Dia Mundial do Controlador de Tráfego Aéreo: Os desafios de um sector de exigência máxima

PorJorge Montezinho,20 out 2022 8:31

É uma profissão exigente e são poucas as actividades humanas onde o grau de responsabilidade seja maior. Um controlador de tráfego aéreo tem de manter as aeronaves no ar, dentro dos parâmetros de segurança e os aviões têm de respeitar rotas, distâncias mínimas em voo, prioridades na aterragem e na descolagem. O Dia Mundial do Controlador de Tráfego Aéreo comemora-se a 20 de Outubro e o Expresso das Ilhas falou com o responsável da associação da classe em Cabo Verde sobre as adversidades, as mudanças e o futuro.

A pressão sobre um controlador de tráfego aéreo é muita e constante. E em Cabo Verde os desafios são um pouco maiores. “Neste momento, o desafio principal é o de não termos pessoal suficiente para os turnos”, diz ao Expresso das Ilhas Paulo Cabral, presidente da Associação Cabo-verdiana dos Controladores de Tráfego Aéreo. “E Isso é um desafio porque despoleta outros, como o tempo de descanso, o aumento de stress, etc., que dificultam o trabalho de controlo aéreo. Não tendo a dotação adequada, obviamente que isso aumenta o nível de stress”.

Stress foi das palavras mais repetidas durante a conversa com o Expresso das Ilhas. Seguida de formação, dois termos quase indissociáveis quando o assunto é a profissão de controlador de tráfego aéreo.

“O stress faz parte da profissão, mas quando temos o treino adequado temos uma parte de gestão de stress. Mesmo durante a nossa carreira, recebemos também treino para gerir o stress da melhor forma”, refere Paulo Cabral.

É uma profissão acarreta muito stress porque os controladores têm de estar sempre conscientes de tudo o que está envolvido no ambiente da profissão. É a chamada Situation Awareness, ou seja, o controlador tem de estar ciente de tudo o que se está a passar naquele momento com todos os tráfegos. Além dessa atenção, tem de estar em coordenação com os outros centros e tem de executar várias tarefas ao mesmo tempo: desde evitar colisões entre aeronaves, evitar colisões entre aeronaves e obstáculos na área de manobra, manter um escoamento ordenado e ágil do tráfego aéreo, ou fornecer sugestões e informações úteis à condução segura e eficiente dos voos.

“Também as exigências da profissão provocam stress”, explica Paulo Cabral. “Por exemplo, só a ideia do que pode acontecer caso o controlador falhe, só essa ideia, emocionalmente, eleva os níveis de stress e isso faz com que seja uma profissão das mais stressantes do mundo”. Estamos a falar de profissionais que têm a vida de milhares de pessoas nas mãos, todos os dias.

Daí a segunda palavra mais referida: formação. “O treino contínuo do controlador é importante e esse é outro desafio que temos”, sublinha Paulo Cabral. “Talvez a reguladora não tenha ainda estabelecido os treinos adequados que devem ser obrigatórios e contínuos. Se isso não está regulado, a prestadora de serviço não se sente obrigada a fazer essa formação”.

Segundo explica o representante da Associação Cabo-verdiana dos Controladores de Tráfego Aéreo, de momento, o que está regulada é a formação inicial, mas a contínua não. “Isso causa que há formações que não são feitas. O que nunca deve acontecer. É uma luta que estamos a travar e estamos nesse processo de regular o treino contínuo do controlador de tráfego aéreo”.

A mudança de sistema

Em Maio saiu a notícia que a espanhola Indra vai digitalizar o centro de controlo de tráfego aéreo oceânico na Ilha do Sal e as torres de controlo em Santiago, Boa Vista, São Vicente e Sal com tecnologia de ponta para levar o desempenho e a segurança da gestão do tráfego aéreo ao mais alto nível.

A tecnologia de ponta da Indra inclui um dos sistemas de automação mais avançados do mercado e sistemas de comunicação de controlo digital de voz sobre IP de última geração. Incorporará também a rede de sensores existente, proporcionando uma visão altamente precisa do tráfego aéreo.

O projeto faz parte dos esforços da ASA (Aeroportos e Segurança Aérea de Cabo Verde) para modernizar a gestão do tráfego aéreo e consolidar a sua posição como fornecedor de serviços de navegação aérea fiáveis para voos domésticos e internacionais, assim como para rotas intercontinentais. Esta tecnologia aumentará também a capacidade de gerir mais tráfego.

“Vem facilitar a nossa vida porque estamos a trabalhar com um sistema que já está obsoleto, já ultrapassou todos os limites de tempo de ser utilizado”, refere Paulo Cabral. “Infelizmente, a reguladora não tem força para impor as revisões necessárias no sistema, por isso, já se ultrapassou o limite, sendo certo que a pandemia também provocou alguns atrasos. O sistema já mostrou que falha e tem falhado com mais regularidade, já não tem aquele índice de falhas adequado. Já devíamos ter o novo sistema instalado e a trabalhar”. O que deverá acontecer só no início do próximo ano.

O regresso à quase normalidade

Uma média de 122 aviões por dia. Foram estes os voos controlados pela FIR Oceânica do Sal no primeiro semestre de 2022. Quando comparado com 2021, estamos a falar do dobro dos voos. Os dados são da ASA.

“É muita coisa para controlar”, diz Paulo Cabral. “Nós apanhámos toda a carga de trabalho vinda da pandemia, e isto sobre controladores que vieram trabalhar todos os dias, mesmo durante a pandemia”.

De acordo com um boletim da ASA, o tráfego totalizou 22.165 movimentos de sobrevoos no primeiro semestre. Um aumento superior a 100% em relação a 2021. Só em Junho, refere o documento, houve mais de quatro mil movimentos, muito perto dos números de Junho de 2019, antes da pandemia.

“Isso dificultou o trabalho do controlador e acabou por criar incidentes. Não foram graves, mas foram de procedimento, de coordenação, coisas compreensíveis por causa do enorme tempo com pouco tráfego”, diz Paulo Cabral.

“No entanto”, sublinha o responsável, “constituímos uma equipa muito forte, com uma entreajuda muito grande. Sim, os números estão a aumentar, isso tem sido exigente e desafiador para os controladores de tráfego aéreo, mas como se diz, aquilo que não te desafia não te transforma. E eu vejo isso todos os dias, os controladores estão a transformar-se em melhores controladores todos os dias, com muito mais perspicácia, devido a este aumento rápido de tráfego”.

“Mas é preciso treino para colmatar alguns hábitos”, reitera Paulo Cabral. “Juntamente com a empresa, penso que em breve teremos uma melhoria do serviço prestado”.

Os rendimentos da ASA com o sector da navegação aérea cresceram 19% de 2017 para 2018, para quase três milhões de contos, 43% de todas as receitas da empresa pública. Mas esse valor praticamente desapareceu durante a pandemia com os fechos das fronteiras e a paragem dos voos.

A localização estratégica da FIR do Sal – o espaço aéreo delimitado verticalmente desde o chão ou nível médio do mar até o ilimitado e lateralmente pelas FIR’s de Dakar, Canárias e Santa Maria dos Açores – coloca-a, como refere a ASA, "na encruzilhada dos maiores fluxos de tráfego aéreo entre Europa e a América do Sul e entre a África Ocidental e a América do Norte e Central e as Caraíbas".

“O perfil do tráfego está a mudar”, diz Paulo Cabral, “existe muito mais cruzamento das rotas. Antes havia pouco tráfego vindo da América do Sul para África, mas agora tem muito mais e está a redirecionar-se. Por exemplo, de Oeste para Este, antes, eram rotas de um só sentido, mas agora já fazem duas camadas de interceção com as rotas que temos entre a Europa e a América do Sul. Esse perfil está a mudar, traz mais exigências porque o controlador tem de prestar ainda mais atenção ao cruzamento das rotas”.

Exigência máxima, equipa mínima

No Sal, os controladores trabalham em 5 turnos, com até 4 controladores por turno. Isto para um total de 35 controladores. Na Boa Vista existem outros 4 controladores. Em São Vicente são 6 e na Praia estão 11. “Na Praia aumentou consideravelmente o tráfego doméstico, acho que é necessária a inclusão de mais controladores. Para São Vicente, também se prevê aumento de tráfego e devem entrar mais controladores. Na Boa Vista, com as perspectivas para o futuro, deve-se pensar urgentemente em aumentar a dotação dos turnos. No Sal é também insuficiente. Temos um turno à noite que é bastante exigente. Somos uma FIR oceânica e os aviões preferem sobrevoar durante a noite. Portanto, durante a noite temos bastante tráfego, devíamos ter 4 controladores por turno e ainda não temos”.

Quando se consultam as listas das competências que precisa um controlador aéreo, as exigências são muitas, desde o raciocínio lógico, à visão espacial, à capacidade de organização e planeamento, passando pela capacidade de trabalhar sob stress, ou saber trabalhar em equipa. E isto só para falarmos em algumas das hard skills, ou habilidades técnicas. Porque há também as soft skills, as habilidades comportamentais.

“Tomada de decisão, resolução de conflitos. A exigência para os controladores é de sermos especialistas nessas capacidades, principalmente tomada de decisão. É um soft skill que devemos ter porque sempre que falamos com uma aeronave estamos a tomar uma decisão, e temos de tomar a decisão mais acertada. É um soft skill que tem sempre de ser desenvolvido”, reitera Paulo Cabral.

“Em Cabo Verde, temos muita dificuldade em conseguir essa formação em soft skills”, lamenta o representante da Associação Cabo-verdiana dos Controladores de Tráfego Aéreo. “Estas habilidades também são ensinadas e treinadas, não nascem com a pessoa. Mas em Cabo Verde não temos o hábito de formar soft skills”.

Até porque, além dos turnos que nunca são iguais, trabalhar sem horário fixo, podendo estar de serviço aos fins-de-semana ou nos feriados, como o Natal, afecta a vida social e familiar dos controladores.

“O turno afecta sempre a família, mas o que afecta mais é quando acontece alguma coisa, quando se sente que não se conseguiu prestar o serviço da melhor forma”, diz Paulo Cabral. “Isso vai com o controlador para casa, torna-o menos paciente e mais difícil de lidar”.

“Existe uma coisa chamada CISM [Critical Incident Stress Management – gestão de stress em situações de crise]. O controlador, quando tem uma situação negativa, seja com o controlo de tráfego seja na relação com os colegas, não tem esse programa em Cabo Verde. E não havendo, não conseguimos usar esse momento para melhorar o controlador”, explica Cabral.

“Todos os controladores que passam por um momento difícil devem passar por esse programa CISM. Quando não o faz, regressa à posição com os mesmos traumas. Isso faz com que o controlador não se desenvolva e pode provocar incidentes ainda mais graves”, avisa o representante da Associação Cabo-verdiana dos Controladores de Tráfego Aéreo.

Dia Mundial do Controlador de Tráfego Aéreo

Num sector como o da aviação, cada vez mais tecnológico, Paulo Cabral, acredita que o factor humano será sempre essencial.

“Vão sempre haver evoluções tecnológicas, progressos no radar, as aeronaves vão ficar mais modernas, mas não acredito que o controlador vá deixar de ter um papel fundamental. O lema, este ano, do dia internacional do controlador de tráfego aéreo é ‘People is the heart of the system’ – as pessoas são o coração do sistema. E é verdade, são os únicos que podem tomar decisões adequadas. Os controladores sempre foram o coração do sistema e vão continuar a ser por muitos anos”.

“A força do controlador está na equipa. É isso a essência do controlador de tráfego aéreo. A equipa é extremamente importante para fortalecer o controlador. Uma má equipa faz baixar a prestação. Por isso, temos de ser fortes. Vêm aí mais desafios, mas quantos mais, mais fortes ficamos. No controlo de tráfego aéreo, temos o colega ao lado. Se falharmos, ele alerta-nos. Por isso é que as pessoas, a equipa, é o coração do sistema”, conclui Paulo Cabral.

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Autoria:Jorge Montezinho,20 out 2022 8:31

Editado porAndre Amaral  em  21 out 2022 8:03

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