Solidariedade da Folia

PorAntónia Môsso,18 fev 2023 11:56

A solidariedade é um dos milagres mais admiráveis da civilização. E, nem me refiro ao formato mais comum de solidariedade que é proporcionar ajuda material a quem mais precisa. Refiro-me à solidariedade em torno da defesa de determinados valores e direitos sem os quais perigam a existência e a dignidade humana. Solidariedade é poder. União. Conexão. Força. Esperança. Mudança. Segurança e preservação da vida.

Não existem sociedades melhores que outras, mas asseguro-vos que as sociedades onde os laços de solidariedade são vincados, os seus membros “safam-se” melhor. Vivem com mais qualidade de vida. As pessoas não se sentem desamparadas, desconfiadas e, consequentemente, amedrontadas. Funcionam como um corpo uniforme em que uma ameaça contra um dos seus membros compreende-se como uma ameaça contra todos. Um negro é estupidamente espancado até à morte pelas forças policiais nos EUA.

Movidos pela indignação, num ápice saltam para as ruas multidões de pessoas negras e brancas, organizações e associações, exigindo mudanças políticas e sociais urgentes e dispostas a partir tudo. Quando a iraniana Mahsa Amini, foi detida e morta “pela polícia da moralidade” por não cobrir “devidamente” o cabelo, as mulheres iranianas, mesmo vivendo em contextos de opressão e de hostilidade, manifestaram-se, com atos simbólicos, lançando para o ar os seus hijabs, slogans contra o governo e cortando mechas do seu próprio cabelo. 

A réplica fez-se sentir a quilómetros de distância por milhares de outras mulheres no mundo inteiro, que não enfrentam esse problema, mas reagiram com vitalidade apoiando a luta das mulheres iranianas cortando o cabelo e publicando nas redes sociais. 

Houve uma globalização das manifestações em defesa das mulheres e, acreditem, que muitas promovidas e participadas por homens. 

O equivalente para as amplificações de protestos em torno de uma maior justiça climática: luta-se por valores ambientais que não podem cair. 

E caso caiam, vamos juntos. Atreladinhos. Em criança, tinha como recomendação da minha mãe, evitar fazer percursos onde não passava gente. Se formos ver estava ali implícita a ideia de solidariedade. Circulando em espaços movimentados pela circulação de pessoas, estaria mais defendida dos perigos. A lição estava bem estudada. 

Em caso de agressão, bastaria gritar para que as pessoas viessem em meu socorro. Seriam rostos completamente desconhecidos e não necessariamente meus pais, familiares e amigos, a protegerem- me. Estamos todos interligados e irremediavelmente dependentes uns dos outros. 

Não há volta a dar. Será a cooperação/solidariedade ou a desesperança total. As populações não humanas sabem disso. Unidas aumentam as possibilidades de se alimentarem e de defenderem-se dos predadores. É o instinto de sobrevivência que fá-las andar em grupo, a cooperarem. 

Reparem na fabulosa organização das formigas, abelhas, e os cardumes de peixes que formam uma massa conjunta desorientando por completo os predadores.

Quando um predador se aproxima do pássaro papa-moscas-preto, este, emite bem alto um guincho para alertar as outras aves que estão por perto possibilitando a defesa. O voo dos pássaros com formação em V é uma estratégia que lhes permite economizar energia aproveitando as correntes de ar criadas pelos seus companheiros que estão à frente. 

No universo animal e vegetal, e em outras formas de vida, transbordam exemplos da necessidade de organização em grupo. Não podemos dizer que esses seres tenham nível cognitivo que os leve a perceber que quem vive só ou é um Deus ou uma besta. Pensar o universo numa lógica puramente cartesiana é empobrecedor e perigoso para a manutenção da vida.

Tudo o que nos rodeia afeta-nos. Diz-nos diretamente respeito e é passível de ser alterado. Por vezes, oiço pessoas afirmar, com ar ufano, que não participam porque “aquilo é político” e não se metem nessas coisas. Tudo é político.

Desde o preço do pão às cuecas que trazemos vestidas; desde a qualidade da educação formal dos filhos às contas a pagar no final do mês. Desde a liberdade da comunicação social, até à nossa, em se expressar sem “impedimentos”.

A falta de leite condensado, açúcar, ovos nas quadras festivas, é política. Toda a necessidade é política. A política, quando fiel aos seus princípios, deve orientar-se, precisamente, para a satisfação das necessidades de todos os membros da comunidade.

Logo, fundamentar a recusa em participar ativamente nos assuntos que tocam a todos (o que equivale a não ser solidário) só porque é político, é um disparate incomensurável. É triste. É anular-se.

Demitir-se da própria vida. Fugir. Quando não há escapatória: até a morte é política. Desde a forma como se ministram os cuidados paliativos de saúde até à sepultura (despesas funerárias, subsídios para os que ficam, herança, gestão do cemitério), é política.

Cabo Verde, por vezes, magoa-nos profundamente. A forma retorcida como se compreende o exercício do poder coloca-nos no chão à mercê da bota dos abusos e da humilhação. Paralisando-nos. Controlando-nos pelo medo. Impedindo-nos de re(agir).

Mas, cada um de nós opta por lamber a ferida à sua maneira. Na maioria das vezes, calado. Quieto no seu canto. Solitário. Por consequência, fica tudo na mesma. A mesma arma que nos feriu, permanece afiada, atrevida e cega.

O mais certo é que fira ainda milhares de pessoas como nós. A solidariedade pode neutralizá-la. Fazer com que ninguém tenha de passar pelo mesmo.

O futuro chama-se solidariedade. Uma solidariedade feita não apenas de dar pão aos que têm fome (o que obviamente é necessário), mas também pela capacidade de defender valores democráticos como a liberdade, igualdade, justiça, dignidade e direitos humanos e ambientais.

Para isso precisamos de gestos inequívocos de real comprometimento com a nossa comunidade. Sentido de pertença. De firmeza de caracter e participação ativa de todos, sem exceção.

Uma sociedade que só se mobiliza para o hedonismo é “aquele amigo” que só aparece para a paródia. Quando sabemos que os amigos verdadeiros, os que interessam e dão sentido às nossas vidas, aparecem sem serem chamados, nos momentos de dificuldade, turbulência, dor e sofrimento.

Basta ver, o “fenómeno” mandingas de São Vicente. Ninguém fica à espera de ser mobilizado para participar nos seus desfiles. Arrastam consigo multidões. E ai de quem abra a boca para dizer que não gosta dos mandingas! Veneração total!

Outro dia, durante um desfile, um mandinga foi agredido com uma facada nas costas. Os restantes mandingas, indignados, decidiram e bem, organizar um desfile de protesto contra a violência (solidariedade em defesa de um valor importante).

Apareceram meia dúzia de pessoas. Somos, enquanto coletividade, “aquele amigo” que só aparece para os bons momentos. Pena que dificilmente contaremos com ele para outra coisa que não seja beber uns copos, matança de tchuck ou desfile de carnaval.

Eugénio Tavares, nosso amado poeta e ativista, disse um dia que ele “era uma vontade e, por conseguinte, uma força.” Como sociedade, o que nos falta para nos unirmos em torno de causas de interesse coletivo?

O que nos falta para o pleno exercício da solidariedade? Se outros seres não humanos o conseguem, porque nós não? O que nos falta? Força? Vontade? Força de vontade? Um dia, aprenderemos a andar de mãos dadas.

E quanto mais horripilante for o rosto da ameaça que nos for infligida, ainda com mais força apertaremos as mãos dos nossos companheiros. E eles a nossa. Seremos uma vontade, e por conseguinte, uma força.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Antónia Môsso,18 fev 2023 11:56

Editado porSheilla Ribeiro  em  19 fev 2023 12:49

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.