Glaucoma, trilhando um túnel silencioso

PorSara Almeida,16 mar 2024 8:13

O glaucoma é uma das principais causas de cegueira irreversível no mundo inteiro e Cabo Verde não é excepção. Embora não tenha cura, não é, porém, uma sentença: desde que diagnosticada a tempo, tem tratamento e a perda de visão pode ser adiada durante muitos, muitos anos.

No dia 12 de Março comemorou-se o Dia Internacional do Glaucoma, que pretende, precisamente, sensibilizar para o diagnóstico precoce e acompanhamento desta doença silenciosa. A oftalmologista Isabel Tavares fala-nos da doença, da necessidade de mais conscientização e do cenário vivido em Cabo Verde.

Todos os dias, de manhã e à noite Manuel, 65 anos, coloca “gotas” nos olhos. Precisa delas para lhe aliviar a pressão ocular, que já lhe causou a perda quase completa da visão no olho direito, e evitar que o cenário se torne mais negro também no olho que ainda está “bom”.

Praticamente toda a sua família padece do mesmo mal: glaucoma. Uma tia avó morreu cega, embora na altura não se soubesse ao certo devido a que doença. “Pensava-se que teria sido catarata”, conta Manuel. O mais provável, sabe-se agora, é que fosse também glaucoma. A mãe de Manuel também quase cegou. Terá valido uma operação no estrangeiro para lhe salvar, ou melhor, retardar a perda total da visão, durante mais uns anos. Quando faleceu, já nada via de um dos olhos, mas manteve alguma visão no outro.

Hoje, todos os irmãos de Manuel fazem tratamento e seguimento desta doença, de forte pendor genético.

Glaucoma

O glaucoma é a terceira causa da cegueira em todo o mundo, e, em vários países, a principal no que toca à cegueira irreversível e, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), afecta entre 1% e 2% da população com mais de 40 anos de idade em todo o mundo.

Em Cabo Verde não há estatísticas trabalhadas que permitam aferir qual a percentagem concreta da população que padece desta doença ocular, acredita-se que o panorama seja semelhante aos outros países.

Mas então o que é o glaucoma? Em termos gerais, pode este ser definido como uma afectação do nervo óptico, causada pelo aumento da pressão intraocular. É uma doença que causa uma perda progressiva da visão e cegueira irreversível quando não tratada adequada e precocemente. Ou seja, quando não se evita que o nervo óptico, que é responsável por transmitir informações visuais do olho para o cérebro, seja totalmente “desconectado”. O final é a perda permanente da visão. Sem retrocesso.

Geralmente, esses danos no nervo óptico levam a uma perda gradual do campo visual, começando pelas áreas periféricas e avançando, à medida que a doença progride, para a visão central.

Isto de uma forma generalista, pois aquilo que se chama de glaucoma é na verdade um grupo de doenças oculares, com vários tipos.

O glaucoma é dividido em glaucoma primário (congénito) ou secundário (causado por traumas ou outras causas não congénitas), e em glaucoma de ângulo aberto e glaucoma de ângulo fechado.

O glaucoma de ângulo aberto é o tipo mais comum. Nesse caso, o olho não consegue drenar o fluido aquoso, o que resulta num acumulo gradual e em aumento da pressão intraocular. Essa pressão elevada pode prejudicar o nervo óptico ao longo do tempo, levando à perda de visão.

No glaucoma de ângulo fechado, a íris bloqueia a drenagem do líquido no olho, o que pode ocorrer de forma aguda. Isso leva a um aumento súbito da pressão, causando sintomas como dor intensa nos olhos, visão embaçada e halos ao redor das luzes. Essa condição é mais rara, mas requer atendimento médico de emergência.

Silencioso

Uma boa parte dos doentes nem sequer sabe que tem glaucoma. Isto porque, por exemplo, o glaucoma mais comum (glaucoma primário de ângulo aberto), “é silencioso”, não dá sinais.

“É aquele glaucoma que é diagnosticado porque o médico faz uma fundoscopia, nota alteração no nervo óptico e mede a pressão intra-ocular e está elevada”, explica a oftalmologista Isabel Tavares.

Muitos pacientes, inclusive, quando descobrem que têm glaucoma, ficam incrédulos, até chateados, com o diagnóstico. Argumentam que nunca sentiram nada nem ninguém nunca lhes disse tal coisa. Mas quando o oftalmologista questiona sobre o histórico familiar, perguntando se há algum parente que tenha a condição, que coloque colírio ou que tenha morrido cego, muitas vezes a resposta é afirmativa.

Entretanto, apesar de não haver dor, vermelhão ou outros sintomas imediatos, à medida que a doença avança, começam-se a notar algumas alterações no campo visual. Na consulta, relatam então situações em que a sua visão periférica se mostra deficitária. Notam-no ao conduzir, por exemplo, ou quando, no dia-a-dia, chocam com algum objecto. Notam-no, enfim, em vários momentos e dão por si a voltar a cabeça para ver algo que já só aparece nesse ângulo directo.

E, no entanto, de salvaguardar que os glaucomas de ângulo fechado, como referido, possuem sintomas emergenciais como dor aguda e vermelhidão.

Dependendo do tipo de glaucoma há também outros sinais. Um exemplo dado por Isabel Tavares são os casos de glaucoma congénito. Quando um bebé nasce com essa condição, tal pode não ser imediatamente perceptível, mas algumas características são distintivas. O olho pode aparecer completamente azulado desde o nascimento, às vezes com a córnea parecendo branca, e o tamanho do olho pode ser anormalmente grande. Posteriormente a mãe pode notar que o bebé está constantemente a chorar ou lacrimejando muito. Por outro lado, pode acontecer que a mãe só perceba algo errado quando a criança esta começa a andar e demonstra dificuldade em enxergar, caindo frequentemente ou batendo em objectos.

Enfim, tal como há vários tipos de glaucoma, há também sinais distintos nas, geralmente, silenciosas fases iniciais da maior parte dos glaucomas. Em todos eles, porém, a certa altura o paciente sente a “visão afunilada” (visão tubular), uma expressão muitas vezes usada para descrever o glaucoma, na sua fase crónica.

Diagnóstico tardio

Apesar dos problemas de visão que afligiam toda a sua família, Manuel nunca se preocupou muito. Foi primeira vez ao oftalmologista quando tinha uns 20 anos, porque começou a ter alguns problemas de visão. Algo que se corrigiu com uma receita de óculos. Depois, passou a trocar de óculos geralmente sem consulta médica. E quando as fazia, era só para aferir dioptrias.

Desleixou-se, reconhece. Mesmo quando começou a sentir que perdia a visão do olho direito, demorou a procurar ajuda clínica. Assim, quando, há alguns anos foi ao médico para uma consulta mais elaborada, já era bastante tarde. Fez vários testes, campimetria e outros. Uma vista estava basicamente “perdida”. Porém, graças ao tratamento, está a conseguir poupar a outra.

O glaucoma, embora não tenha cura, é, pois, tratável. Mas, como acima referido e como mostra o testemunho de Manuel, o glaucoma é uma doença que, nos seus tipos mais comuns, não apresenta sintomas nas fases iniciais. Assim, muitos pacientes só vão ao médico quando a doença está avançada.

Em Cabo Verde, o diagnóstico tardio é, na verdade, um problema grave, que tem raiz em vários aspectos.

Não há, lamenta Isabel Tavares, o hábito de fazer consultas rotineiras. Além disso, sendo um país arquipelágico, e com poucos oftalmologistas para cobrir toda a população, o acesso a estas consultas também não é tão facilitado com se gostaria, e, da parte do próprio médico, torna-se difícil manter um controlo sistemático dos pacientes.

Assiste-se também a um fenómeno que, aliás, se debate em todo o mundo, que é o de as pessoas apenas realizarem consultas de optometria, nas lojas, para comprar os óculos, sem nunca passar pelo oftalmologista.

Ora, os óculos melhoram a visão, mas não tratam o glaucoma. “A tensão ocular está lá, a aumentar todos os dias e o tempo vai passando. Ora, o tempo é muito importante no glaucoma.”, sublinha a médica.

E muitos, muitos são os casos que chegam ao oftalmologista e nada mais resta ao médico dizer do que:” infelizmente, vai ficar cego”.

Assim, a oftalmologista apela a que “façam uma consulta de oftalmologia especializada com o médico oftalmologista, para ver se tiver algum factor de risco ou não, e mantenham a sua consulta de controlo anual sempre”.

Com tratamento, reitera, essa cegueira é atrasada muitos anos. Eventualmente, a perda total da visão nem chegará até ao fim da vida da pessoa.

“Glaucoma leva à cegueira na maioria dos casos. Mas, ela não diz quando é que te vai deixar cego”, resume. “

Então, o importante é fazer o controlo a tempo para evitar que essa cegueira avance.

Factores de risco

Manuel é fumador. “Acho que o fumo deve ter sido uma das causas da minha perda de visão no olho direito, pois tenho tendência para expirar o fumo do cigarro por este lado”, conta. Embora esta sua suposição não tenha sido validada clinicamente, sabe-se que, tal como em tantas outras doenças, o facto de ser fumante é um factor de risco para o glaucoma.

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Aliás, tabaco, álcool e todos os outros factores que são considerados de risco para quase todas as doenças, são-no também para o glaucoma.

Por exemplo, embora a hipertensão ocular, em si, seja algo diferente da Hipertensão Arterial, esta última é, aponta a oftalmologista Isabel Tavares, um factor de risco importante. “Uma pessoa que é hipertensa tem uma taxa elevadíssima de vir apresentar um glaucoma, de ângulo aberto ou ângulo fechado”, diz. De igual modo, um paciente com diabetes também tem um maior risco de desenvolver glaucoma.

Um outro factor, muito destacado em Cabo Verde é o sol. Há, nomeadamente um elevado número de pescadores que acaba por padecer desta doença devido ao prolongado tempo de exposição ao sol forte, quando estão no mar. Assim, é recomendado a toda a gente o uso de óculos de sol adequados.

O glaucoma é um grupo de doenças oculares que provoca danos irreparáveis no nervo óptico – o nervo que transmite as informações visuais do olho para o cérebro

Outros factores ambientais, como a bruma seca que muitas vezes cobre o arquipélago, também constituem elementos que propiciam o aparecimento de glaucomas.

Ademais, o facto do cabo-verdiano ser “uma raça negra”, mais predisposta para o glaucoma primário de ângulo aberto, é um factor genético que também se repercute nas estatísticas da doença. “Falamos da raça negra, mas também temos mestiçagem, uma mistura que faz com que esses factores nos afectem muito“.

A acrescentar ainda o já referido, o histórico familiar, ou seja, o facto de haver familiares que padeçam da mesma doença.

Outros factores de risco são espessura da córnea diminuída, sensibilidade a medicamentos com corticóides e miopia.

A velhice, como em tudo, também aqui é um factor de risco. Embora certos tipos de glaucoma possam ocorrer em qualquer idade, inclusive há crianças que já nascem com a doença (glaucoma congénito), o mais comum é que ocorram em idades mais avançadas, a partir dos 50-55 anos.

“O protocolo que eu, por exemplo, sigo com aos meus pacientes é fazer rastreio a todos a partir dos 50. É obrigatório. Com essa idade já peço exames de campo visual, nomeadamente. Outros médicos, fazem apenas a partir dos 55. No entanto, se o paciente tem um familiar que tem glaucoma, tenha que idade tiver, tem sempre que fazer o rastreio, inclusive crianças e jovens. Nesses casos, é crucial realizar o rastreio desde cedo e de forma regular, pois o glaucoma pode ou não se manifestar”, explica a médica.

Tratamento

Quanto ao tratamento do glaucoma, este é, numa primeira fase, um tratamento farmacológico. O paciente coloca os colírios para manter a pressão intraocular no nível normal, de modo a evitar o sofrimento sistemático do nervo. Além das gotas, este tratamento pode ser também feito com compridos, em momentos de urgência ou até com injecções.

Outra fase, caso falhe o tratamento farmacológico no glaucoma agudo, é o tratamento imediato com [cirurgia a] laser.

Quando falham essas “fases”, é realizada a cirurgia [convencional]. Esta é feita, completa a oftalmologista, quando “o médico não consegue controlar e melhorar a pressão, e o nervo óptico está a apresentar danos muito rápidos e seguidos”.

Em Cabo Verde praticam-se todas as fases de tratamento, contudo, a nível da cirurgia, apenas de se realiza a trabeculotomia, que é uma cirurgia relativamente pouco sofisticada. Para intervenções mais elaboradas, que requerem maior especialização e melhores equipamentos, é necessária a evacuação.

É o caso, nomeadamente, de duas crianças seguidas pela médica, a quem foi diagnosticado glaucoma congénito. As crianças foram evacuadas para Portugal pois no país “não conseguimos fazer esse tratamento cirúrgico”, até porque é necessária uma equipa especializada em intervenção pediátrica, o que não existe em Cabo Verde.

Mas o mais importante a reter, e é essa a intenção do Dia Internacional do Glaucoma, é que seja seguido o seguinte mantra: detenção precoce e tratamento adequado.

“E que não esquecer que devem sempre procurar um médico oftalmologista para uma consulta”, acrescenta a médica. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,16 mar 2024 8:13

Editado porFretson Rocha  em  16 mar 2024 14:26

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