A impunidade já tem local e hora marcada

PorAntónia Môsso,16 dez 2022 15:55

Cabo Verde possui as suas distopias e desvarios, isso todos nós sabemos. O reiterado desprezo pelas leis e regras sociais, é um fato que nos tem causado enormes dissabores, infelicidade e sentimento de injustiça.

Sempre que se abre a porta ao “fechar de olhos”, à indiferença e à impunidade, fecha-se a mesma porta a coisas boas que nos conferem dignidade como a competência, saúde, segurança, liberdade e qualidade de vida. Em suma, a possibilidade de uma vida melhor e de maior bem estar social. E isso, não tem que saber.

À semelhança de outras sociedades, é preciso fazer escolhas sobre onde se pretende chegar. Assumi-las com determinação cientes que as melhores escolhas só serão praticáveis mediante sacrifícios de todos os membros do coletivo. Estaremos dispostos a isso? Estaremos, em nome de uma melhor organização social e da qualidade de vida coletiva, realmente dispostos a prescindir de determinadas práticas perniciosas? Não interessa a dimensão dessas más práticas. Seja prestar um serviço e não emitir fatura; apropriar-se do dinheiro público; vender decisões políticas ou conduzir alcoolizado. A ideia matriz está lá. E o denominador comum é o mesmo: egocentrismo, ausência de sentido de comunidade e obliteração de códigos éticos e morais.

A observância das leis e das normas existentes é imprescindível para o bom funcionamento de qualquer sociedade acarretando impactes inegavelmente positivos para todos os habitantes e para o país. As leis não são letras vãs a que se recorre só quando convém. Orientam condutas. Organizam os espaços. Contribuem para a manutenção da sociedade preservando vidas. A sua frouxidão conduz à anomia social, e consequentemente, a perda de direitos humanos e ambientais adquiridos.

É tempo de Cabo Verde fazer bem as contas para averiguar se tem compensado as suas escolhas. Saber se esta afinada orquestra de incumprimento e laxismo institucionalmente consentida anda a soar bem nos nossos ouvidos ao ponto de proporcionar alegria e satisfação duradoura.

Um exemplo simples. Há poucos dias liguei à polícia nacional pela quarta (e última) vez solicitando a sua intervenção pela mesma situação. No centro da cidade de Mindelo, na mesma rua, todos os dias à mesmíssima hora, grupos de motoqueiros ruidosos passam alegremente, e a alta velocidade, levantando a roda da frente. Rua onde se localiza uma escola primária e circulam crianças. Faltam-me já argumentos para convencer a polícia que, como agentes de autoridade, devem fazer o seu trabalho combatendo comportamentos desviantes. Que a impunidade, para além de deseducadora, contagia e quanto mais se cristalizam as transgressões mais difícil se torna o seu combate. A situação mantém-se, até ao momento, inalterada.

Somando isso a muitas outras situações de incumprimento que desabrocham a olhos vistos nos espaços públicos, na saúde, trabalho, gestão autárquica e outros, conclui-se que não atuar, não é obra do acaso, mas sim uma decisão institucional.

É utópico esperar-se que, vivendo em comunidade, todos os seus membros optem de forma voluntária pelo cumprimento das normas vigentes. Infelizmente, nenhuma sociedade atingiu até ao momento esse nível civilizacional. Muitos terão de ser obrigados, mediante adequada abordagem, mas principalmente por força de sanções previstas na lei, a cumprir e respeitar os regulamentos. Para que isso seja efetivado exige-se um controlo social formal através da polícia e outras tantas instituições fiscalizadoras/reguladoras competentes. E um controlo social informal feito por cidadãos ativos denunciando e reprovando condutas socialmente inaceitáveis. Fraquejamos em ambos.

Padre António Vieira, na sua célebre obra Sermão de Santo António aos peixes, convida a refletir. “Cristo atribuiu aos pregadores a função de ser o sal da terra porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa dessa corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem.”

Transpondo isto para a nossa realidade social, é caso para se dizer que no nosso país nem o sal não salga, nem a terra se deixa salgar. O busílis é que nós, insossos, estamos a ficar para trás. E mais infelizes. Pobres. Frágeis. Sem noção. Descredibilizados e bandalhos. E isso é o resultado de uma escolha consciente e de falsas crenças que precisam urgentemente cair por terra.

Não me consta que também tenhamos trincado a maçã envenenada que levou a Branca de Neve a cair num sono profundo. O fato é que recusamos com toda a energia acordar. Mesmo somando precipícios.

Porém, como dizia o outro, só há um tempo em que é fundamental despertar. E esse tempo é agora.

Antónia Môsso

Mindelo ,16.12.2022

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Autoria:Antónia Môsso,16 dez 2022 15:55

Editado porSara Almeida  em  18 dez 2022 8:41

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