Cabo Verde cada vez mais bem preparado na batalha contra o cancro

PorSara Almeida,4 fev 2023 8:28

Nova sala de tratamento de quimioterapia
Nova sala de tratamento de quimioterapia@HAN

Ao longo dos últimos anos, projectos e investimentos na área da oncologia têm permitido uma evolução positiva no diagnóstico e tratamento dos cancros que é reconhecida por profissionais e utentes. Apesar das ainda muitas falhas (que as há), o país está assim cada vez mais capacitado nesta luta, com condições cada vez melhores para servir os, também cada vez mais “fortes”, utentes.

Aquele dia de Novembro foi um dia de alegria, mas também de muita tristeza para Sandra Barros. Alegria, pois era o dia em que a sua filha celebrava dois anos. E tristeza, porque recebeu um diagnóstico avassalador: tinha cancro.

“Foi como uma sentença de morte”, lembra. Um pensamento, aliás, que é comum a vários, vários pacientes que recebem o mesmo diagnóstico.

Há uns meses sentira um caroço na mama, que não desapareceu com o fim da amamentação. A persistência do nódulo começou a preocupá-la.

Fez uma ecografia, mostrou o exame na consulta do centro de saúde e a médica mandou-a repetir o exame. Na segunda ecografia, foi encaminhada directamente da clínica onde a realizou, para o Hospital de Dia (parte do serviço de oncologia do Hospital Agostinho Neto). Algo não parecia certo, mas apenas uma biopsia poderia dar o diagnóstico acertado.

O caso não podia esperar. Fez a biopsia numa clínica e a 18 de Novembro de 2021 conheceu o resultado. Era cancro de mama em estádio V com metáteses no fígado. Devia iniciar a quimioterapia, rapidamente.

Na luta

Carla começou o seu tratamento no dia 3 de Dezembro de 2021. Ao longo de 9 meses a quimioterapia fez parte da sua vida. Na verdade, ainda faz, pois continua a sentir algumas sequelas dos efeitos colaterais do tratamento.

Numa primeira fase, recorda, o tratamento focou-se na mama, depois, também no fígado. Não foi fácil.

“Durante 9 meses tive queda de cabelo, tive anemia… para dizer a verdade foi muita coisa mesmo, porque a quimioterapia ajuda, mas tens de ter força e coragem para a enfrentar”, conta.

Os efeitos secundários custaram, mas diz-se satisfeita com o tratamento que resultou na diminuição do nódulo. Satisfeita e grata. Aliás, palavras de gratidão à equipa que a tratou, à família e aos amigos percorrem todo o seu testemunho.

“Tive muito apoio, toda a minha família me abraçou nesta fase e foi também aí que comecei a sentir ainda mais força para lutar”.

Quanto às condições para o tratamento, Sandra testemunhou a evolução que tem vindo a ser feita nos serviços, quando, em finais de Março passado, foi inaugurada a nova Sala de Tratamento de doentes oncológicos em quimioterapia.

Para Sandra trata-se, de facto, de uma melhoria no serviço. “Este espaço é maior, foi muito bem remodelado. Corresponde muito bem às nossas necessidades”. Até por ser mais arejado, bem pintado e de bom aspecto melhora a parte psicológica do utente, algo que não é de somenos.

O espaço foi construído e equipado com recursos do próprio Hospital Agostinho Neto e apoio de parceiros (nomeadamente a CV Telecom e o INPS). No mesmo dia em que foi inaugurada essa estrutura, 24 de Março de 2022, foi também apresentado o “Projecto de Inovação no Acompanhamento dos Doentes Oncológicos em Tratamento” e lançado um “Guia de Orientações em Quimioterapia” destinado aos pacientes.

Além da quimio

Para Sandra, terminada a quimioterapia no mês de Agosto de 2022, a fase seguinte foi a cirurgia à mama, que aconteceu em 12 de Setembro último, também no Hospital Agostinho Neto.

A cirurgia oncológica é outra área onde Cabo Verde presta tratamento. Já o faz há muitos anos, mas o leque de cirurgias alargou-se à medida que vai havendo mais condições e especialização.

A cirurgia de Sandra, em concreto, correu muito bem. Agora segue-se um outro passo temido pelos pacientes oncológicos. A evacuação. Sandra deve prosseguir o tratamento com radioterapia, algo que ainda não existe em Cabo Verde e leva dezenas de cabo-verdianos a Portugal diariamente. Este tratamento é, aliás, o maior motivo de evacuação dos doentes oncológicos embora, apesar de toda a evolução a nível das cirurgias, ainda haja casos (pelo estadiamento do tumor, ou sua localização) em que a operação é realizada no exterior.

Para quimioterapia, não há evacuação para o exterior, embora a evacuação interna continue a ser a realidade sofrida de muitos pacientes. Neste momento, apenas é possível este tratamento no Hospital Agostinho Neto, estando em processo a sua instalação no Hospital Baptista de Sousa para servir a região de Barlavento

A evacuação de Sandra Barros já passou pela Junta Médica e a paciente aguarda agora a marcação da consulta no IPO do Porto (Portugal).

Enquanto isso, Sandra segue com a hormonoterapia, no seu caso uma injecção na perna. Tanto a aplicação como o medicamento em si são gratuitos. Aliás, todo o tratamento oncológico no Sistema Nacional de Saúde é gratuito para o utente.

“O hospital fornece [a injecção], se fosse para comprar seria complicado porque é mesmo caro…”, observa Sandra.

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A injecção é dada de 21 em 21 dias, após exame prévio à imunidade. “Graças a Deus, o meu corpo está a responder muito bem”, conta.

Sandra já está também recuperada de uma hemorragia (menstrual) que teve em Novembro e que a levou a ficar internada 14 dias na maternidade, serviço do qual faz igualmente uma avaliação positiva.

Assim, apesar da falta de radioterapia, apesar das ainda muitas limitações com que a oncologia em Cabo Verde ainda vive, a avaliação do tratamento e acompanhamento no país é muito positiva, refere a paciente.

“Não vou dizer que não há falhas porque até em nossas casas há falhas, mas tive a sorte de ter uma boa equipa na oncologia”.

Sandra não refere, pois, críticas negativas. Mas, instada, reconhece que ouviu algumas durante as consultas e tratamentos no HAN. “Críticas há sempre, quer construtivas, quer não. Há muita gente que não confia nos médicos e enfermeiros. Já sabemos que quando temos uma doença todos os vizinhos se tornam médicos e enfermeiros”. Assim, muitos pacientes criam resistência às orientações dos profissionais. A isto junta-se a ideia de que em Cabo Verde não há um tratamento adequado.

“Já ouvi [esta crítica] várias vezes, mas só quem está nesse tratamento ou quem acompanha o doente oncológico pode ver o resultado do tratamento que temos cá em Cabo Verde e que, graças a Deus, evoluiu muito”, aponta Sandra Barros, salvaguardando, ponderadamente, que “cada caso é um caso”.

Como advínhamos pelo testemunho de Sandra, nem só do tratamento médico, em si, é feita a terapia do doente. A forma como este é tratado nos serviços é fundamental e é principalmente nesta vertente que tece os maiores elogios.

“A equipa da oncologia recebe os pacientes com muito carinho, isso ajudou-me muito até ao momento. Sempre que precisamos toda a equipa está disponível”, agradece.

Evolução

As doenças oncológicas são actualmente a 3.º causa de morte em Cabo Verde (340 mortes em 2020) e os dados oficiais mostram que o número de novos casos anuais tem vindo a aumentar. Em 2022 por exemplo, o aumento terá sido de cerca de 10%, em relação a 2021, algo que, no entanto, também terá a ver com a maior capacidade de diagnóstico quer imagiológico, quer patológico. E também com o número de diagnósticos. Houve, por exemplo, um aumento considerável do número de exames de histologia das biopsias nos hospitais centrais.

Entretanto, os dados mostram também um ligeiro decréscimo da mortalidade (3%) nos últimos anos.

Com cada vez mais casos diagnosticados, a doenças oncológicas são, pois, um desafio para o país, e uma área onde tem havido investimentos que marcam uma evolução positiva principalmente a nível do diagnóstico e do tratamento.

A inauguração da referida Sala para a Quimioterapia é um exemplo. Também foi inaugurado no final de 2022, o laboratório de Biologia Molecular no HAN, um importante passo para apoio diagnóstico, financiado pela Fundação Gulbenkian.

Também com a Fundação Gulbenkian, foi implementado o “Oncologia Cabo Verde”, um projecto desenvolvido em parceria com o Ministério da Saúde, tendo em conta o plano estratégico 2018-2022 do país. O projecto, que decorre nos dois hospitais centrais, foi sujeito a uma avaliação realizada por uma consultora independente, e conhecida em Julho de 2022, que assevera, entre outros aspectos positivos, uma “melhoria da capacidade de diagnóstico e aumento do número e tipo de cirurgias”.

“Esta avaliação, cujos resultados são considerados muito positivos, mostra um aumento de 80% das cirurgias oncológicas e de 18% das sessões de quimioterapia, bem como uma diminuição de 30% no número de evacuações de doentes para Portugal, entre 2017 e 2020”, referiu, na altura, a fundação. Em números concretos, as cirurgias oncológicas quase duplicaram passando de 50, em 2017, para 90 em 2020. Passou-se também de 1013 sessões de quimioterapia para 1195. O número de evacuados diminuiu de 103 para 77.

Entre os vários eixos desenvolvidos por este projecto, Carla Amado Barbosa, Coordenadora do Programa Nacional de Prevenção e Rastreio do Cancro, destaca a formação e investigação.

Foi realizada a “capacitação de vários profissionais de saúde, não só médicos, mas também enfermeiros, psicólogos”. Neste momento, decorre uma pós-graduação em farmácia oncológica.

“Ou seja, temos tentado capacitar os vários profissionais que fazem a parte do tratamento, porque o tratamento oncológico é multidisciplinar” e apresenta vários tipos de terapia, expõe.

No âmbito do projecto foram também adquiridos alguns “equipamentos que vieram revolucionar a parte do diagnóstico principalmente cancro da mama e do cancro da próstata”.

Uma das medidas previstas para o futuro, que a avaliação ao projecto também refere e que já está em curso, é a criação de Registo oncológico de base populacional em Cabo Verde.

Nesse sentido, avança Carla Barbosa, “desde o ano passado, começou a capacitação dos registadores para operacionalizar o registo oncológico de base populacional. Já foram para o IPO do Porto três registadores, um do registo oncológico hospitalar do Hospital Baptista de Sousa, outro do Hospital Agostinho Neto, e outro registador a nível central. Já fizeram a sua capacitação, neste momento estamos a recolher todos os dados de 2022 para produzir então o relatório com dados de cancro a nível populacional”. Prevê-se que o relatório esteja pronto por volta do mês de Junho.

Assim, este “não é um projecto de grandes montantes, mas veio trazer realmente grandes melhorias na abordagem de diagnóstico e tratamento das doenças oncológicas”, considera Carla Barbosa.

Falando em evolução na luta contra o cancro, além do diagnóstico e do tratamento, é ainda de referir, a nível da prevenção, um marco há muito desejado por Cabo Verde: a introdução, em 2021, da vacina contra o Papiloma do Vírus Humano (HPV). Esta vacina que evita, principalmente, o cancro do colo do útero, foi incluído no calendário nacional de vacinação para as meninas dos 10 aos 13 anos.

Guerreiras

Voltando a Sandra.

Se hoje um diagnóstico de cancro não é, de todo, uma sentença de morte, é ainda a sentença de uma difícil batalha que muito exige a nível físico e psicológico. Não é à toa que a palavra “guerreira” seja comum quando se fala de pacientes e ex-pacientes oncológicas.

Mas, por muito fortes que sejam essas “guerreiras”, todas concordam na necessidade de apoio. Múltiplos apoios na verdade. Desde o apoio prático nas pequenas coisas do dia-a-dia, que os efeitos secundários dos tratamentos tornam uma tarefa hercúlea, ao apoio psicológico pela partilha de experiências e solidariedade.

O apoio da equipa hospitalar, da família e dos amigos foi, como referido, inportante para Sandra. Mas também o exemplo e o apoio moral do grupo de mulheres com cancro (ou que já “venceram” o cancro), a que pertence tem sido fundamental na sua luta.

“O grupo chama-se Guerreiras Vencedoras de Cabo Verde, e no ano passado fizemos uma aliança com Divas Guerreiras de Cabo Verde. Então tornamo-nos num só. Foi muito bom e muito importante, porque através dessa junção, fizemos uma Gala e várias actividades”, conta. “Somos uma família”.
Outra coisa que a “ajudou muito a superação” de Sandra foram vídeos de TikTok onde fala da doença e tratamento, nomeadamente da quimioterapia, e que começou a fazer por sugestão de uma amiga “também guerreira”.

“Eu disse: “como é que eu vou fazer TikTok neste momento”. Mas, por brincadeira começou.

Os vídeos tiveram muitas visualizações e, acredita, ajudaram as pessoas não só a saber mais sobre, por exemplo, a quimioterapia, como a perder o medo das consultas e tratamento.

“A abraçar a doença porque primeiramente [tem de vir] a aceitação”.

Entretanto, em jeito de conclusão, há um fenómeno que merece alguma reflexão. No grupo, pelo menos naquele a que Sandra pertence e que conta com cerca de 80 membros, não há homens. Sandra nem lhes conhece outros grupos. Os homens continuam a enfrentar o cancro em silêncio e muito sozinhos. E isso torna a batalha ainda mais dura… 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1105 de 1 de Fevereiro de 2023.

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Autoria:Sara Almeida,4 fev 2023 8:28

Editado pormaria Fortes  em  5 fev 2023 13:54

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