuação dos doentes, a opinião dos especialistas é tida em consideração. A junta formada avalia a situação e toma uma decisão. Antes disso a proposta de evacuação de serviço vai para a direcção clínica do hospital. O processo é avaliado também pelo director clínico que no fundo é ele quem tem a competência de encaminhar o processo clínico para a junta de saúde.

Espera pela evacuação

A médica Maria do Céu Teixeira informa que a partir do momento em que é identificada a necessidade de transferência do doente, o médico assistente faz o relatório, discute no serviço, passa pelo director clínico e é enviada à junta médica.

“Normalmente todo esse processo é rápido. É claro que não há um tempo definido, porque cada paciente e cada patologia tem o seu próprio desenrolar. Há patologias que podem demorar mais tempo ou menos tempo. A junta reúne-se semanalmente, uma vez por semana, os processos de evacuação são priorizados e raramente, em regra, nenhum processo fica para trás desde que entre na junta até 48 horas antes do dia da junta se reunir. A junta ocorre todas as quintas-feiras, todos os processos que entrem até terça-feira, até ao meio dia, regra geral são avaliados nesta junta de quinta-feira, a não ser que haja falta de algum documento, ou exame que é preciso complementar, mas regra geral os processos são avaliados na junta seguinte”, explicou.

“O processo é também enviado para o Ministério da Saúde para homologação do ministro da Saúde que ocorre no máximo em 72 horas. Portanto é homologado rapidamente e depois disso vai para uma plataforma em conjunto com Portugal. A partir dali o processo chega à Direcção Geral de Saúde de Portugal (DGSP), a partir deste momento o processo já é com a DGSP. A marcação da consulta, o envio para os hospitais de Portugal já não é da alçada da junta médica de Cabo Verde. Depois de ser enviado à DGSP, o processo entra numa fila de espera em igual circunstância com os doentes portugueses, e a consulta é marcada de acordo com a disponibilidade que cada hospital tem”, esquematizou.

Competências do INPS

De acordo com Maria do Céu Teixeira, a junta médica e o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) têm competências distintas. O INPS entra a partir do momento em que é marcada a consulta em Portugal e Cabo Verde for informado.

“Então, entra o processo logístico de obtenção de visto que só é concedido pela Embaixada de Portugal depois de estar marcada a consulta. Informamos o INPS e eles é que tratam da parte logística que é obtenção do visto, marcação e pagamento das passagens; no caso de o doente tiver acompanhante, tratam também do respectivo visto. Há também outras responsabilidades como o pagamento dos subsidiários, de algumas despesas com medicamentos e com dispositivos de compensação de acordo com a tabela existente em Portugal. A evacuação é um procedimento muito claro e linear. É claro que pode trazer alguma insatisfação, porque é uma questão de saúde, mas o procedimento é este. Temos procedimentos locais, e temos procedimentos que acontecem em Portugal”, esclareceu. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1074 de 29 de Junho de 2022.

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Autoria:Edisângela Tavares - Estragiária,3 jul 2022 8:42

Editado porJorge Montezinho  em  21 mar 2023 23:27

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