Pelo quinto ano consecutivo, São Vicente volta a ser palco da Cabo Verde Ocean Week (CVOW), iniciativa promovida pelo Ministério do Mar, que propõe um diálogo sobre a importância do oceano para o desenvolvimento económico, a partir de uma exploração sustentável dos seus recursos e potencialidades. Em 2022, o evento que nem a pandemia conseguiu interromper acontece sob o lema “Amar o Mar”.
Conforme a organização (ver entrevista), pretende-se dar a conhecer em maior detalhe um sector relevante para o país, aproximando-o da comunidade.
A economia marítima e a economia azul têm estado no centro do discurso político do governo desde a anterior legislatura, altura em que foi criado o então Ministério da Economia Marítima. O que foi feito? O que falta fazer e o que deve ser prioridade? A CVOW serve de pretexto para fazer estas perguntas a diferentes protagonistas.
Zona Económica Especial
Peça central na organização institucional da economia ligada ao mar, a Autoridade da Zona Económica Especial Marítima de São Vicente (AZEEMSV) é liderada por Júlio Almeida. O presidente do conselho de administração (PCA) identifica o potencial existente, mas reconhece que falta “desbravar caminho”.
“O potencial é grande. Cabo Verde vai-se inserindo no mapa, como temos visto com a passagem das regatas, temos o terminal de cruzeiros a ser construído. O país está a posicionar- se, e bem, na indústria dos cruzeiros, no desenvolvimento da indústria farmacêutica com base marítima, na educação”, exemplifica.
“Tudo isso são potenciais que temos e que temos que ir desbravando aos poucos. Não fiz essa inventariação, mas diria que ainda estamos a ‘zero virgula qualquer coisa por cento’ daquilo que poderão vir a ser as nossas potencialidades”, acredita.
Júlio Almeida reforça que as mais-valias marítimas não se esgotam nos recursos pesqueiros junto à costa, com projectos estruturantes à espera de execução, nomeadamente o porto de transbordo, porto de pesca, maiores e melhores estaleiros navais, melhor aproveitamento da Zona Industrial do Lazareto ou o desenvolvimento das zonas turísticas especiais.
Dotada de autonomia, a AZEEMSV poderá ter acesso a recursos próprios e conta vir a trabalhar de perto com o sector privado. Contudo, e por enquanto, aguarda financiamento público para dar o pontapé de saída a tudo aquilo que tem na gaveta.
“Para o próximo ano, já temos alguns financiamentos garantidos no quadro público e com os quais vamos materializar alguns desses projectos, mas sem sombra de dúvida são ainda insuficientes. Esperamos conseguir arrecadar alguma receita própria, que poderemos utilizar no desenvolvimento dos projectos”, antecipa o responsável.
Portos
A tradição de São Vicente na actividade portuária é um activo raras vezes contestado. Sedeada no Porto Grande, a ENAPOR – Portos de Cabo Verde é a instituição de referência. Com a concessão na agenda do governo, o papel da empresa pública deverá mudar no futuro, mas por enquanto continua a caber-lhe a gestão dos portos e daquilo que por lá se passa.
O PCA, Ireneu Camacho, realça o vínculo directo entre a organização que dirige, a condição arquipelágica do país e o desenvolvimento económico.
“Sabemos que a economia depende substancialmente da importação e a actividade portuária traduz-se também nisto. Tudo o que se consome nas ilhas é movimentado nos portos e com certeza que uma melhor e a maior circulação de bens e pessoas se reflecte positivamente no tráfego portuário e nas receitas portuárias que, por sua vez, têm impacto na economia e no desenvolvimento do país”, sintetiza.
Os portos têm sido objecto de alguns dos maiores investimentos em obras públicas feitos pelos sucessivos executivos. Recentemente, procedeu-se à modernização do Porto Inglês e expansão do Porto de Palmeira. Estão em curso as obras do Terminal de Cruzeiros, na baía do Mindelo.
De acordo com o líder da administração da ENAPOR, o propósito é tornar Cabo Verde “uma referência na rede internacional de transportes”, com ganhos de eficiência e tirando partido das condições oferecidas.
“O clima, a segurança, a estabilidade social, política e económica, além das condições naturais da maioria dos nossos portos, com bacias interiores de águas profundas, oferecendo excelentes condições de entrada e abrigo em segurança, a qualquer tipo de embarcação”, enumera.
A proximidade a grandes portos africanos, como Dakar, Abidjan e Casablanca não esmorece o optimismo de Ireneu Camacho quanto àquilo que ainda pode ser conquistado. O gestor encara a concorrência como motivação.
Pescas
Sempre no topo da actualidade, o sector pesqueiro é indissociável de qualquer estratégia para o mar. Suzano Vicente, vice-presidente da Associação de Armadores de Pesca (APESC) e presidente da Cooperativa Nacional dos Armadores de Pesca, espera o dia em que a frota nacional seja capaz de operar em águas com recursos mais abundantes.
“É preciso dotar os armadores nacionais de capacidade operacional para laborar lá onde existem os maiores recursos, além da nossa zona económica exclusiva, onde os navios internacionais pescam e descarregam nos nossos portos. Precisamos de navios que tenham capacidade operacional, que tenham capacidade de congelação, navios que tenham a capacidade de laborar, por exemplo, na Guiné-Bissau e Mauritânia e tirar proveito dos acordos de que Cabo Verde é signatário”, almeja.
A questão do financiamento que permita dar o salto qualitativo na frota nacional é antiga. Os armadores esperam por maior efectividade do Fundo Autónomo de Pescas (FAP).
“Na prática, existem armadores que não têm [acesso ao FAP]. Os processos são submetidos, há aparentemente uma carta conforto, mas até agora não vemos fumo branco deste Fundo, no que diz respeito ao financiamento da armação nacional. Nós temos solicitado respostas. Solicitámos duas vezes à directora, que nos respondesse quais seriam os critérios adoptados, mas nunca tivemos resposta. É por isso que afirmamos que não existe transparência, porque representamos os armadores e não temos uma resposta formal sobre como esses fundos são efectivamente geridos”, lamenta.
Para lá do financiamento, a necessidade de mais disponibilidade de mão-de-obra também se faz sentir. O dirigente associativo diz existirem carências, particularmente, de marinheiros, pescadores, mestres e motoristas. “Outra questão que nos preocupa é o desmantelamento do estaleiro naval da ONAVE. Nós solicitámos ao Estado um financiamento para manter este estaleiro operacional até novos investimentos. Estamos à espera de uma resposta formal há quase dois anos”, remata.
Desportos náuticos
O papel dos desportos náuticos para a economia do mar também é reconhecido por todos. São Vicente beneficia de condições naturais propícias ao desenvolvimento de várias modalidades, que têm sido aproveitadas por regatas internacionais e por amantes da pesca desportiva.
Jaqueline Gomes, directora de operações da Marina Mindelo, aborda a centralidade da infra-estrutura que ajuda a dirigir e a elevada procura na chamada época alta.
“A nível económico é importante, porque movimenta a ilha durante a estadia das regatas. Normalmente, ficam entre 1 a 7 dias dentro da Marina, o que faz com que tenham necessidade de sair para a cidade, porque não oferecemos todos os serviços de que precisam, nomeadamente restauração, bares, alimentação, lavandarias, oficinas, reparação naval, entre outros”, observa.
Esta semana, as águas da baía recebem a regata ARC+ e a importância da oferta complementar é óbvia.
“Podemos copiar o que já fazem de melhor, por exemplo, formar a população local e mostrar a importância do turismo náutico e de recreio. Neste momento, temos 93 iates aqui, com mais de 400 participantes, incluindo crianças, que querem chegar e encontrar alguma oferta ligada à náutica. São estas ofertas pequenas que temos que desenvolver para cativar os clientes”, repara.
Jaqueline Gomes entende que a oferta de lugares, entre marina e clube de pesca, é para já suficiente.
Conhecimento
A criação da Universidade Técnica do Atlântico (UTA) ou da Escola do Mar (EMAR) são dois exemplos de medidas já implementadas no campo do ensino, formação e investigação.
Biólogo marinho, docente universitário e investigador, Rui Freitas lembra que a educação é a chave para o desenvolvimento.
“Sem conhecimento, não vamos a lado nenhum. A nossa mentalidade é extractiva, ainda não conseguimos produzir conhecimento para explorar vários outros recursos além do peixe. A maior parte das pessoas pensa que o mar é só peixe e lagosta, mas há uma quantidade grande de recursos que podem ser explorados de forma sustentável nos oceanos. A forma de explorá -los é com o conhecimento”, desafia.
Quantificar, valorizar e tirar proveito é a fórmula defendida pelo especialista, que não tem dúvidas de que ainda há um longo percurso a fazer. Quadro da UTA, Rui Freitas realça o contributo da instituição, particularmente através do Instituto de Engenharias e Ciências do Mar (ISECMAR), para a formação de profissionais capacitados, mas lamenta que o número dos que investigam e produzem conhecimento continue abaixo das reais necessidades nacionais.
“A nível da UTA, nem meia dúzia. Somos pouca gente para a quantidade de tarefas e sobretudo a formatação clássica de ‘dadores de aulas’, então, é difícil. A investigação passa a ser como um hobby, não como uma tarefa pré-determinada”, ilustra.
“O IMAR, o instituto das pescas com valência nesse domínio, está muito deficitário, com poucos técnicos, precisa de um solavanco muito grande. O Centro Oceanográfico tem quatro ou cinco técnicos, é um prestador de serviços, não uma agência de investigação”, acrescenta.
Noutra frente, o professor pede mais trabalho por uma maior “literacia dos oceanos”, criando uma cultura de mar.
Preservação ambiental
A exploração sustentável de recursos é a única forma de garantir a sua renovação e, a longo prazo, a própria continuidade da vida humana no planeta. A preservação ambiental tem que seguir a par e passo com o crescimento económico.
Tommy Melo, presidente da organização ambientalista Biosfera I, sublinha que o mar de Cabo Verde oferece “excelentes oportunidades”, mas alerta que é preciso saber aproveita-las, nomeadamente quando falamos de pesca. “É preciso criar regras e que elas sejam implementadas.
É preciso ter um corpo de fiscalização que consiga cumprir o seu papel, o que não é fácil. Cabo Verde é 99,3% mar. Para um país rico, já seria difícil conseguir fazer uma fiscalização eficaz, no nosso quadro, é ainda mais difícil. Mas não podemos estar sempre e constantemente a relembrar-nos que é difícil e que, portanto, talvez não consigamos faze-lo de melhor forma. É preciso lutar, criar parcerias, implementar tecnologias, trabalhar com as comunidades. Conseguimos, sim, mesmo com a nossa pequenez, fazer um trabalho muito melhor do que aquilo que tem sido feito”, destaca.
Do ponto de vista legislativo e regulamentar, Tommy Mello está relativamente satisfeito. Se, por um lado, o quadro geral permite uma gestão adequada de recursos, por outro, persistem contradições que precisam de ser resolvidas.
“Ainda existem algumas regulamentações que trazem um bocadinho de conflito, nomeadamente as novas leis que facilitam a caça submarina, a utilização de garrafas para extracção de alguns recursos. São leis que chocaram um bocadinho a comunidade científica e de conservação, leis que noutros países já não existem há muito tempo. Acredito que os nossos decisores estão a tentar fazer uma gestão que agrada a todos, mas quando estamos a falar de um recurso que é de todos, é preciso ter um pulso um bocadinho mais forte e abrir novas oportunidades para que ninguém fique sem sustento”, comenta.
O responsável da Biosfera I recorda a nossa pequena plataforma continental, o que significaria sempre um menor stock de peixe, tornando ainda mais relevante a utilização “sóbria” dos recursos ainda disponíveis.
A CVOW acontece de 20 a 25 de Novembro, em diferentes espaços de São Vicente. A programação completa está disponível no site caboverdeoceanweek. cv. A primeira edição ocorreu em 2018.
com Lourdes Fortes e Fretson Rocha
Texto publicado originalmente na edição nº1094 do Expresso das Ilhas de 16 de Novembro