Perda de poder de compra e incerteza com efeitos nos arrendamentos

À margem da construção espontânea, que continua a ser vista como solução para uma grande parte população da cidade da Praia, há um mercado de mediação imobiliária, formal ou informal, que tem visto os efeitos das crises que atravessamos, e cujo impacto também se vê no arrendamento. Hoje, os cabo-verdianos que arrendam procuram habitação mais barata e a mudança para casas menores tem sido uma opção para quem não quer mudar de bairro. Este é um olhar sobre o arrendamento da capital e suas grandes discrepâncias habitacionais.

Há cerca de uma década que Zuleica mora no mesmo T3 em Achada Santo António. O preço da renda sempre foi o mesmo: 40 contos. Igual para todos os apartamentos do prédio. No entanto, em 2020, havia um apartamento vago e a senhoria negociou o preço com o novo inquilino, cobrando-lhe 38. Depois, baixou também a renda dos residentes antigos. 

“Não seria justo, pessoas que há tanto tempo pagam, e sem falhar, estarem a pagar mais. E a casa, apesar de bem cuidada, também envelhece. Então, acho que foi uma atitude correcta”, comenta. 

Embora cada caso (ou casa) seja diferente, nos últimos anos os preços dos arrendamentos na Praia têm aparentemente estagnado, e até então, os aumentos legais, ligados à inflação do país, quando existiam eram pequenos (hoje, com o aumento exponencial da inflação, não se sabe ainda o que acontecerá). 

“De momento, com a situação do mercado, a crise económica, os preços não têm estado a aumentar, não. Têm estado até a baixar um bocado, [estamos] a negociar os valores para poder conseguir concretizar os arrendamentos”, diz Júlia Monteiro, gerente da agência imobiliária IMOR. 

Assim, “alguns proprietários preferem baixar o preço do que ter a casa fechada”, aponta Júlia. Aliás, “a maioria de casa fechadas é porque o proprietário não quer baixar o preço”, reconhece. Quanto à margem para negociação da renda ronda, em geral, os mil a dois mil escudos. 

Mas nem todas as imobiliárias sentem o mesmo. Maria Montrond, gerente da imobiliária Porta Aberta considera, da sua parte, que não é possível generalizar. Mesmo nos tempos de hoje, “há quem suba, quem mantenha e quem desça”, e alguns preferem mesmo ter a casa vazia “do que arrendar por valor mais baixo”. 

Já Celeste Semedo, secretária da imobiliária Sigma, observa que “depois da pandemia os arrendamentos subiram”. E mesmo que alguns proprietários possam negociar para não ter a casa “fechada”, isso só acontece em casas não mobiladas. “Nos apartamentos que têm mobílias, os proprietários não baixaram o preço. Dizem que preferem ter a casa fechada, porque têm bens lá dentro”. 

Porém, destacam todos, a negociação de preço é algo que sempre tentam, até porque o bolso dos cabo-verdianos está mal…

Tipologias 

Se da parte dos proprietários há relutância em baixar o preço, da parte da procura, isso tem sido imperativo para uma boa parte da população. 

A perda de poder de compra é visível, observa Júlia Monteiro da IMOR. E na Sigma, por exemplo, muitos clientes pedem preços mais baixos. 

Em meio de crises, a maioria procura casa entre 25 e 30 mil escudos. Ora não há muitas casas a esse preço disponíveis nas zonas mais populares. E, directamente, um outro fenómeno sobressai entre os clientes das imobiliárias. 

“As pessoas preferem reduzir o tamanho dos apartamentos e manter-se em zonas que gostam, do que procurar zonas mais baratas”, conta Maria Montrond, da Porta Aberta. 

Ou seja, os apartamentos com mais procura pelas famílias cabo-verdianas são, em todas as imobiliárias contactadas, os T2, e há inclusive pessoas a pedir mudanças de apartamentos maiores para esses mais pequenos. 

Como a procura é grande, a oferta pequena e a margem orçamental limitada, há geralmente uma lista de espera para estas casas. Os T1, que também são escassos no catálogo das imobiliárias, são outros imóveis muito procurados. 

A mesma procura acontece fora das imobiliárias “formais”. Como se sabe, à margem destas agências do “boca a boca”, há um mercado imobiliário informal que tem vindo a ganhar projecção, e muita procura, graças às redes sociais. 

Edson Semedo, que actua nesse ramo há alguns anos, também usa as redes sociais para divulgar os imóveis. O jovem considera que o momento mais crítico para arrendar foi o período mais intenso da pandemia da COVID-19, pelo facto de que havia bastante procura, mas o poder de aquisição estava fraco. 

“Recebia mensagens de pessoas que estavam à procura de casa, com preço mais barato, mas ao mesmo tempo queriam facilidades no negócio, por exemplo, pediam facilidades no pagamento da caução, queriam uma renda temporária, sem contrato de arrendamento, entre outras propostas”, lembra. 

Também Edson Semedo aponta que as moradias T1 e T2 são as mais procuradas e que o preço do arrendamento se manteve dentro do padrão, variando de acordo com as condições dos imóveis e a localização. O que se nota, segundo Edson Semedo, é a fraca procura para alugar casas maiores, e, quando isso acontece, normalmente é em casas partilhadas, arrendadas por pessoas que querem dividir despesas. 

Casas Partilhadas 

Há quem arrende partilhado com conhecidos e há também a procura de quartos. Edna Cunha, proprietária de um imóvel na zona 4, arredores de Ponta D’água, sublinha que prefere arrendar o imóvel por quartos mesmo que este não tenha sido planeado para este fim. A casa é um T3 que, segundo a proprietária, entre 2019 e 2021, ficou fechado, mesmo com ofertas de renda bem abaixo do mercado. 

“Com as sequelas da pandemia e agora com o aumento de preço de tudo, arrendar uma casa ficou ainda mais complicado. A estratégia é dividir por quartos e alugar a um preço o mais acessível possível. A renda varia de 8 mil e 11 mil escudos para os quartos menores, que têm uma casa de banho comum e para o quarto maior, com casa de banho privada, o preço é 13 mil. Todos têm acesso à sala e à cozinha, ambos espaços amplos. Se todos os quartos estiverem ocupados o valor arrecadado é equivalente ao aluguer de um T3”, testemunhou. Edna Cunha informa ainda que a conta de água é dividida entre os moradores. 

Maria Eduarda é proprietária de uma casa, ainda em construção, na zona de São Paulo. Um imóvel grande, de dois pisos, sendo o primeiro destinado para arrendamentos. Mesmo inacabado, o imóvel está completamente ocupado. 

“Na parte de dentro como não tem piso de mosaico são usados tapetes. Um lado do imóvel tem quatro quartos pequenos e 2 casas de banhos simples ainda por terminar, e os moradores dividem uma casa de banho para dois quartos e o valor da renda é de quatro mil escudos mensais. O outro lado é um quarto maior, o morador pode dividir com uma cortina e transformar em dois cómodos, com uma casa de banho e o valor é de oito mil, lembrando que a electricidade é o sistema pré-pago da Electra e no que se refere a água os moradores compram por balde, ou recorrem aos autotanques”. 

Escalões e zonas 

O exemplo da casa de Maria Eduarda mostra as discrepâncias dos preços pelas diferentes zonas. 

Na mesma cidade, coabitam casas partilhadas a 4 contos por cómodo, até vivendas de alto padrão cuja renda é superior a 100 contos. 

Hoje, a oferta a nível de vivendas e apartamentos luxuosos é mais comum e, na realidade, há bastante procura. Porém, como o senso comum advinha, e as imobiliárias confirmam, geralmente não são alugados a título individual. 

“Quem mais contrata para esses imóveis de alto escalão são as grandes empresas que trazem pessoas de fora para virem trabalhar aqui em Cabo Verde, as instituições, as embaixadas…”, diz Celeste Semedo, secretária da Sigma. 

Quanto aos restantes arrendatários há diferenças de preço por zona. As zonas mais procuradas para morar são, nas imobiliárias entrevistadas, Achada Santo António e Palmarejo (Palmarejo Baixo, Palmarejo e Palmarejo Grande). 

“A média nestas zonas de maior procura é o T3, 40 contos, e o T2, 30-35, no Palmarejo Baixo já vai para os 50”, resume Maria Montrond, gerente da Porta Aberta. Quanto às zonas mais baratas, dentro das agências Imobiliárias, surgem Ponta de Água, e Achada São Filipe, que são também zonas onde a procura é mais baixa.

Não obstante, olhando o mapa da cidade, há zonas onde a formalidade das imobiliárias não chega, ou seja, que estas não cobrem. 

É o caso de São Paulo. Geisa Andrade mora em uma casa alugada há oito anos, em São Paulo, e conta que a casa, um T3, tem óptimas condições, e fica em um local seguro. A desvantagem é que para ter acesso a casa é preciso entrar num corredor, mas o valor é acessível: 13 mil escudos mensais. 

“Já estou há quase dez anos aqui, durante a pandemia, a proprietária que é emigrante, deu-me um mês grátis de renda, e o último mês do ano, é oferecido gratuitamente. Tenho consciência que nem todos os proprietários são compreensivos. Depois que a Electra implementou o sistema pré-pago de electricidade, a proprietária ajustou a renda para 12 mil escudos”, detalhou. 

Donos da casa 

A maior parte dos clientes das imobiliárias, em Cabo Verde, são emigrantes. E olhando o mercado informal constata-se o mesmo. 

Ora, como se sabe, em muitos países, devido à subida histórica das taxas de juro, nos últimos meses, tem havido impacto sobre o orçamento de quem compra casa. Assim, poderia estimar-se impacto também nos arrendamentos. Porém, até agora isso não se tem sentido em Cabo Verde. Dados do BCV mostram inclusive que os juros de créditos pedidos em Cabo Verde, para mais de 10 anos, têm vindo a baixar. Em 2022 situam-se 7,45%, enquanto em 2019, por exemplo, eram de cerca de 8,3%. 

Entretanto, ainda não há estatísticas oficiais disponíveis e recentes, sobre estes aspectos da venda e arrendamento, que contemplem o período da pandemia e o aumento de preços despoletado pela guerra na Ucrânia. 

Seja como for, no terreno formal da mediação imobiliária, sente-se impacto. No que toca à compra e venda, desde a pandemia, e de acordo com as agências, os preços das casas mantiveram-se e as vendas diminuíram. 

“Tínhamos, antes da pandemia, alguns clientes que estavam a pensar comprar casa. O processo estava em andamento. Depois, resolveram não avançar para a compra, porque já têm outros projectos de vida. As coisas complicaram, então a compra de imóveis sofreu uma queda”, conta Celeste Semedo, da Sigma. 

Os 20% 

Falando ainda de estatísticas, que mostram a disparidade habitacional e os diversos “mercados” imobiliários, se assim se poderá chamar, de Cabo Verde e sua capital. Antes da pandemia, de acordo com o “Perfil do Sector de Habitação de Cabo Verde, elaborado pelo governo em parceria com a ONUHabitat, e publicado em 2019, uma família urbana média dispunha de cerca de 18 mil escudos para pagar por sua moradia, entre outras despesas domiciliares (isto, antes das crises que vivemos). Tal valor impossibilita a compra de casa a crédito, bem como o arrendamento pela via formal. Assim, poucos cabo-verdianos recorrem ao crédito formal para fins habitacionais. Em 2015, recorde-se, apenas 10,7% o faziam. E segundo estimativas do próprio governo, cerca de 80% das construções em Cabo Verde é feita directamente pela mão das famílias, com base na economia familiar. Aliás, a ideia de ter ”txon” e casa própria persiste na mentalidade dos cabo-verdianos. 

Neste cenário, segundo dados de 2016 do INE, apenas cerca de um quinto (21%) dos agregados familiares cabo- -verdianos vive em casa arrendada. 

Outro dado que mostra a realidade para além dos escaparates das imobiliárias e das redes sociais, são os relativos ao valor da renda. De acordo com o RGPH de 2010, cerca de metade da população do país pagava menos de 10 contos de renda, e a população que pagava mais de 35 contos não chegava a 5%. 

Estatísticas de 2015, por seu turno, mostram que apenas 10,8 das famílias mais vulneráveis eram arrendatárias. Esse número quase triplicava (29,7%) quando se falava das mais rica. “Estes dados, porém, não devem ser entendidos como uma menor demanda por arrendamento pelas famílias de menor rendimento – é muito provável que esta demanda esteja mascarada pelos maiores índices de coabitação e superlotação”, bem como a prática tradicional de casa própria, lê-se no documento. 

“Actualmente, não existe uma política específica de promoção de imóveis para arrendamento”, acrescenta. Continua a não haver. 

Entretanto, o INE já revelou alguns dados relativos ao Recenseamento Geral da População e Habitação (RGPH), de 2021, embora ainda não tenha divulgado os relativos ao arrendamento. 

Os dados já conhecidos mostram que existem cerca 150 mil edifícios (7.800 dos quais não destinados para habitação), sendo que a Praia contabiliza 34.663 edifícios. Vemos também que 41,6% dos edifícios da capital não estão concluídos, convertendo- a no lugar do país onde a percentagem de inacabados é maior. Porém, não é onde existem mais barracas. Das quase 3.000 barracas, casas de bidão, contentores e afins, existentes, 1.750 estão em São Vicente. A Praia surge depois do Sal, com 520 “barracas”.

Texto publicado originalmente na edição nº1093 do Expresso das Ilhas de 09 de Novembro

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Tópicos

Casas Praia

Autoria:Sara Almeida e Edisângela Tavares (estagiária),13 nov 2022 8:37

Editado porDulcina Mendes  em  13 jan 2023 23:28

pub.

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.