A proposta da deputada Mircéa Delgado foi aprovada por 27 votos a favor e 26 contra, mas só depois de a mesa reconsiderar e não contar as nove abstenções, tendo em conta o entendimento anterior de aprovação da proposta carecer pela maioria dos deputados presentes (incluindo as abstenções), decisão que levou alguns deputados a considerarem recorrer ao Tribunal Constitucional.
A proposta mereceu votos a favor de deputados dos três partidos representados no parlamento, mas também críticas que alegavam tratar-se de uma “sobrevalorização do português”, face à língua crioula cabo-verdiana, ou posições totalmente a favor de outros deputados, o que dividiu o parlamento ao longo de várias horas de debate e constantes interrupções.
“Este percurso de séculos da língua portuguesa no chão de Cabo Verde e a sua importância como elemento identitário de primeira grandeza, a par da língua cabo-verdiana, não nos permite ficar indiferentes a alguns sinais de fadiga com origem diversa, visíveis na utilização da língua portuguesa no nosso país, em contramão com a tendência mundial da sua valorização como meio de comunicação e também de cooperação e de troca nas múltiplas dimensões”, alegou a deputada, ao apresentar a proposta.
As dúvidas dos deputados colocaram-se igualmente por se tratar de um processo de classificação por via legislativa e não técnica, como é determinado por resoluções nacionais e internacionais. Este foi de resto o primeiro entendimento no parecer anterior da Comissão Especializada de Educação, Cultura, Saúde, Juventude, Desporto e Questões Sociais da Assembleia Nacional, que devolveu o projecto de lei à deputada proponente.
A comissão entendeu primeiro não emitir parecer favorável ao projecto, face ao parecer negativo do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, através da Direcção do Património Imaterial, e “na ausência de um parecer externo solicitado ao Instituto Camões para fundamentar e fornecer mais elementos de análise”, mas a proposta acabaria por ser agendada para votação nesta sessão plenária.
O projecto de lei pretende classificar a língua portuguesa como património cultural imaterial, por ser “parte integrante e estruturante” da história do arquipélago.
“A língua portuguesa é parte integrante e estruturante da história, da sociedade e da identidade da nação cabo-verdiana”, lê-se na proposta apresentada à Assembleia Nacional pela deputada Mircéa Delgado.
O ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, Abraão Vicente, recordou entretanto, a propósito deste caso, que “o poder de classificar qualquer bem ou item como património cultural” é daquele ministério, através do Instituto do Património Cultural (IPC).
“A lei-quadro é clara. O poder de classificar qualquer bem ou item como património cultural é do Ministério da Cultura e da instituição que tem essa competência que é o IPC. Nem os deputados nacionais, nem nenhuma outra instituição pode entrar na linha de acção do IPC”, afirmou.
“Se a Assembleia Nacional quiser classificar o português como património imaterial terá de mudar a lei e avocar o poder que agora está no IPC de classificar, de inventariar e criar todo o processo necessário para ter uma língua como património imaterial nacional”, acrescentou Abraão Vicente.
No texto da proposta é referido que o “português foi a primeira língua que ecoou no solo das ilhas (1460), trazido pelos marinheiros e missionários portugueses no seu processo das descobertas e da expansão marítima”, sendo “uma das línguas mais faladas do mundo” e língua oficial dos nove países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
“O nosso crioulo, língua cabo-verdiana, origina-se na língua portuguesa e tem nela a sua matriz de organização quer semântica, quer gramatical e elocutória, que com o aumento da escolarização tem, cada vez mais, aproximado os falantes da língua cabo-verdiana do português falado e escrito, actualmente”, acrescenta a proposta, que tem também em Mircéa Delgado a única subscritora, conforme prevê o regimento da Assembleia Nacional.
Recorda igualmente que “todo o documental escrito”, quer seja “histórico, quer seja económico, quer seja social, quer ainda literário”, encontra-se “exarado e versado quase completamente em língua portuguesa” e que o “português é a língua de comunicação internacional do Estado de Cabo Verde, afirmando-se assim como o seu elo mais forte e a razão pilar da sua existência enquanto comunidade”.
O crioulo cabo-verdiano é a língua materna em Cabo Verde, embora com variantes entre algumas ilhas, e nos últimos anos intensificou-se o movimento da sociedade civil a pressionar a sua elevação a língua oficial.
O artigo 9.º da Constituição da República de Cabo Verde, de 1992, define apenas o português como língua oficial, mas também prevê que o Estado deve promover "as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa".
Um grupo de quase 200 personalidades cabo-verdianas lançou em 2022 uma petição também nesse sentido e pediu apoio do chefe de Estado, José Maria Neves, para a promoção da língua, anunciando que pretende criar uma associação em prol do crioulo, não só para a sua oficialização como língua nacional, como para ensino e padronização.