Memórias de uma tragédia

É um caso de que (quase) todos já ouviram falar. Uma tragédia que ceifou 8 vidas e afectou toda uma comunidade, deixando marcas que perduraram durante muito tempo. Em Agosto de 1986, em Rincão, várias pessoas beberam metanol trazido do mar, após o encalhamento de um navio. Um caso de incúria de várias entidades envolvidas, em que as responsabilidades pelos danos na população nunca foram assumidas. Hoje, a localidade e suas gentes são diferentes, a vida melhorou, as cicatrizes que se querem esquecer, às vezes, ainda são lembradas. Várias pessoas partilham aqui a sua memória do triste evento. “Quem morreu, morreu. Quem sofreu, sofreu. Eu sofri muito”, lembra um dos sobreviventes da tragédia.

Em Agosto de 1986, Emiliano Fidalgo tinha 16 anos. Estudara até à 6.ª classe em Assomada e, como para continuar os estudos teria de ir para a Praia, e não havia possibilidades na família para tal, dedicava-se agora com o pai à pesca. Paralelamente, começara, por mote próprio, um trabalho voluntário de alfabetização de adultos para ajudar a sua comunidade: Rincão. Uma comunidade pobre, sem estudos e encravada num deserto de montanhas a desembocar no mar.

Os dias eram passados entre a faina no mar, e as duas horas de aulas de alfabetização que dava na escola da localidade, após o término das aulas da primária ali leccionadas.

No dia da tragédia, estava, precisamente, na alfabetização quando um amigo passou, disse que tinha encontrado uma bebida alcoólica no mar e estavam todos a beber. Chamou Emiliano para ir também, mas estando em meio da aula, apesar da vontade de se juntar aos outros, ficou com “um peso na consciência” e disse que ficava para depois.

Saído da aula, um outro afazer voluntário o chamava. “Eu fazia cartas, correspondência, para pessoas que estavam viajadas”, lembra. Na casa onde foi escrever a carta, a dona e suas duas irmãs tinham trazido garrafas com a bebida. Elas próprias beberam, mas pouco, pois o marido da primeira aconselhou a que não o fizesse. Algumas pessoas já começavam a mostrar sinais de mal-estar.

Algumas vomitavam. Emiliano pensou, “isto não é bom”. O entusiamo de alinhar com os outros na bebida passou, nem chegou a provar o líquido.

A cada hora que passava, mais gente tinha reacções. Algo, de facto, não estava bem.

Primeira morte

Quem hoje visita Porto Rincão, chega sem grandes dificuldades. 17 km o separam da Assomada, sede do concelho, mas a estrada, fruto da reivindicação dos seus habitantes, em início dos anos 2000, está em boas condições.

Nada a ver com o caminho batido de 1986, quando os carros vinham apenas dois dias por semana para transporte de quem precisava. Há 37 anos não havia estrada, e também não havia água canalizada, energia eléctrica ou telefone. O isolamento era real.

“Era uma situação extremamente difícil, também não havia muitas pessoas com posses, não havia pessoas habilitadas, com estudos e com cultura geral… Agora já é diferente”, observa Emiliano.

Apesar de alguma actividade agrícola, a pesca era a principal actividade. Todos pescavam.

Na localidade piscatória, o dia anterior, uma segunda-feira, começou como outro dia qualquer. Três pescadores saíram para a faina, a bordo do bote “Filomena” em busca de pescado. Mas, de vez em quando, ao invés de peixe o mar dá outras coisas e o mito de um “tesouro” encontrado no oceano é algo que perpassava o imaginário de todos. Então, quando ao largo, viram um bidão, logo se aprontaram a trazê-lo para terra, para ver o que continha.

Chegaram, avisaram o dono do bote e, rapidamente a notícia da chegada de um bidão trazido do mar correu na localidade. O agente sanitário, Raúl Lopes Correia, reticente aconselhou a que não o abrissem até que as autoridades competentes tomassem conhecimento do caso.

Contudo, ninguém esperou as autoridades. No dia seguinte, os pescadores decidiram abrir o bidão. Lá dentro, um líquido incolor.

Como tudo o que era pescado no mar, também neste caso se fez a divisão do conteúdo do bidão entre pescadores e dono do bote. Lucídio da Silva, na altura com 31 anos, foi chamado para fazer essa partilha. Abriram o bidão. O agente sanitário foi avisado e correu, receoso, para o local, mas de nada adiantou alertar para que não bebessem.

Ninguém lhe deu ouvidos. Provado o líquido, nada no seu sabor deixava antever a ameaça. Até as mulheres menos habituadas a grogue e outras bebidas alcoólicas conseguiram beber aquilo, lembra, hoje, Lucídio. E também ele bebeu muito. Enquanto fazia a divisão, um trago aqui, um trago ali. “Tcheu”. Bebeu e nada sentiu. Nas horas seguintes, porém, viu que algo estava mal. “Arrota-se aquele... tipo de um gás diferente”, tenta explicar. Sentiu dores no estômago e mal-estar geral.

Outras pessoas começaram também a sentir efeitos.

Passadas umas horas, Gauldino Borges, um jovem de 23 que bebera mais do que um litro do produto, ficou em estado crítico. Como não havia transporte terrestre viável, foi de bote para Ribeira da Barca, de onde seria mais fácil seguir para Assomada.

Quando chegou ao hospital já estava morto. De acordo com o boletim de óbito, faleceu de intoxicação alimentar, às 3h45 de 20 de Agosto de 1986.

Em Assomada

Francisco Varela era agente sanitário em Assomada e também ele lembra a tragédia. “Como poderia esquecer?”

A primeira vítima, Gauldino seguira de Ribeira da Barca “em cima de um camião que tinha areia” e quando chegou ao banco de urgências nada havia a fazer. Estava morto.

Quando Francisco perguntou à mãe do rapaz o que tinha acontecido, “ela não quis dizer”.

Pouco depois chegou uma outra pessoa em coma. E outra. E depois foram chegando mais.

Numa só casa três pessoas perderam a vida, lembra Francisco. “Um homem bebeu e deu ao filho e à mãe”. Nenhum resistiu.

O médico responsável pelo hospital da Assomada, Pierre Martell, um clínico cooperante, “tinha ido à cidade da Praia e quando chegou deparou-se com a situação”, conta Francisco.

Logo se iniciou um frenesim para descobrir o que se tinha passado.

O que hoje poderia ser descoberto de forma relativamente fácil, era então um desafio gigante pela falta de estruturas e mecanismos adequados, falta de acessibilidades e de meios de comunicação.

Uma amostra do produto ingerido foi recolhida e enviada para a Praia, para análise, descobrindo-se que se tratava de metanol, um biocombustível muito utilizado nas indústrias químicas como solvente e também como componente para fabricação de diversos produtos.

Mais concretamente, descobriu-se depois, o líquido do bidão era um misto de metanol, etanol e água.

Descoberta a causa da intoxicação, o Dr. Martell deu instruções para que dessem vinho, durante alguns dias, aos que tinham bebido aquele produto.

Isto porque, segundo explicações dadas na altura, pelo médico ao jornalista Luís Carvalho, do extinto Voz di Povo, é no fígado que o metanol se transforma em produto tóxico. Se os pacientes beberem vinho ou outro tipo de bebida alcoólica, as enzimas ficam “ocupadas” a transformar o álcool etílico e o “fígado não terá tempo de converter o metanol ingerido em outro produto tóxico”.

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Isso explica também que quem bebera grogue na altura em que o metanol foi também ingerido não faleceu.

Terá sido o caso, por exemplo de José Fidalgo, o mais velho entre os três pescadores que encontram o bidão. Também ele ingerira o líquido, mas como de seguida bebeu grogue, não ficou intoxicado.

Quando foi descoberta a cura, “já tinham morrido 8 pessoas, mas a partir dali, mais ninguém morreu”, recorda Francisco. “Mais ninguém morreu”, reitera, congratulando a descoberta.

Foi avisado que todos os que beberam deveriam ser vistos pelos profissionais de saúde, mas muitos recusaram.

“Alguns não queriam ir, porque estavam confusos”, lembra, por seu turno, Emiliano. Mas foram obrigados, não se sabia quantas pessoas tinham de facto bebido o letal produto.

O primeiro alerta teria sido de 45 pessoas. Depois, um outro médico foi para Rincão para averiguação in loco. A estimativa foi, de acordo com um outro rincaoense, que mais ou menos 200 pessoas tiveram algum contacto com o produto.

As autoridades policiais também foram, mas o que os habitantes mais se lembram é a onda solidária que se criou.

Alguns particulares disponibilizaram carros para trazer as pessoas que tinham ingerido metanol para os cuidados hospitalares. E todos destacam a imensa solidariedade dos comerciantes de Assomada que providenciaram o vinho para o tratamento e, inclusive produtos alimentares.

As pessoas chegavam, e era demasiada gente para as estruturas de saúde. Na Escola Grande foram colocados colchões, onde os pacientes aguardaram a recuperação, “medicados” com o vinho.

Quantas pessoas, ao todo, estiveram internadas, Francisco já não se lembra, mas eram muitas, muitas.

Vinho

Todos os entrevistados apontam o apoio de várias pessoas de diferentes áreas. Muitos citam uns nomes, outros, falam de outras personalidades. Mas todos se referem à solidariedade dos comerciantes de Assomada e todos exaltam um nome: o médico cooperante Pierre Martell. Aqui, ele é visto como um Salvador, pelo trabalho incansável e também por, de facto, ter conseguido evitar uma tragédia ainda maior.

Descoberta a cura, a distribuição do vinho era constante e à volta da Escola Grande sempre uma grande confusão, entre parentes e curiosos.

Francisco lembra, inclusive, uma situação caricata: houve quem oferecesse ajuda para assistir os “internados”, apenas para roubar garrafões de vinho. “Apanhámo-los já no portão” a sair com o vinho da cura, recorda entre o chateado e o divertido, com a distância emocional à tragédia que os anos já vão permitindo.

Além do hospital de Assomada, também alguns doentes foram para o hospital da Praia, para tratamento e averiguação dos sintomas.

No total, os números oficiais contabilizam, para além das 8 vítimas mortais (algumas menores de idade), o registo de 36 intoxicados.

Apesar de a cegueira ser uma das consequências desta intoxicação, não há, no entanto, relatos de ninguém que tenha chegado a este extremo, embora tenha havido alguns problemas de visão.

Entre os 36 intoxicados estão Carlos “Calú” Gonçalves e João Ferreira. Tinham 18 e 16 anos, respectivamente, quando se deu o caso do metanol e também eles estiveram internados, mas as suas memórias sobre esse momento são muito vagas.

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Carlos recorda-se de que quando chegou à praia, já encontrou outros a beber. Bebeu também, naquele espírito de partilha comunitária que caracterizava a comunidade. Bebeu, e a partir daí pouco mais se lembra.

Dormiu em casa de alguém. Começou a sentir-se mal. Estômago e sensação estranha nos olhos.

“No outro dia fui para a Assomada, já não me lembro de mais nada”, reforça.

O mesmo aconteceu com João Henrique.

“Nós todos estávamos assim, mais mortos do que vivos”, diz João, que foi levado num carro particular para a Assomada.

Estiveram hospitalizados bastante tempo, mas nem sabem precisar quanto, nem o que se passou no entretanto.

No hospital, sabem que tomaram vinho. “Punham-nos na boca, nós não conseguíamos…”, conta.

Quanto à tragédia, “depois disso é que me vieram contar o que aconteceu. Eu não sabia o que aconteceu”, conta Calu.

Choro

Rincão é composto por duas zonas principais, “Riba Tchã ” e “Baxu La”, a zona junto ao mar, onde se realizam as principais actividades económicas em Rincão.

É aí que encontramos Antónia Gomes. Está no meio das redes e barcos fibrados. Rincão é, aliás, e conforme disse recentemente o ministro do Mar, a primeira comunidade piscatória em Cabo Verde em que todas as embarcações de pesca semi-industrial estão fibradas. Mas a pesca não vai bem. “Sta mariadu”, diz Antónia.

Também esta senhora se lembra, claro, da tragédia. Era já mulher feita, mãe de muitos filhos, quando aconteceu.

O barril foi aberto, recorda, e o seu marido encheu um garrafão de 5 litros com aquele líquido, que guardou para beber depois. Acabou por não beber pois, entretanto, o seu irmão, que o tinha feito, começou a sentir-se mal.

Virado o dia, o número de pessoas indispostas foi aumentando e depois... “aconteceram todas aquelas mortes”, lamenta.

Os dias seguintes foram terríveis na localidade. O clima era de tristeza, choros na capela e pelas ruas. Muita angústia e muitas visitas também de outras localidades que vinham para dar conforto às pessoas que tinham perdido familiares.

Antónia lembra o choro na capela de uma mulher que tinha dado aquela bebida a uma criança.

Muito choro…

A origem

Semanas antes da tragédia, a 29 de Julho, o navio a motor “Ilha do Sal” encalhou na localidade de Baixo Galeão, ilha do Maio.

Foi daí que saiu o bidão que foi apanhado pelos três pescadores, a uma milha da costa de Santiago.

Conforme foi noticiado no Voz di Povo, na altura do encalhamento, e com autorização da Empresa Nacional de Administração de Portos (Enapor), os porões da embarcação foram abertos, numa tentativa de recuperar o navio.

A operação não foi bem-sucedida e a carga tóxica também não foi recolhida.

A tripulação e as autoridades tinham consciência de que algumas cargas, tóxicas, que foram atiradas ao mar, podiam dar à costa.

Mas não foi emitido qualquer alerta ou efectuada uma delimitação da zona para impedir a deriva dos bidões que continham combustíveis tóxicos e inflamáveis. Enfim, não foi tomada nenhuma medida.

O pior aconteceu. E depois, ninguém se responsabilizou pelo que aconteceu em Rincão.

A culpa

As notícias da altura referem uma reunião, logo após à tragédia, em que participaram os responsáveis da Shell, da Direcção Marítima, da Direcção Geral de Farmácia, do Laboratório de Controlo de Medicamentos e da Direcção Clínica do hospital Agostinho Neto, e que foi presidida do ministro de Saúde, Trabalho e Assuntos Sociais, Irineu Gomes. A intenção da mesma era efectuar-se a análise do caso e de procurar as medidas a serem implementadas.

No final, foi comunicado à imprensa alguns pormenores do que tinha acontecido, nomeadamente a composição do líquido do bidão.

Mas, pouco ou nada mais foi feito. Há notícias, porém, de que durante algum tempo, enquanto se aguardava a recuperação das famílias afectadas, o Ministério dos Assuntos Sociais (que era também o da Saúde), com o apoio da Cruz Vermelha levou a cabo um programa de assistência alimentar.

No entanto, nenhum dos entrevistados refere isso. O que ficou na memória foi a solidariedade de particulares e, em particular dos comerciantes de Assomada.

Do governo? “Nada, nada. Na altura foi o hospital e algumas casas comerciais”, diz Lucídio.

Entretanto, as causas do encalhe e posterior alijamento da carga, foram alvo de um inquérito da Direcção Geral de Marinha e Portos. O mestre do navio foi responsabilizado por negligência e “punido disciplinarmente com a multa equivalente a um mês de vencimentos”. Ademais, foi interdito de comandar embarcações de comércio (cabotagem) enquanto não fosse “submetido a reciclagem ou provas de exame para o efeito no centro de Formação Náutica”.

Essa informação consta da resposta do governo, a 8 de Janeiro de 1987, na Assembleia Nacional Popular, a uma interpelação dos deputados Emanuel Pinto, Carlos Albertino Veiga, Carlos Whanon Veiga sobre o estado “do inquérito sobre intoxicação por metanol no Porto de Rincão”.

Na mesma resposta, foi dito que o Instituto de Seguros e Previdência Social também realizou o seu inquérito e que já tinha, naquela data, “efectuado o pagamento do seguro-cascos e despesas” e estava “preparando a documentação necessária para indemnizar a carga”.

“As responsabilidades abrangem apenas os aspectos acabados de referir”, lê-se ainda, na resposta por escrito, que foi lida na referida Sessão legislativa de 8 de Janeiro.

Quanto à responsabilidade para com as pessoas de Rincão? Nada, ou muito pouco.

O governo de então, nessa resposta, garantiu que foram adoptadas “todas as medidas ao seu alcance visando o apoio moral e material dos sobreviventes e familiares e vem mantendo a situação sob controlo, agindo designadamente no sentido de ajudar a comunidade de Rincão a reagir e a reencontrar o seu ritmo de vida normal”.

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Os deputados haviam também questionado se o Governo pensava “tornar públicas as conclusões” do inquérito, ao que o executivo respondeu que não via “razões ponderosas para dar maior divulgação aos factos referenciados”, embora salvaguardando que poderia vir a fazê-lo quando completasse “a recolha os elementos de informação sobre as consequências do incidente”.

Não se sabe que elementos foram recolhidos, se é que foram. O que a população diz é que, depois dos apoios recebidos na altura da tragédia, o Estado não mais quis saber deles.

“Não quiseram saber se ficamos inutilizados, nem medicamento, nem nível de vida... eles preferiram não chegar a nós...”, lamenta João Henrique.

Ignorantes

Ricardo Fidalgo, irmão de Emiliano, e professor universitário tinha dez anos quando a tragédia aconteceu. Estava fora, em Chã de Tanque, onde fora para uma festa e quando regressou já tinham aberto o bidão e as pessoas já tinham bebido.

Há muitos pormenores que de que se esqueceu, perdidos na memória da infância, mas lembra-se bem das perdas que a sua família sofreu. Na família próxima de Emiliano e Ricardo, três pessoas perderam a vida: um tio, uma tia e um primo.

Crianças ficaram órfãs e bastante desamparadas. O tio, por exemplo, que deixou filho menor e a mulher sem rendimentos. Indeminização? Nenhuma.

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Um outro aspecto que marca a lembrança de Ricardo é todo o estigma que se criou à volta da comunidade de Rincão na altura. A narrativa passada de que a culpa da tragédia era responsabilidade da grande ignorância, burrice, da população, como se o Estado não tivesse qualquer ónus nesse acontecimento.

Em 1986, frequentava o ciclo preparatório na Assomada e o bullying era constante.

“Zombavam. Diziam que éramos de uma zona de pessoas ignorantes, gente que bebeu algo que é utilizado para limpar os aviões. Mesmo os professores do ciclo preparatório e do liceu Amílcar Cabral zombavam, e os alunos muito mais. A pressão, a estigmatização era muito forte. Muita gente que não tinha estrutura emocional não resistiu”. Muitos saíram da escola. Ricardo foi o único daquela geração a conseguir terminar o ensino secundário.

Era um facto que a localidade não tinha muito acesso à educação. Aliás, lembra que os professores muitas vezes eram enviados para lá “como castigo”, porque bebiam ou tinham algum problema comportamental ou de obediência. Não havia bons acessos, “as viagens eram desumanas”. Enfim, a população já era uma população “castigada”. Além desse descaso do Estado, no caso em concreto do metanol, teria sido obrigação do Estado emitir celeremente um “alerta, informar a população e fazer a recolha”.

Ora, a recolha dos bidões foi só feita depois, para evitar mais perdas económicos do Estado, critica.

“O Estado tem ónus de culpa e alguma responsabilidade. Estamos num país onde há muitas indeminizações, mas as famílias e as vítimas não foram indemnizadas, os órfãos não foram… não houve nenhum programa de restauração da localidade, nem para se libertarem desse trauma colectivo”, critica. E reitera, não só não se assumiram responsabilidades, como se criou uma narrativa de ignorância que virou zombaria…

“O estado foi completamente negligente”, sublinha Ricardo.

Culpas e incúria

Hoje, quando se chega a Rincão, não é uma aldeia bonita. Há lixo nas bermas e as ruas são uma amálgama desordenada de casas díspares.

Sobressaem, à chegada, o edifício de uma fábrica abandonada onde, ainda na época colonial, se fazia conservação do pescado. “Depois o dono mudou-se para o Maio. Com ele foram também trabalhadores aqui do Rincão”, contam-nos. Na altura do partido único tentou-se revitalizar de alguma maneira o espaço. Agora, há muito que está fechado.

Há também muitas placas da cooperação e projectos nacionais desbotadas e, a complementar o cenário, obras em curso. São obras de requalificação da orla marítima, iniciadas em 2020 que continuam a arrastar-se, para descontentamento da população e que incluem calcetamento em pavê, um miradouro, um ‘fitness park’, aproveitamento de uma piscina natural, quiosques.

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Incluem também a edificação de dois monumentos em memória dos que perderam a vida na tragédia do metanol em Agosto de 1986.

Monumentos ainda por construir, 37 anos depois, numa tragédia onde, apesar da evidente incúria das entidades envolvidas, em particular da ENAPOR, nenhuma entidade foi responsabilizada. Nem a empresa, nem os portos, nem a seguradora, nem o Estado.

Na altura, as pessoas, sem estudos e “com a cabeça fora do lugar” pela aflição dos acontecimentos, nem ponderaram essas questões.

Hoje, mais elucidados, sabem que culpas deveriam ter sido assacadas e as autoridades deveriam ressarcir as vítimas e seus familiares.

“A companhia que vazou, devia assumir a culpa e indemnizar as pessoas que ficaram doentes”, defende Emiliano. As pessoas beberam, mas beberam “enganadas”.

Hoje, porém, esta é uma história passada, quase esquecida, inclusive pela maior parte da população de Rincão. “É uma tragédia que magoa as pessoas, então muitas vezes nós próprios queremos esquecer”, confessa.

“Quem morreu, morreu. Quem sofreu, sofreu. Eu sofri muito”, acrescenta Lucídio Silva.

NR: Outras Fontes: Monografia “A tragédia do metanol na localidade de Rincão” de Arcelino Sousa, Dênis Dias Sanches e Ivaldino Semedo Jorge, 2015, Instituto Universitário de Educação de Assomada. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1134 de 23 de Agosto de 2023.

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Autoria:Sara Almeida e Manuel Brito-Semedo,27 ago 2023 8:23

Editado porJorge Montezinho  em  27 ago 2023 20:44

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