Uma paciente, uma fisioterapeuta especializada em terapia manual, e um orto-traumatologista especialista em cirurgia de coluna falam do estado da coluna, em Cabo Verde.
Luísa vive com dores de costas há mais de 20 anos. Começaram mais ou menos quando tinha 35 anos. Com filhos pequenos na altura, pensou tratar-se apenas de cansaço pelo esforço de carregar crianças. Além disso estava também em mudança de casa quando primeiro surgiram as dores. Mas elas vieram e não passaram. Tornou-se “comum e fui aprendendo a conviver com as dores”, conta. Os anos foram passando, os problemas foram-se agravando. Aos 45 teve o seu primeiro diagnóstico de artrose. E aos 48 um episódio que a assustou (e que se viria a repetir), ficou paralisada durante algumas horas. Nos anos seguintes continuou a ter crises, numa média de uma por ano, mas depois de começar a fazer profilaxia, as crises graves desapareceram. “Deixei de ter crises, mas as dores são companhia constante…”, lamenta.
Problemas comuns
Como referido, Luísa sofre de artrose. Esta é, a par com as hérnias discais e as lombalgias, a causa mais frequente de problemas de coluna, não só em Cabo Verde como no mundo, observa o ortopedista e traumatologista Paulo Freire. Entretanto, entre as três, as hérnias discais são as que apresentam maior prevalência. Como explica o especialista, as mesmas são causadas “pelo “mau uso” ou “uso excessivo” da coluna, o sedentarismo/condicionamento físico inadequado, a má postura (erro postural, posição não ergonómica no trabalho), pelos esforços repetitivos, excesso de peso, e ainda pequenos traumas”. Ou seja, há um conjunto de factores, muitos deles presentes na vida de cada um de nós, que potencia o seu aparecimento. A coluna é, na verdade, uma zona de alguma forma propícia a problemas. Cerca de 8 em cada 10 pessoas terá em alguma etapa de vida “dores de costas”, de acordo com a OMS. Cynthia Pinto é Fisioterapeuta, especialista em Terapia manual e também proprietária da clínica Columnae Clinic (ver caixa). Como refere, “a coluna ela é das estruturas mais afectadas pelo esforço repetitivo. Ou seja, com as actividades do dia a dia, as cargas que recebemos em cima da coluna, vai sofrendo desgaste. Com o avançar da idade também nós começamos a ter desgastes normais, degenerativos”. Assim, é normal que a partir dos 35 anos sejam identificados desgaste nas estruturas que compõem a coluna.
Diagnóstico
A primeira coisa a fazer seja num centro terapêutico, seja numa consulta médica de especialidade, é ter um bom diagnóstico do problema do paciente. “Temos de identificar que tipo de lesão estamos perante, se ela é degenerativa, se é inflamatória…”, explica a responsável da Columnae Clinic. A primeira avaliação é, porém, no sentido de identificar se é uma lesão muscular. Isto porque “a maioria dos sintomas que as pessoas apresentam são derivados de lesão muscular”, por má postura, etc. Assim, na sua clínica é seguindo um “protocolo de avaliação fisioterapêutico”, o qual se complementa com exames médicos. “Sugerimos sempre o paciente faça uma consulta médica onde possa ver uma radiografia, uma ressonância magnética, ou um TAC para confirmar a presença de lesão”, especifica. Posto isto, é então traçado o plano de tratamento.
Devido aos seus problemas de coluna, amiúde Luísa, que mora na Praia, tem de fazer exames. E da sua experiência, há vários constrangimentos no serviço nacional de saúde no que toca aos mesmos. “Além da demora na marcação, os aparelhos do hospital estão avariados a maior parte do tempo e o particular cobra os olhos e um rim”, critica Luísa, com humor.
Ora, os exames são fundamentais. Paulo Freire, que é clínico no Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente, lembra que “a medicina actual é baseada em evidência e o auxílio aos meios complementários de diagnósticos é imprescindível”.
Como refere este especialista, a ressonância magnética nuclear (RMN) é “o exame de escolha no esclarecimento da patologia dolorosa da coluna refratária ao tratamento”. Este exame, como se sabe, não está disponível no sistema nacional de saúde, e apenas é realizado, por privados, na Praia e São Vicente, sem qualquer comparticipação do INPS. Já o TAC está disponível apenas no Hospital Agostinho Neto, mas é realizado por privados, com comparticipação, na Praia, São Vicente e Sal.
Disponível, em todas as ilhas, apenas o exame de RX, que, no entanto, “tem as suas limitações”.
Posto isto, reconhece o médico, tendo em conta que a maioria da população tem parcos recursos, muitas vezes não consegue ou tem dificuldade em fazer os exames. Um constrangimento que tem como consequência a demora na resolução do problema, aponta.
E como lembra, exames de imagem (Raio X, Tomografia, Ressonância), devem ser sempre solicitados quando estiverem presentes sinais ou sintomas que são chamados de “red flags”. São eles: “Febre, perda de peso sem explicação, história de cancro, traumas, abuso de álcool e drogas, osteoporose, idade maior que 50 anos, sem melhora após tratamento e alterações ou sintomas neurológicos”.
Fisioterapia
As dores de costas podem ser, como se sabe, incapacitantes. Durante as crises, Luísa muitas vezes quase nem conseguia andar. As baixas no trabalho eram inevitáveis. Agora, com a profilaxia, o problema está relativamente controlado. Porém, sendo a artrose uma doença degenerativa, para a qual, portanto, não há cura nem melhoras, Luísa deve ser bem acompanhada para atrasar o progresso do problema e ter alguma qualidade de vida.
Um passo importante, no que toca a dores de costas e outras patologias ortopédicas ou musculares, como se sabe, é a fisioterapia.
Nos últimos dez anos, Luísa fez fisioterapia por duas vezes. Contudo, há muito tempo que não faz. Deveria fazer, mas, também aqui, “o sistema de saúde não ajuda”, queixa-se.
É preciso requisição, “para consulta, são meses à espera, outros tantos para marcar fisioterapia”, há, por ano, 15 sessões comparticipadas para quem é segurado do INPS, mas nem estas por vezes chegam para resolver o problema… enfim, há vários constrangimentos.
“A solução é para quem tem meios económicos, ou seja, pelo sistema de saúde privado”, critica.
O médico Paulo Freire também aponta a importância do papel da fisioterapia na melhoria do quadro da dor aguda da coluna.
“A actividade física e o reforço da musculatura da coluna são as medidas que estão intimamente relacionados com a melhora da dor na coluna”, destaca.
Quanto ao número de sessões atribuído pelo INPS, Freire, que é também Presidente da Comissão de Verificação de Incapacidade (CVI) do INPS para Barlavento, considera ser “razoável e suficiente”. E explica com dados concretos: “mais de 50% dos pacientes melhora após 1 semana; 90% após 8 semanas e apenas 5% continuam apresentando os sintomas por mais de 6 meses ou apresentam alguma incapacidade”.
Cada vez mais novos
Entretanto, um fenómeno que quem trabalha com a coluna tem visto acontecer em Cabo Verde, bem como no resto do mundo, é que cada vez pessoas mais novas apresentam problemas.
“Cada vez mais, temos mais jovens com queixas de dores na coluna secundário ao estilo de vida actual, ao sedentarismo, má postura e a fraqueza da musculatura da coluna”, conta Paulo Freire.
O mesmo é observado pela fisioterapeuta Cynthia Pinto. Quando os clientes procuram a sua clínica por norma já “chegam num estado em que precisam de uma intervenção maior” e com várias semanas de dor. E não se tratam de pessoas idosas, mas sim de pessoas jovens, na “faixa dos 20, 30, 40 anos” com problemas de coluna com os quais “já lidam há alguns anos”.
“As crianças hoje em dia começam a ter alterações de postura muito cedo, devido à postura que usam na escola, ou às muitas horas no computador, tablet, telemóvel, aponta.
Então, e tal como vários artigos científicos têm confirmado, “as doenças degenerativas da coluna estão-se a instalar cada vez mais cedo, devido aos hábitos que estamos a adquirir. Passamos muito mais tempo sentados do que há 50 ou 100 anos”, diz.
Como em tudo, também no que toca à coluna, o melhor é prevenir problemas. Porém, falta ainda, considera Cynthia Pinto, uma “literacia em Saúde apropriada”.
“As pessoas acabam por adquirir muitas doenças por falta de conhecimento de como prevenir” e, ademais, quando há um problema, por norma tendem a deixar arrastar o problema, não procurando ajuda logo nos estádios iniciais, como seria melhor.
Por seu turno, o médico Paulo Freire, lembra que “as alterações degenerativas da coluna são inevitáveis e em algumas actividades profissionais que requerem o uso excessivo da coluna, as mazelas são precoces e acentuadas”.
Entretanto, há más práticas que podem causar problemas. Entre elas, observa que “as nossas crianças que desde pequenas já carregam mochilas pesadas e certamente com repercussões futuras”. E em jeito de conclusão, deixa alguns conselhos para evitar problemas de coluna (pelo menos os que podem ser evitados): “Façam mais exercícios, cuidado ao carregar pesos, passem menos tempo no sofá, ao telemóvel e melhorem a vossa postura”.
Projecto: cirurgia da coluna
O Hospital Baptista de Sousa (HBS) iniciou em 2013 um projecto de cirurgia que veio permitir resolver “in loco” as patologias de coluna, evitado evacuações.
Inicialmente, foram realizadas cirurgias às “hérnias discais lombares e estenose do canal vertebral”.
“Em 2020 iniciamos as cirurgias com instrumentações e até à data foram operados 167 pacientes com patologia da coluna, sendo 29 cirurgias com instrumentações”, explica o médico Paulo Freire, responsável do projecto.
Neste momento, destaca, o HBS tem já condições e uma equipa capacitada para realizar estas cirurgias à coluna e a intenção, para a qual se está a trabalhar, é que este hospital central “seja um centro de referência no tratamento das patologias de coluna”, refere.
A verdade é que desde 2013, graças as operações realizadas com a parceria da ONG belga HELP (Health, Education, Logistic, Projets vzw), o serviço de ortopedia do HBS conseguiu diminuir o número dos doentes evacuados para Portugal.
Olhando os números, vemos que, por exemplo, em 2013, o HBS tinha evacuado para neurocirurgia e ortopedia, 40 pacientes. Em 2021 houve apenas uma evacuação (sendo que em 2019 e 2020 não houve nenhum evacuado).
Entretanto, o projecto tem orçados como custo de cirurgia, 68 mil para a coluna cervical e 144 mil escudos para a coluna lombar, permitindo em termos monetários uma redução enorme de gastos para o Estado (por exemplo, manter em Portugal por 02 anos um paciente evacuado fica em cerca de 4.584.000$00). Isto, sem contar com os custos sociais e emocionais, imensuráveis, que a evacuação sempre acarreta para os pacientes, e que com este projecto se vêm colmatados.
Columnae Clinic
Inaugurada na Praia em Março deste ano, a Columnae Clinic está, como o nome indica, vocacionada para tratamentos à coluna.
“Sou especializada em terapia manual, que se centra, além das outras articulações, na reabilitação da coluna”, usando técnicas específicas para o tratamento da coluna vertebral, explica a responsável, a fisioterapeuta Cynthia Pinto.
Assim, e ao contrário das outras clínica de fisioterapia, que actuam em áreas mais generalizadas, a clínica foca-se apenas nas questões da coluna, olhando o tratamento das dores da coluna de forma holística.
Passo a passo: quando o paciente chega, e depois do diagnostico é feito um tratamento em que, por norma se cruzam uma série de recursos. São usadas, por exemplo, correntes eléctricas, fototerapia a laser ou infra-vermelhos, ultrassom, etc.
“Tudo isso para eliminarmos os sintomas, ou seja, aqueles sinais que são dor, inflamação, rigidez, diminuição da mobilidade articular”, ilustra.
Depois de estabilizado o paciente, ou seja, quando o nível de dor já não o impeça de fazer as actividades, “começamos a implementar exercício”.
Entre os exercícios aplicados para reabilitação da coluna está o popular Pilates.
Contudo, lembra Cynthia, “Pilates não é uma técnica fisioterapêutica. Pilates é um conceito que nós utilizamos dentro da fisioterapia”. Um outro método, muito usado na clínica é o RPG - reeducação postural global – “em que vamos reeducar os músculos da coluna, dos membros inferiores, dos membros superiores para dar reequilíbrio ao corpo do paciente”, explica.
E há ainda, no âmbito da sua especialidade, a terapia manual, “ou seja, a manipulação vertebral que é uma técnica que utilizamos para mobilizar as articulações da coluna e também realinhar”.
Cynthia Pinto reforça ainda que a avaliação é “muito holística”, sendo que não só é feito o tratamento da dor da coluna, como também se trabalha na mudança os próprios hábitos que possam estar a contribuir para a mesma. Por exemplo, um factor que contribuí para problemas da coluna é o excesso de peso. Se a pessoa fizer o tratamento, mas continuar com peso a mais, vai voltar a ter dor. “A causa, que é o excesso de peso, não está a ser eliminada, então nós também trabalhamos nesse sentido da mudança de hábitos de vida: alimentação, exercício físico, correcção postural durante o trabalho,…”
Enfim, “tentamos fazer um acompanhamento mais integrado”, resume.
Texto publicado originalmente na edição nº1090 do Expresso das Ilhas de 19 de Outubro