Doze dos 16 anos de Endany foram passados a estudar na Les Alizés. Filha de mãe cabo-verdiana e pai francês, a questão da língua nunca foi problema. Fora da escola, em casa fala francês com o pai, língua cabo-verdiana com a mãe e alguns amigos, português com outros… Mudar de língua não é problema. É automático, sai natural.
Com o Expresso das Ilhas, a breve conversa é feita em Língua Portuguesa, a qual Endany (tal como os outros alunos com quem falamos) domina bem, mesmo que não seja a sua língua principal de instrução.
Aliás, o plurilinguismo parece ser comum nos alunos desta escola, a única de escolaridade em língua estrangeira na Praia. Há apenas mais duas no país, muito pequenas e também de ensino francês, uma no Sal e outra na Boa Vista que, tal como aqui, combinam o ensino presencial nos primeiros anos de escolaridade com um ensino a distância e apoio presencial, nos últimos.
70% Cabo-verdianos
Criada em 1992 por um grupo de pais, Les Alizés conta hoje com mais de 220 alunos de 20 nacionalidades diferentes. Porém, contabiliza a directora, Christine Fuhrel, a maioria é cabo-verdiana.
Cerca de 70% tem passaporte nacional e, pelo menos, um dos pais é cabo-verdiano. Depois, há os filhos do pessoal do corpo diplomático, de diferentes embaixadas e os filhos dos trabalhadores das organizações internacionais, que juntos constituem cerca de 20% dos alunos. Por fim, há 10% de crianças com os dois pais franceses ou da áfrica francófona.
É fácil entender as razões destes 10%. Também é bastante óbvio o motivo pelo qual os diplomatas escolhem esta escola. “Quando os pais tiverem de viajar irão encontrar uma escola francesa em qualquer outro país do mundo”, explica.
Já os cabo-verdianos, apresentam variadas razões para a escolha. Em alguns casos é porque um dos pais é francófono, outros, é porque pretendem emigrar (ou regressam da emigração), outros ainda é porque querem dar aos filhos a possibilidade de, no futuro, facilmente integrarem uma Universidade francesa, ou de um outro país europeu. Outros ainda é para abrirem o leque linguístico da criança, neste mundo global.
Quase todos, é porque acreditam na qualidade do sistema de ensino.
Foi o caso dos pais de Luísa. A jovem, hoje com 17 anos, entrou em Les Alizés quando tinha 7 anos, ou seja, “na 2.ª ou 3.ª classe”, recorda. Tinha estudado, até então, numa conhecida escola de gestão privada cabo-verdiana, mas os pais (um de naturalidade portuguesa, outro cabo-verdiana), agradados com o nível de ensino de Les Alizés e sua organização, decidiram que aqui deveria prosseguir estudos. Assim, teve aulas de francês durante as férias, também no centro cultural francês. Depois, fez um pequeno teste na própria escola para aferir a sua proficiência e entrou. A adaptação, recorda, foi “fácil”.
Começar cedo
Na verdade, na Les Alizés, por norma não se aceitam crianças que venham de escolas cabo-verdianas após o CP (1.º ano de escolaridade), não só porque o sistema de ensino e os programas são diferentes, como, claro, pela língua.
O incentivo é, aliás, que iniciem aqui o mais cedo possível – a partir dos 3 anos.
Aos 3 anos as crianças “são esponjas, não têm medo. Falam francês com o professor, com os colegas, são uma esponja”, observa Christine Fuhrel, que insiste no papel do nível de ensino.
“Não é um jardim, uma creche. É muito importante chamar-se pré-escolar porque é a escola antes da escola”.
Quando a criança entra no meio escolar, pela primeira vez, com 6 anos, por exemplo, outros já têm 3 anos de escolarização e, no caso dos Les Alizés, de contacto com a língua francesa.
Então, quanto mais anos passarem, mais difícil a progressão em conjunto com o colegas. Não que seja impossível, mas é mais complicado…
Um parêntesis aqui para falar do ensino em Cabo Verde: aqui, como se sabe, pretende-se encetar uma reforma no pré-escolar, tornando-o obrigatório e universal, pelo menos, aos 5 anos. Essa reforma, que já está prevista mas ainda não arrancou, irá também permitir a todos os alunos começar o seu contacto com a língua de instrução e ensino nacional, o português, nesse ano prévio ao ensino básico, algo que muitos educadores há muito vêm insistindo.
Torre de Babel
Mas voltando a Les Alizés.
Cheikh tem 16 anos e mora desde os 4 em Cabo Verde. Nasceu em Portugal, filho de mãe da Guiné-Bissau e pai do Senegal. Hoje tem também nacionalidade cabo-verdiana.
Quando chegou ao país vinha da Guiné-Bissau onde já frequentava uma escola francesa. “Então, não foi uma grande mudança para mim, o problema não foi a língua, foi mais os amigos”. Não conhecia ninguém e apenas conseguiu fazer uma única amizade durante o pré-escolar. Depois, começou a enturmar-se melhor.
Na escola fala francês, mas quando sai “a passagem é automática”.
“Dependendo da pessoa com quem falo mudo a língua também, sem dar conta”. Com o pai e irmão fala francês, com a mãe, às vezes português, com a família materna, português, com alguns amigos, crioulo, com outros, inglês…
Também para Luísa é fácil sair da escola e “sintonizar” no universo lusófono e cabo-verdiano.
“Como tenho a língua (francesa) desde pequenina consegui sempre fazer como que uma separação”. O mesmo acontece com Endany…
É, pois, possível falar muitas línguas, sim, sem grandes contaminações entre elas e sem usar nenhuma como muleta.
Aliás, na Les Alizés ensinam-se também Inglês e Português, algo que consideram ser importante até porque 70% dos alunos é cabo-verdiano.
“Têm de conhecer o seu próprio idioma [oficial] para entender o idioma francês”, considera a directora.
Mas, recorda-se, só o Francês é a língua de instrução e ensino. Quer isto dizer que todas as disciplinas (excepto as línguas, claro) são ensinadas em francês; na sala só se fala francês; com os professores só se fala francês e nos intervalos…
Bom, os alunos são incentivados a falar apenas francês em todo o recinto escolar, nesta escola que conta com alunos de cerca de 20 nacionalidades diferentes.
Mas, como impedir duas irmãs russas que se encontram no intervalo, ou dois meninos líbios, ou duas crianças chinesas, de falar na sua língua?
“É a Torre de Babel. É difícil impor que falem só francês, não podemos dizer que não falem entre si. Para mim, isso é artificial”, considera a directora.
Mesmo com os pais, “é a Torre de Babel”. O diálogo é feito recorrendo a várias línguas. “Por exemplo, temos muitos alunos da embaixada dos EUA – que aliás nos ajudou com a segurança da escola segundo as suas normas. Há pais que vêm com uma missão de 2 ou 3 anos e só falam inglês. Não é como a escola portuguesa, por exemplo. Aqui temos muitas línguas...”
Entretanto, e como se dizia, a orientação é que os alunos falem francês, numa lógica de imersão e pertença.
A Língua
Christine Fuhrel chegou a Les Alizés em Janeiro deste ano. Na bagagem trouxe a experiência nas Escolas Francesas de vários países da América Latina – Chile, Uruguai, México. E os mesmos aspectos para o sucesso em uma língua que não a materna são comuns a todos os lugares pelos quais passou.
“Imersão” é o segredo desde logo destacado pela directora. Mas para além disso, há outros de foro mais emocional. Christine Fuhrel refere como de suma importância a questão do “gosto [pela língua], prazer, sentimento de pertencer a um grupo.”
“É o clique”, resume.
Por exemplo, para os alunos de Les Alizés falar francês entre eles num espaço público lusófono é “como um código de reconhecimento”, observa.
Por outro lado, e isso a pedagoga já viu também cá e nas outras escolas onde esteve, quando há uma rejeição do aluno a uma língua que não consideram sua, torna-se complicado…. Isso acontece principalmente quase chegam à adolescência, em que, por vezes, simplesmente se recusam a usá-la.
“Se não querem, não há como obrigá-los. É preciso que eles tenham o gosto, se não…”
Para além da Língua
Mas não só de “língua” se faz Les Alizés. Aqui segue-se o modelo francês, e muitos pais colocam aqui os seus filhos pois acreditam na qualidade do mesmo.
As aulas seguem uma pedagogia interactiva entre crianças e professores. Ou seja, como explica Guillaume Cordin, professor do 2.º ano de escolaridade, é um ensino menos “frontal” – professor frente aos alunos. Eles lá, nós cá. – e mais baseado na participação interactiva, do que em Cabo Verde.
“Mas também creio que em Cabo Verde estão a mudar a metodologia. O que havia há 20 anos não é exactamente o mesmo que há agora”, observa a directora, Christine Fuhrel.
Também não há mais do que 24 alunos por turma e, dentro da sala de aula, sub-divide-se os alunos em grupos pequenos, com os quais se realizam actividades diversas. Reconhecendo-se que os alunos/grupos têm níveis de aprendizagem diferentes, o professor também adapta a sua pedagogia a cada um.
Assim, dentro da sala e para uma mesma disciplina, os exercícios dados podem ser diferentes, consoante o nível do aluno, e os próprios colegas que estão num nível superior são incentivados a ajudar os seus pares.
É, portanto, um ensino muito mais individualizado, algo a que o próprio tamanho das turmas (e até da escola) ajuda.
Há apenas uma turma por ano de escolaridade e os alunos costumam ter os mesmos colegas durante vários anos. Como a escola é pequena, também todos se conhecem. “É como uma família”, referem, aliás, quase todos os entrevistados.
Em termos de “chumbos”, quem decide se o aluno passa ou não de ano são os professores da classe, juntamento com o inspector, que está em Dakar, mas as reprovações são raras. Só em casos em que esta, pensa-se, fará diferença.
Porém, “se um aluno, de 14 anos não quer estar aqui, não quer estudar, não serve de nada reprová-lo. Por tudo que vi na minha vida, não serve”, comenta a directora.
Em caso de pouco aproveitamento nos estudos, o que geralmente se faz é um acompanhamento especial ao aluno, sem reprovar.
“Dentro da sala fazemos diferenciação, coisas diferentes para aqueles alunos que têm dificuldades”, explica o professor Guillaume Cordin.
É mais trabalho para o professor, claro, mas não só o referido facto de as turmas serem pequenas ajuda, como também a forma como o calendário escolar francês está organizado.
“Temos mais férias do que no sistema de cabo-verdiano”. De 5 de Junho a 1 de Setembro há as férias grandes e, durante o ano lectivo, a cada 7 ou 8 semanas de aulas faz-se uma pausa de 2 semanas.
“São mais férias, mas isso dá mais tempo ao professor para preparar as aulas”. Dá igualmente tempo aos alunos para repouso, uma vez que as aulas decorrem das 8h às 16h. “É horário completo, então é uma organização que permite também ao aluno descansar e estar regenerado para o retorno”, explica Christine Fuhrel.
Mas, voltando à língua. Esta é um obstáculo, na Les Alizés, no que toca a outras áreas de estudo? A pergunta não é inocente. Em Cabo Verde, a língua de escolaridade não é, como se sabe, a língua materna, pelo que há quem defenda que os maus resultados a outras disciplinas se prendem com as dificuldades na Língua Portuguesa.
No que toca a esta escola internacional francesa, a directora considera que “o problema não é o idioma” em si. “O problema é quando o aluno já tem dificuldades, por exemplo, a matemática e, a essa dificuldade, somamos o Francês. Se tem dificuldades para ler ou entender uma língua que não é a sua, e também a uma outra disciplina, fica com duas dificuldades. Dá muito mais trabalho porque tem de fazer tudo com um idioma que não é o seu”, considera.
Ir
Acabando o secundário… Há uma coisa comum a todas as Escolas Internacionais espalhadas pelo mundo: formar cidadãos globais, esbatendo fronteiras por via da educação. Neste caso, claro, com grande enfoque na França e cultura francesa.
“Não se trata somente de falar francês, mas da promoção da cultura francesa. Estamos cá para isso, e é por isso que o governo francês nos apoia”, sublinha a directora.
Por tudo isto, continuar os estudos em França é a primeira opção para os alunos de Les Alizés.
Endany está no 11.º e quer seguir Economia, “em princípio em França”, embora ainda não tenha certezas.
França é também o destino escolhido por Luísa, que já está no 12.º ano, e confiante de que conseguirá o seu objectivo. “Normalmente os que saem dos Les Alizés conseguem entrar no ensino francês” facilmente, conta. A área: ciências. “Estou focada na biomedicina, e também em ciências da vida”, explicita.
Na mesma linha, Cheikh, cuja aérea de interesse é a biologia marinha, tem como principal objectivo seguir os estudos em França, mas pondera outras opções, nomeadamente Portugal, caso não consiga.
França é, pois, o destino preferencial. Mas o mundo é grande e as opções variadas… Allons-y!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.