“É muito importante que encontremos uma maneira de continuar a investir na Saúde”

PorSara Almeida,16 abr 2023 8:04

Daniel Kertesz, Representante da OMS em Cabo Verde
Daniel Kertesz, Representante da OMS em Cabo Verde

A 7 de Abril de 1948 era criada, no seio das Nações Unidas, uma agência dedicada a melhorar a saúde das populações: a Organização Mundial de Saúde (OMS). 75 anos depois, os ganhos são muitos, mas persistem desafios e a mesma prioridade de alcançar uma cobertura universal de saúde, de qualidade.

A efeméride – que é também o dia em que se celebra o Dia Mundial da Saúde – foi pretexto para uma conversa com o representante da agência em Cabo Verde, Daniel Kertesz, que nos fala do trabalho da OMS, das prioridades para o país e dos projectos em curso. A prevenção das doenças não transmissíveis e a melhoria das capacidades laboratoriais do país estão entre as prioridades. Prioridade também para o reforço dos recursos humanos, “pedra angular do sistema de saúde”. Na verdade, um forte apelo feito em Cabo Verde e a nível mundial é que neste momento em que a crise pandémica passou e outras confluem hoje, o investimento para a saúde não seja esquecido. Pelo bem da saúde. Pelo bem de todos.


Em 75 anos houve avanços e também mudanças na Saúde, como a transição epidemiológica em muitos países. Que grandes marcos destacaria e como isso mudou os paradigmas da saúde?

No início da OMS, a ênfase foi colocada nas doenças transmissíveis, infecciosas, e houve grandes vitórias na luta contra essas doenças. A erradicação da varíola, por exemplo, foi uma das mais importantes vitórias da saúde pública. A poliomielite está quase erradicada. Entretanto, aprendemos que os ganhos na saúde não podem ser sustentados sem reforçar os sistemas de saúde em cada país. Então, o foco da OMS é o reforço dos sistemas de saúde para fornecer serviços básicos em cada país, o que se chama de primary healthcare, cuidados primários de saúde. Ainda estamos a lutar contra as doenças transmissíveis, mas a verdade é que agora as doenças não transmissíveis (DNT) têm grande peso em muitos países, não só nos países em desenvolvimento, mas também nos países lower-middle income (países de renda média baixa), como Cabo Verde. Temos agora a necessidade de nos focar não só nas doenças infecciosas, mas também nas DNT. E é muito mais eficaz, em termos de custos, prevenir do que tratar as DNS. Temos uma grande responsabilidade, a OMS e os países, de aumentar a literacia em saúde das populações, porque muitos factores de risco para as DNT dependem da maneira que vivemos as nossas vidas. A luta contra as DNT é uma luta partilhada entre o sistema de saúde e a população.

Cabo Verde costuma ser visto como um “bom aluno”…

Não sei se é um aluno, mas é muito bom. Acho que não há dúvidas, basta ver as diferentes estatísticas. Temos muito para celebrar aqui no país. Nas últimas décadas, desde a independência, a esperança de vida no país aumentou quase 20 anos. Os cabo-verdianos podem agora ver as suas crianças crescer e tornar-se adultos. A mortalidade materna diminuiu muito. Os indicadores básicos são bons. Claro que há desafios e temos de trabalhar juntos para assegurar que este progresso se mantém.

O que, no seu entender, terá sido fundamental para esse progresso?

Evidentemente, é multifactorial, não depende só da saúde, mas do desenvolvimento dos outros sectores: habitação, educação, etc. Mas, na área da saúde, a vacinação é provavelmente o passo mais importante. A taxa de vacinação de crianças está em mais de 90%. É um país que tem um Programa de Vacinação muito eficaz. Também o sistema de saúde: neste país, o governo, os sucessivos ministérios da saúde têm criado um bom sistema de saúde. Embora seja difícil, por causa da realidade arquipelágica, há um sistema de saúde que fornece serviços básicos à população e há, na minha perspectiva, uma confiança da população no sistema de saúde, que também é muito importante para o sistema funcionar. Tudo isso contribui para os bons indicadores e tudo isso foi evidente durante a pandemia da covid. Cabo Verde tem uma das mais altas taxas de vacinação a nível mundial, a população seguiu as directivas do Ministério da Saúde e houve uma colaboração entre a população e o ministério durante a pandemia, por isso o país se saiu muito bem.

Em momentos de crise, como a pandemia, certamente a colaboração da OMS intensifica-se, mas como tem sido esse diálogo entre Cabo Verde e a OMS ao longo do tempo?

Fomos sempre um parceiro próximo do Ministério da Saúde. O nosso papel e o nosso objectivo é apoiar nas suas prioridades e programas para melhorar a saúde dos cabo-verdianos, então o nosso trabalho é com o Ministério da Saúde. Evidentemente, vamos trabalhar com outros ministérios, outros sectores, outras instituições da área da saúde, mas o nosso parceiro principal é o Ministério da Saúde com quem trabalhamos conjuntamente todos os dias.

Mas como é o trabalho da OMS junto a um país, em particular Cabo Verde?

A Saúde é uma área técnica, então precisa dos inputs técnicos. Os planos e recomendações são baseados nos estudos e um papel da OMS é fornecer esse apoio técnico. Temos a possibilidade de trazer peritos, lições aprendidas, capacidade técnica de todo o mundo para apoiar os países. Cada área de Saúde, como as DNT, segurança sanitária, etc., tem um plano estratégico e nós fornecemos apoio técnico na elaboração destes planos. Acabamos de apoiar a elaboração, por exemplo, do Plano Nacional de Segurança Sanitária, cujo objectivo é proteger o país em caso de epidemias e pandemias no futuro. Também fazemos um trabalho de advocacia, por exemplo, para a prevenção das DNT, para melhorar a literacia na Saúde, para continuar a investir em Recursos Humanos em Saúde (RHS). Apoiamos a formação de muitos técnicos do ministério da Saúde, durante a pandemia da covid apoiámos financeiramente as equipas de vacinação. Enfim, quando for necessário podemos apoiar com financiamento, mas o nosso apoio é principalmente técnico.

Neste momento quais considera serem as principais ameaças na Saúde em Cabo Verde?

O país, apesar dos sucessos, tem ainda desafios e penso que há alguns desafios a destacar. O primeiro é a luta contra as DNT. A maioria dos cabo-verdianos, até 57%, vai morrer das DNT. As DNT matam mais cabo-verdianos do que qualquer outra coisa e é triste porque a maioria destas doenças seria evitável se mudássemos certos aspectos das nossa vidas. Por exemplo, o tabaco. Não há nada a dizer de bom em relação ao tabaco: para ser saudável há que parar o seu uso. Tem de haver programas para apoiar os que querem parar, e temos de continuar a educar, para prevenir que as pessoas comecem a fumar, sobretudo os jovens. Este é um factor de risco que podemos evitar. O Alcoolismo é o segundo. Acho que todos temos experiências pessoais com o abuso de álcool, todos conhecemos pessoas [que abusam] e sabemos que tem efeitos não só na Saúde como na vida social. Um outro factor é a actividade física. A OMS recomenda 150 minutos de actividade moderada por semana. A actividade física tem benefícios não só para a Saúde física, como para a Saúde mental. Eu gosto de correr, saio muito cedo, de manhã, para correr e vejo muitos cabo-verdianos na rua a fazer exercício. Temos de encorajar a população para continuar com a actividade física. Por fim, a dieta. É muito importante ter uma dieta saudável, com legumes, frutas, etc., e usar menos sal e menos gordura. Então: álcool, tabaco, actividade física e dieta saudável, são elementos muito importantes para fazer frente a este grande desafio que são as DNT.

E quais os outros desafios?

O segundo desafio são os Recursos Humanos em Saúde (RHS). Tem havido um grande progresso, da minha experiência há uma grande capacidade no país, os trabalhadores de Saúde são bem formados. Vimos durante a pandemia a contribuição, o valor dos trabalhadores da Saúde, mas é muito importante que o governo continue o investimento nos RH.

A nível de RHS e olhando a população, até onde deve ir o nível de especialização? Como formar um cirurgião para fazer apenas meia dúzia de operações por ano?

Este é um desafio do governo. É o ministério de Saúde que vai gerir os RHS no contexto de Cabo Verde, um contexto arquipelágico, de populações dispersas. É difícil. Eu acho que é importante continuar a investir em RH para a Saúde primária, para que haja RH para fornecer os serviços básicos em todos os municípios do país. É verdade que precisamos de mais especialistas, em certas especialidades, mas, como disse, há outras para as quais não vai haver uma população suficientemente grande para haver sustentabilidade, para sustentar certos especialistas. Mas também acho que a população está a pedir, cada vez mais, serviços mais avançados, por isso vamos precisar de investir. O investimento em RHS, há muitas evidências que o mostram, não só é um bom investimento para a Saúde como é um investimento para o crescimento económico. O investimento em RHS nunca é um desperdício. Entretanto, a evacuação vai continuar a ser, infelizmente, uma realidade para alguns casos, mas a ideia é tentar ver quais são os serviços que podemos estabelecer aqui, para diminuir as evacuações. E já foram criados alguns serviços importantes como a unidade de cuidados intensivos, no HAN ou a unidade de diálise, que funciona bem e reduziu muito o número das evacuações.

Entretanto, uma discussão que tem vindo a ganhar força em Cabo Verde é a da relação entre os sectores público e privado na saúde. Qual a posição da OMS nesta matéria?

É uma aérea na qual estamos a trabalhar com o Ministério da Saúde, porque reconhecemos que há esse sector e é muito importante uma boa integração do sector privado dentro do sector da Saúde. É uma questão de governança. Então a nossa proposta, a nossa ideia, é começar um diálogo com o sector privado porque neste momento não há um quadro legislativo no país que defina o papel do sector privado. Acho que através do diálogo podemos chegar a esse quadro legislativo. Todos os países no mundo têm maneiras diferentes de trabalhar com o sector privado, o seu papel é diferente em cada país e, de facto, é chegado o momento de Cabo Verde decidir como vai ser o funcionamento com o sector privado. Acho que o sector privado da Saúde em Cabo Verde tem muita potencialidade, é uma potencialidade ainda não completamente realizada, e o quadro legislativo vai ser um instrumento muito importante.

Temos assistido a um aumento da pobreza e outros impactos das crises. Como vê estes impactos na Saúde?

É certo que é muito desafiante, para o país, em geral, e para o sector de Saúde também. Há uma confluência das crises que estão a pressionar o governo em termos de espaço fiscal, de priorização. Acho que o desafio para o sector da Saúde vai ser a diminuição no espaço fiscal para investimento na área da Saúde. Havia um grande investimento no sector durante a pandemia da covid e vai ser muito desafiante poder continuar este investimento, mas é muito importante que encontremos uma maneira de continuar a investir na área da Saúde, para o bem-estar geral do país.

Estas são crises mundiais. Como é que isto está a afectar as estratégias e prioridades da OMS, no mundo?

Temos sempre a mesma prioridade a nível mundial que é a cobertura universal de Saúde. É assegurar que as populações em todo o mundo tenham acesso a serviços de Saúde, de qualidade, a um preço acessível. Este é um sonho que não foi ainda atingido. As circunstâncias actuais fazem com que este sonho se torne muito mais difícil de atingir, sobretudo nos países mais vulneráveis, então vamos precisar de ver como podemos preservar o investimento na Saúde nos países e convencer os ministérios das Finanças, os governos, de que é muito importante continuar a investir na Saúde. A pandemia também mostrou a necessidade de os países trabalharem de uma maneira muito mais próxima, mais conjuntamente. Uma epidemia em um país pode amanhã ser uma pandemia, então a partilha de informação, de dados, de experiências, é cada vez mais importante. Penso que esta foi uma lição aprendida durante a pandemia que vai servir bem à população mundial.

Em relação ao contexto sub-regional, como vê a posição de Cabo Verde?

O que é importante é que há uma boa colaboração entre Cabo Verde e outros países da região. Um bom exemplo é o Senegal. Tivemos o apoio muito forte do Instituto Pasteur, durante a pandemia. E há uma colaboração muito importante com os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (os SIDS) africanos no sentido de se organizarem para aumentar o poder de compra dos medicamentos essenciais, pois é muito mais fácil, para um comprador grande, negociar bons preços. É um mecanismo de colaboração que funciona muito bem. O Ministério da Saúde de Cabo Verde está a presidir este grupo. Há um tender para a compra dos medicamentos que ainda não foi decidido, mas a ideia é que vamos receber medicamentos de boa qualidade a um custo razoável através deste mecanismo. Na minha opinião há potencial para levar a colaboração a outras áreas, outros mecanismos de cooperação. Cabo Verde tem de ir lá onde há maior possibilidade de ter benefícios na área da saúde. Faz parte da diplomacia na saúde. Há iniciativas em África, países que estão a começar a produzir vacinas, por exemplo, e no futuro estas podem ser oportunidades interessantes para Cabo Verde.

Cabo Verde está a preparar-se para a Certificação da Eliminação do Paludismo. Como está este processo?

Ainda não chegamos à Certificação da Eliminação do Paludismo, que é dada pela OMS. Já foi reconhecido o progresso feito, e penso que vamos conseguir a Certificação, provavelmente este ano. Mas não é uma coisa fácil, não é só uma questão de não haver casos autóctones no país. Temos de assegurar que o país tem toda a capacidade de identificar os casos que haja e de responder aos casos importados. Na área do paludismo, nós achamos, por exemplo, que a luta contra o vector mosquito ainda é fraca. Então é uma coisa que temos de reforçar antes de podermos certificar. Enfim, há a base, pessoas bem formadas, pessoas competentes, mas temos de construir o sistema de vigilância, laboratorial, para a certificação. Mas o país está no bom caminho…

Também temos em curso a certificação da eliminação da transmissão vertical de VIH-SIDA.

Tenho experiência com essa certificação em outro país. As exigências para provar que não há mais transmissão mãe-filho são muitas, estamos no início deste processo. Vamos apoiar, mas vamos começar com a certificação do paludismo. Penso que temos mais possibilidades de eliminar o paludismo aqui.

“Uma só Saúde” (One Health) também é outro assunto do dia. Dentro dessa abordagem, qual o foco?

Uma Só Saúde é baseada na ideia de que o acontece no sector ambiental, alimentar, da Saúde animal e da Saúde humana está interligado. Então, trabalhamos com a FAO, o Ministério da Agricultura e Ambiente, ministério da Saúde, e outras entidades, nesta plataforma. A ideia é que todos estes sectores têm de trabalhar conjuntamente para evitar problemas de Saúde. É uma plataforma cada vez mais importante ao nível mundial, mas também em Cabo Verde. A nível de Cabo Verde, acho que o foco maior da One Health é a protecção para futuras epidemias e pandemias, portanto, a elaboração do referido Plano Nacional de Segurança Sanitária. Em função deste plano, é muito importante o reforço dos laboratórios e a criação do EOC (Emergency Operations Center – Centro de Operações de Emergência), que a OMS está a apoiar, e no qual pode fazer-se a gestão dos futuros surtos aqui no país. Então, reforçar a resiliência do sistema de saúde, a capacidade de preparar e responder.

Fala-se muito da resistência aos antibióticos e das superbactérias.

A nível internacional e também aqui em Cabo Verde temos o problema da resistência antimicrobiana que é também uma prioridade e, neste sentido, é igualmente importante reforçar os laboratórios, para terem as capacidades de monitorar a resistência. O One Health tem aqui um papel importante pois a resistência está ligada directamente ao uso excessivo dos antibióticos em seres humanos, mas também no sector veterinário (em animais de consumo, nomeadamente), por isso que os diferentes sectores têm de trabalhar em conjunto.

Mas quais são os grandes desafios do One Health, a nível mundial?

Penso que o potencial pandémico de zoonoses é agora o factor mais preocupante para o One Health. As zoonoses são doenças que são transmitidas dos animais para os seres humanos. Estamos, cada vez mais, em contacto com animais que potencialmente podem transmitir doenças a seres humanos. Este aumento do contacto está ligado às mudanças ambientais: quanto mais avançamos nos ecossistemas dos animais, mais temos contacto com eles, mais possibilidade há de uma transmissão. Então coloca-se, mais uma vez, a questão de reforçar a vigilância, a possibilidade de detectar rapidamente doenças em animais, em seres humanos, em cooperação entre laboratórios para caracterizar os diferentes patogénicos.

Olhando para o futuro, o que gostaria de ver acontecer em Cabo Verde neste seu mandato?

Gostaria de ver progresso nas áreas das DNT. É uma área na qual temos intervenções, baseadas na evidência, que podem melhorar a saúde da população. É um foco para a OMS. RHS é outro foco. Vamos continuar a apoiar a capacitação, a formação dos RHS e vamos continuar a encorajar o investimento em RHS. Vamos também continuar a apoiar o Ministério da Saúde para desenvolver as ferramentas, os instrumentos, para a gestão dos RHS porque sem RHS de saúde não há um sistema de saúde. Para mim, os RH são a pedra angular do sistema de saúde. Evidentemente, antes de sair, queria certificar a eliminação de paludismo e acho que o vamos fazer. Vamos também trabalhar na Transmissão vertical do HIV-SIDA. E, por fim, para mim é interessante esta questão do sector privado e público, é uma questão de melhorar a governança na saúde, apoiar o ministério, incorporar o sector privado e fazer com que o povo deste país tenha o benefício de um sistema de saúde bem integrado que funciona com máxima eficiência e capacidade.

Para finalizar. Nestas comemorações dos 75 anos da OMS, alguma mensagem global que a organização queira passar?

A mensagem é que houve muitos progressos, na área da saúde, nas últimas sete décadas. Destacamos alguns dos mais importantes, mas ainda há desafios, sobretudo a acessibilidade a serviços de saúde de qualidade para todo o cidadão do mundo a um preço acessível, cobertura universal de saúde. A mensagem é de, na época pós covid, depois de toda a atenção prestada à saúde durante a pandemia, onde havia muito investimento, não “baixar os braços”, temos de continuar esse investimento. Embora o contexto seja difícil, é muito importante continuar a investir na área de saúde. Devemos continuar a avançar, melhorar a saúde das pessoas, sem deixar ninguém para trás. Vamos todos para a frente.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023. 

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Autoria:Sara Almeida,16 abr 2023 8:04

Editado porAndre Amaral  em  19 jun 2023 23:28

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