Suspeita de overdose levanta questionamento sobre acesso às drogas

PorEdisângela Tavares,18 fev 2024 9:18

12 jovens do bairro de Calabaceira deram entrada no passado dia 9 no Hospital Universitário Agostinho Neto com um quadro clínico que apontava como suspeita de overdose, alegadamente por cocaína. Embora este tipo de caso não seja recorrente, o incidente levanta questionamentos sobre o “acesso” a substâncias ilícitas entre os jovens.

O consumo de drogas entre os jovens emergiu como um tema de inquietação crescente e levanta questionamentos sobre o acesso indiscriminado a substâncias ilícitas nessa faixa etária. O Expresso das Ilhas apurou que, na capital, existe uma situação de acesso facilitado a estupefacientes, especialmente aos mais jovens.

Jovens entrevistados compartilham experiências destacando a normalização do consumo, a facilidade de obtenção e os riscos associados.

Acesso

Segundo Samila (nome fictício), uma jovem de 16 anos, a compra de drogas não representa um desafio significativo para os jovens.

Em conversa com o Expresso das Ilhas, esta jovem revela que a maioria das pessoas da sua idade conhece os pontos de venda de estupefacientes e não hesita em adquirir substâncias como maconha ou haxixe destacando que o acesso às drogas é tão fácil quanto comprar cigarros, demonstrando a banalização do consumo entre os jovens.

“Não existe constrangimento quando um menor de idade ou um jovem tenta comprar drogas. Eles mesmos vão aos lugares onde se vende e aquirem, a maioria que conheço não faz questão de esconder isso. Tanto drogas como o álcool são fáceis de se conseguir. Hoje, qualquer jovem que quer um “taco de ganza” (um pouco de Marijuana) ou “ioxi” (haxixe) sabe onde comprar. É a mesma facilidade que tem em comprar cigarros. Mesmo sendo menor de idade, é possível comprar cigarros e outras coisas.”

A jovem Samila é estudante de uma das escolas secundárias da cidade da Praia. Como adolescente, ela admite que frequenta bastantes festas e sai muito à noite.

De constituição robusta, aparenta mais idade do que realmente tem, Samila diz que o uso das drogas não é exclusivo de nenhuma comunidade e os jovens estão conscientes das consequências que isso implica.

Outro entrevistado, um jovem de 18 anos identificado como Carlos (nome fictício), corrobora essa visão, destacando que, apesar de ter completado recentemente a maioridade, ainda é estudante do ensino secundário. Ele afirma que a compra de drogas é facilitada pela familiaridade com os pontos de venda, onde muitas vezes é necessário apenas uma indicação ou a presença de alguém conhecido. Carlos enfatiza que muitos vendedores de drogas ilícitas são bem vistos na sociedade, o que contribui para a normalização do consumo.

“De facto, é tranquilo comprar Marijuana ou qualquer outra droga, basta saber quem vende e onde se vende. Em alguns casos precisa ser indicada ou ir com alguém que já é conhecido, mas mesmo sem acompanhante é possível comprar. O que posso dizer é que não podemos julgar as pessoas pelo rosto, muitos que vendem “ioxi” são bem vistos na sociedade, a culpa cai no filho ou num sobrinho que tem envolvimento com algum grupo de jovens delinquentes, mas o verdadeiro comerciante é a pessoa que passa por normal”.

Ao ser questionado sobre o possível acesso de menores com as drogas, Carlos explica que os adolescentes estão cada vez mais envolvidos com substâncias ilegais.

“No liceu é fácil encontrar estudantes a fumar cigarros e outras coisas. Isso não é de hoje. O mal está em pensar que só os delinquentes fazem uso de substâncias ilícitas”.

Autoridades investigam

Em entrevista a uma fonte policial, a questão do acesso às drogas foi abordada, mas, contrariando as versões dos jovens entrevistados nesta reportagem, a nossa fonte indica que não é fácil o acesso às substâncias, mas reconhece que há presença de drogas na sociedade, incluindo entre a população jovem.

A mesma fonte reconhece o fenómeno complexo que é o do combate às drogas, destacando a necessidade de uma abordagem abrangente envolvendo diversas instituições, como escolas e famílias, para a prevenção.

Ao ser questionado sobre o possível envolvimento de crianças como correios para o tráfico de drogas, a fonte preferiu não comentar.

Sobre a suposta overdose dos 12 jovens, fontes policiais ouvidas pelo Expresso das Ilhas explicam que o uso de estupefacientes é uma realidade difícil de combater.

Os jovens que na sexta-feira deram entrada no Hospital Agostinho Neto já estão em casa sem que se tenham registado consequências graves.

Hospital Universitário Agostinho Neto

Os jovens, conforme confirmou a unidade de saúde, já tiveram alta-hospitalar. Segundo a Directora Clínica, Hirondina Spencer, esses jovens apresentavam sintomas de intoxicação por opióides ou uma mistura de drogas conhecida como “barro narcótico”.

A intoxicação por opióides ocorre quando alguém consome uma quantidade excessiva de drogas. Já o «barro narcótico» é uma combinação de diferentes substâncias, incluindo opióides, cujos efeitos podem ser extremamente perigosos devido à incerteza sobre a sua composição.

A Directora Clínica destaca a necessidade de se aprofundar as investigações para se poder avançar à população informações com base científica, e só assim poderá ser ou não confirmada a suspeita de overdose.

“Não se confirma que é overdose. Ninguém disse isso. Chegaram 12 jovens com um quadro de intoxicação, com sintomas clínicos que parecem ser intoxicação por opióides ou barro narcótico, mas precisam de um exame toxicológico para sua confirmação. Se nós não confirmarmos que é overdose, não podemos afirmar. Temos que ter estudos científicos, investigações. Temos que ter um exame toxicológico para poder dizer que é uma overdose”.

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A Directora Clínica do hospital, no etentanto, assegurou que esta “não é uma situação frequente. É a primeira vez que temos um caso assim, mas nós não vamos dizer que é overdose”.

Reacções

A Juventude do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (JPAI) expressou profunda preocupação com a crescente epidemia de consumo de drogas entre os jovens cabo-verdianos.

Em conferência de imprensa, no último dia 12, o presidente do JPAI, Fidel de Pina, falou sobre o incidente envolvendo os doze jovens do bairro de Calabaceira que foram hospitalizados, supostamente, devido ao uso excessivo de cocaína, alguns em estado grave.

A JPAI destaca a gravidade da situação, ressaltando que tais drogas não são produzidas localmente, enfatizando a urgência de esclarecimentos pelas autoridades.

O comunicado destaca ainda a fácil acessibilidade a substâncias adulteradas, resultando em riscos sérios à saúde e potenciais fatalidades.

A JPAI relatou que o aumento do consumo de drogas entre a juventude, especialmente nas periferias urbanas. Tem-se revelado cada vez mais preocupante. Além disso, Fidel de Pina destacou a ligação entre o consumo de drogas, criminalidade, violência e delinquência juvenil, sublinhando a necessidade de reformas profundas para enfrentar esses problemas.

A Juventude para a Democracia (JpD), contactada pelo Expressodas Ilhas, lamentou o sucedido com os 12 jovens do bairro de Calabaceira e explicou que o consumo de drogas entre os jovens está vinculado a factores psicológicos, como a necessidade de pertencimento a grupos.

“A JpD apela à responsabilidade individual de cada jovem para que possa estar mais vigilante e recusar veementemente o consumo. Também apela às famílias para prestarem mais atenção aos comportamentos dos seus filhos ou educandos que podem ser indicativos de desvio de comportamento ou de algum problema psicológico. Devemos estar atentos aos pequenos sinais, como o isolamento ou problemas de autoconfiança, que podem levar o jovem a refugiar-se nas drogas para fugir aos problemas ou simplesmente para se sentir aceite pelo grupo”, apelou o presidente da JpD Vander Gomes.

Vander Gomes apelou ainda ao empenho por parte do Estado, utilizando todos os meios necessários para um combate sem tréguas à droga no país, cientes da condição arquipelágica do país, o que complica o controlo mais efectivo da entrada de substâncias nas ilhas.

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Drogas com oferta crescente

A oferta crescente de drogas ilícitas e a actuação ágil das redes de tráfico estão agravando crises globais e desafiando os serviços de saúde e as forças de aplicação da lei, conforme indica o Relatório Mundial sobre Drogas 2023 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), informa que dados mais recentes, referentes a 2021, revelam um aumento significativo no consumo de drogas e nos transtornos associados ao seu uso. Estima-se que 296 milhões de pessoas tenham usado drogas em 2021, um aumento de 23% em relação à década anterior. Além disso, o número de pessoas que sofrem de transtornos associados ao uso de drogas subiu para 39,5 milhões, um aumento de 45% em 10 anos. A intoxicação por opióides ou “barro narcótico” foi relatada como uma preocupação, destacando os perigos associados ao uso dessas substâncias.

A população jovem é particularmente vulnerável ao uso de drogas e aos transtornos associados a elas. Na África, por exemplo, 70% das pessoas em tratamento têm menos de 35 anos. Essa tendência é preocupante e exige acções prioritárias em saúde pública, prevenção e acesso a serviços de tratamento em todo o mundo.

O Relatório destaca ainda a necessidade de respostas eficazes das forças policiais para lidar com os desafios relacionados às drogas, incluindo a expansão do tráfico de drogas sintéticas e o surgimento de novos modelos de negócios criminosos.

Diante dessas constatações, a diretora-executiva do UNODC, Ghada Waly, ressaltou a importância de se intensificar as respostas aos problemas relacionados às drogas e garantir que o tratamento adequado seja acessível a todos quantos precisam dele. A saúde pública deve ser priorizada em todo o mundo, especialmente diante dos desafios cada vez maiores causados pelo uso e tráfico de drogas ilícitas. *com Sheilla Rebeiro e André Amaral

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1159 de 14 de Fevereiro de 2024.

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Autoria:Edisângela Tavares,18 fev 2024 9:18

Editado porEdisângela Tavares  em  4 jun 2024 10:30

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