Mulheres de véu - rostos do Islão

PorSara Almeida,26 mar 2023 8:56

Latifa e Larissa são duas cabo-verdianas que se converteram ao Islão. Foi uma decisão, garantem ambas, que tomaram por si só e da qual não se arrependem. Depois da conversão, outra escolha própria, foi usar o véu islâmico que agora exibem com orgulho. Com o Ramadão quase, quase a começar (inicia-se esta noite), ouvimos a sua história, os caminhos e os motivos que as levaram a Alá. Hoje dizem-se mais próximas de Deus, mais seguras e protegidas…

Há cerca de ano e meio, Neidla Lopes converteu-se ao islão e recebeu um novo nome: Latifa.

Nascida no Tarrafal, mudou-se há vários anos para a Praia, com a família. Pai e mãe são católicos, e durante a maior parte dos seus 28 anos de vida, fora também essa a sua religião. Baptizou-se, fez a comunhão, crismou-se e integrou inclusive um grupo coral. Depois foi-se afastando da religião…

Em 2015, numa altura em que trabalhava a tomar conta das crianças de um casal chinês e estudava à noite, conheceu aquele que seria namorado: Lai Baldé, imigrante da Guiné-Bissau e muçulmano. Tudo começou nas redes sociais, mas depois de várias conversas no Facebook, ele propôs encontrarem-se para se conhecerem pessoalmente.

Marcaram encontro. Ele foi ter à escola onde ela estudava. Foram conversando, conhecendo-se, “e aí deu”. Não mais se separaram.

Ao fim de uns meses tornaram-se namorados e depois de 3 ou 4 anos, quando a mãe dele veio também para Cabo Verde, foram morar todos juntos.

Hoje, Latifa é mãe de uma menina de 3 anos, e tem o seu próprio negócio (Yonilai), em conjunto com o companheiro. Uma empresa que vende produtos naturais, vindos da Guiné-Bissau (farinha de mandioca, bissap, caju, manteiga de Karite, óleo de palma, entre outros). “Tudo etiquetado, embalado e bonitinho. À venda nas lojas”.

Conversão

Na rua, Latifa chama a atenção pelo véu islâmico que usa. Uma vestimenta que expõe a religião a que pertence. Afinal, como ela própria diz, “a mulher é a cara do islão”.

Mas como é que uma cabo-verdiana católica se converte ao islão? O primeiro momento, claro, é conhecer a religião. Neidla conheceu-a, como referido, através do seu companheiro. Desde sempre, o casal conversa muito, sobre tudo um pouco, incluindo religião.

Quanto mais ouvia falar da religião islâmica, mais gostava, e começou a praticá-la. Quanto mais a praticava, mais se envolvia e disse ao marido que se queria converter. “Foi decisão minha”.

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Foi, pois, todo um processo, lento, de conhecimento e prática que a levou à conversão.

Foi junto com o companheiro à mesquita do Kobom, que ele frequenta.

Entrou e estranhou a sala ampla e sem cadeiras, apenas tapete no chão. “Mas gostei do espaço, senti-me ambientada, acolhida”, conta. “O meu marido foi falar com o Imã, e este disse que após acabar a reza iriam falar comigo. Sentei-me e esperei. Depois ele veio”. Começou o ritual. Mãos levantas, Neidla testemunhou que não há outro Deus que não Alá. Ele dizia em árabe, ela repetia. Só isso. Sem papelada. Neidla tornou-se muçulmana e recebeu o nome de Latifa, que havia escolhido também ela própria.

Rezando

De vez em quando vai à Mesquita acompanhando o marido, mas as rezas são essencialmente feitas em casa ou no local de trabalho. Geralmente as mulheres rezam em casa.

Nas mesquitas da Praia, na verdade, não costuma haver um espaço de oração apenas para mulheres. Fazem-no na mesma sala, mas separados no espaço. Eles à frente e elas atrás, “num cantinho”, devido à posição (eventualmente demasiado sexual…) em que ficam quando se debruçam. “Então a mulher não pode ficar à frente”, explica.

São várias coisas, pois que diferem do ritual católico. Outro ritual diferente é a “água”. Na religião católica, há a água benta para se benzer. Nas mesquitas há a água de reza, que serve para passar no corpo, nomeadamente no rosto e orelhas. “Há pessoa que dizem que é assim que tomamos banho. Não é. A água é para purificar antes de rezar”. E melhor ouvir a palavra de Deus.

A vestimenta é também aqui muito mais importante. Enquanto a Igreja católica já não obriga, por exemplo, a usar o véu, este é obrigatório na Mesquita. E roupa larga e tapada também. “E a mulher não pode estar menstruada”, acrescenta.

Véu

Saindo do local da oração, uma das grandes diferenças é, como referido, o uso do véu islâmico (hijab), que grande parte das mulheres muçulmanas (mas não todas) usam no dia-a-dia e que para quem não é muçulmano muitas vezes parece opressor. Contudo, esta não é a visão de Latifa. Mesmo depois da conversão, ninguém a obrigou a usá-lo. Foi por sua iniciativa que, aos poucos, se foi adaptando a esta nova indumentária. Primeiro, começou por usar um lenço amarrado na cabeça. Depois, por iniciativa própria, o hijab. Agora usa-o sempre.

“Acho que se tivesse sido obrigada poderia até não gostar e andar na rua constrangida. Poderia mesmo não querer a religião porque era uma coisa forçada”. Mas apenas o usou quando achou que era o momento, por vontade sua.

Porém, antes do véu, mudou o resto do vestuário: roupas mais largas, que não realcem tanto o corpo. Nada, porém, muito diferente das roupas “normais”, ocidentais. Aliás, não fosse o hijab, ninguém adivinharia a sua religião.

Família

A conversão ao islão nem sempre é bem compreendida e aceite pelas famílias e pessoas próximas. Pelo menos num primeiro momento. Quando o pai de Latifa soube que ela namorava com um rapaz muçulmano da Guiné-Bissau, perguntou porque tinha ido escolher tão longe, noutra cultura; não havia um cabo-verdiano católico que lhe agradasse? A mãe, mais moderna, aceitou melhor e aos poucos até já se habitou a vê-la de véu. A sua irmã mais próxima, por seu turno, aceitou bem: “Se é isso que queres e te sentes bem ali, tudo bem”, disse-lhe.

Já entre os amigos, embora não tenham reagido mal, muitos disseram que certamente lhe tinham feito alguma macumba. Que a tinham enfeitiçado. Mas foram-se habituando, aceitando. E mostram acima de tudo, muita curiosidade.

Da parte da família do companheiro, nomeadamente das irmãs deste, sempre houve aparentemente boa aceitação. Porém, também elas achavam que o irmão se deve casar “dentro” da religião, ainda para mais sendo filho-homem. Mas “depois que eu converti a muçulmana aí aceitaram-me 100 por cento”, conta Latifa.

Entretanto, ela e o companheiro, embora já morem juntos e tenham uma filha, ainda não realizaram o casamento. Prendem fazê-lo, mas não está fácil. Mandam as regras que como já tiveram relações antes da boda ela deva regressar agora por um período de três meses a casa dos pais, para purificação. Ora, para um casal que também trabalha junto, numa empresa que criaram juntos, essa separação é quase impossível.

Protegida e feliz

Latifa nega que no Islão as mulheres tenham menos direitos do que os homens, o que considera ser um preconceito. Vê-se isso, argumenta, no direito a ir à escola, a trabalhar, a ter os seus negócios.

Por outro lado, reconhece, cada “casa é uma casa”, onde internamente as regras são diferentes e o apoio do marido é diferente. E também há questões culturais, e não do Islão, que podem criar situações opressivas e violentas para as mulheres. Aliás, recorda-se, o Islão condena a violência. Logo condena qualquer forma de violência contra mulher.

Nesse campo dos costumes entra também a da circuncisão feminina /mutilação genital feminina. Entre os Fula, etnia do seu marido, esse era um costume praticado– e ele tem inclusive mulheres na família que sofreram essa mutilação. Mas é algo que não só é hoje, proibido como, garante, quer ela quer o marido são contra.

Violências à parte, é certo, porém, “a sociedade islâmica é mais conservadora”, reconhece. Mais limites, mas também benefícios para a mulher.

“Os muçulmanos são mais apegados à família, e à religião. Há mais limites principalmente para as mulheres, mas as mulheres também se sentem mais protegidas dentro da religião islâmica. Eu sinto-me mais protegida em relação a quando estava na religião católica”, explica. Mais protegida e mais acolhida, acrescenta.

Tal como Latifa, outros cabo-verdianos têm-se convertido ao islão. E há, na sua percepção, “mais mulheres” do que homens a fazê-lo o que mostra que “quando conheces profundamente essa religião” vês que não é discriminatória com as mulheres, como se pensa.

E se Latifa não tivesse conhecido Baldé? Será que se teria convertido ao Islão?

“Se não tivesse conhecido o meu marido, não sei que caminho ia seguir até chegar ao Islão, mas estava destinado a ser. De alguma forma, eu acabaria por ser muçulmana”, acredita.

“Eu estou feliz no Islão”, sublinha.

Larissa

Maria José Mendes Tavares é o seu nome de registo. Larissa é o nominho, pelo que sempre a chamaram, e também o nome que escolheu para a sua conversão, em 2019.

Na verdade, a primeira vez que o islamismo lhe despertou a atenção foi há mais de dez anos. Muito tempo antes de pensar sequer que esta viria a ser a sua religião.

Foi quando assistiu a um filme, do qual já não lembra o nome, mas não esqueceu a história. Falava de uma menina migrante que começou a frequentar uma escola onde era a única muçulmana. A menina sofria muito bullying e um dos professores, triste com a situação, mandou os alunos fazerem trabalhos sobre o Islão. Quando os jovens começaram a conhecer melhor a religião, os maus tratos acabaram.

“Há muito preconceito porque as pessoas não conhecem”, só vêm o que passa na televisão, nomeadamente o terrorismo associado, aponta.

Os anos foram passando, Larissa que era católica começou a não gostar de algumas coisas desta, que era a sua religião, como a postura de alguns párocos.

Quando se mudou do interior de Santiago, de onde é natural, para a Praia, conheceu Seidi Souaré, muezim (Almuadém, aquele que chama para a oração) oriundo da Guiné Conacri, que costumava ir comer no local onde a irmã de Larissa trabalhava e começou a falar-lhes do Islão.

“Foi há uns 4 anos. Saíamos, conversávamos, e lembrei-me daquele filme. Tocou-me”, recorda.

Descontente com a religião católica, ela própria andava à procura de uma outra “fé”, onde se sentisse melhor, procurando entre as cristãs, mas não chegou ao envolver-se em nenhuma.

Foi então com Souré e a sua irmã à Mesquita da Várzea, “com muita vergonha”. Só estavam homens. “As mulheres quase não vão à mesquita porque não há espaço para elas”. Pouco tempo passado, Larissa, que queria “estudar mais” esta religião, bem como a sua irmã, converteram-se.

Meses depois, começou a namorar com Souaré. Hoje estão juntos, têm um menino e ela está à espera do segundo bebé.

Mudanças

Larissa sente-se agora “mais ligada a Deus”. Confessar-se, sem intermédio de ninguém, é para si um dos aspectos que considera mais importantes no islamismo.

Mas não foi só isso que mudou. A nova religião trouxe um modo diferente de estar na vida. “Mudou tudo”. Deixou de frequentar muitos dos lugares que ia, como discotecas, deixou de comer carne de porco, abandonou as festas católicas… “Tudo isso deixei para trás”. No início, sentia alguma falta, de algumas coisas, mas agora nem tanto. “Vai-se esquecendo.”

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Um tempo depois de se converter, começou a usar o véu islâmico.

A família, entretanto, reagiu bastante bem à conversão das duas irmãs. Disseram que o importante é rezar a Deus e, sendo maiores de idade, a decisão era sua.

Quanto às amigas, algumas acabaram por se afastar porque o modo de vida é diferente – “já vou com elas à discoteca”, exemplifica. Outra mantiveram a amizade e há inclusive uma que também se converteu há dois anos.

No que toca à maneira como as mulheres são vistas e tratadas dentro da região muçulmana, Larissa reconhece que esta “fecha” mais a mulher. Mas também ela realça que muitas dessas questões têm a ver com a cultura. Assim, sempre que não concorda com algo, que considera interferir com os seus direitos e visão do mundo, vai procurar no seu Alcorão, que está traduzido em português.

Aliás, ela e um grupo de amigas, também convertidas, reúnem-se para estudar e rezar. Pena é, lamenta, a falta de um lugar próprio para o fazer, ou seja, de uma Mesquita. Também gostaria de aprender árabe, conta.

Esse seu grupo conta neste momento têm cerca de seis mulheres cabo-verdianas. O número flutua muito. “Algumas vem depois desistem. Outras vão e vêm”. Quanto às mulheres de outras nacionalidades, não se costumam misturar muito, conta.

Muçulmana activa, Larissa sublinha que o que de bom esta nova religião lhe trouxe foi, como referido, uma maior ligação a Deus. Mas não só. “Sinto-me mais segura”, garante.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.

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Autoria:Sara Almeida,26 mar 2023 8:56

Editado porJorge Montezinho  em  27 mar 2023 11:30

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