Valor das operações suspeitas rondou os 8 mil milhões de escudos em 2023

PorSara Almeida,15 jun 2024 6:25

Apesar de ser um mercado económico e financeiro diminuto, Cabo Verde, como qualquer outro país, não está imune à lavagem de capitais (LC) e ao financiamento do terrorismo (FT). Existem, e “em situações que nem imaginávamos”. Com um combate que se quer cada vez mais eficaz, sofisticado e alargado, o director-geral da UIF fala dos desafios e avanços do país nessa matéria.

Daniel Alves Monteiro refere ainda os próximos passos que se pretende dar na Inteligência Financeira e na compreensão e luta contra estes fenómenos, aparentemente distantes e abstractos, mas que impactam o desenvolvimento do país e a vida de todos os seus cidadãos.

Assumiu a direcção geral da UIF em Dezembro de 2022. Quais têm sido as prioridades do seu mandato?

As prioridades incluem o reforço da UIF, que é fundamental devido às exigências quase quotidianas de intervenção. Há uma necessidade urgente de fortalecer o quadro de pessoal, aumentando o número de funcionários e desenhando um quadro de carreira adequado. São instruções internacionais, tal como os órgãos do sistema de justiça, os tribunais e o Ministério Público, entidades como a UIF devem ter um tratamento particular em relação ao seu estatuto. Essa é uma das prioridades em que estamos a trabalhar. Quando cheguei, encontrei já um pacote legislativo elaborado para fazer essas actualizações. Além disso, queremos que a UIF tenha um impacto maior, tanto no sistema preventivo quanto no repressivo, melhorando a quantidade e a qualidade da inteligência financeira que produz. A UIF é muito importante, pois é a única instituição especificamente desenhada e estruturada para realizar inteligência financeira. O exercício da UIF e os inputs que ela fornece, a nível de inteligência financeira, ao sistema judiciário e ao próprio sistema, seja social ou financeiro, sãoo muito importantes. A UIF precisa dar constantemente inputs fornecendo relatórios de inteligência financeira detalhados, baseados na análise operacional das comunicações recebidas, e comunicando suspeitas confirmadas ao Ministério Público para investigação. Além disso, fazemos análises estratégicas, estudando constantemente o sistema financeiro e as movimentações das operações financeiras para alertar sobre possíveis irregularidades. Então, o relatório operacional e o relatório estratégico, são duas vertentes prioritárias e queremos melhorar. Queremos, também, maior impacto a nível social, com uma outra intervenção na vertente da disseminação da existência destes fenómenos à sociedade. Muitas vezes, a sociedade não sente directamente os impactos destes fenómenos. Por exemplo, quem tem dinheiro no sistema financeiro pode não perceber o problema desde que o seu dinheiro seja movimentado. Portanto, é essencial trabalharmos efectivamente com a sociedade civil para aumentar a conscientização sobre esses aspectos.

O último relatório de avaliação mútua, publicado em 2019, aponta várias fragilidades, principalmente no terreno. Como é que Cabo Verde tem atacado a ineficiência que foi diagnosticada?

Só para fazer um enquadramento e percebemos o porquê dessa leitura. Os sistemas nacionais devem priorizar dois aspectos no tratamento da LC/FT: conformidade e eficácia. A conformidade refere-se ao desenho do sistema legal e legislativo, que deve incluir leis específicas para designar, regular e punir essas actividades. A nível da conformidade, desde 2019, o país está até muito bem classificado. No cômputo dos Estados da CEDEAO e Estados que não são da Comunidade, mas fazem parte do GIABA - União das Comores e São Tomé e Príncipe - , ocupa o 2.º posto, com milésimos de pontos de diferença em relação ao Gana, o 1.º classificado. A nível da eficácia, praticamente todos os Estados do GIABA deixam muito a desejar, com avaliações que indicam baixa eficácia. Isto, porque é exigido que o país demonstre que a parte da conformidade que foi estabelecida está a ter impacto. Tudo o que o Estado faz deve ser registado e comprovado, como em um julgamento. Durante as avaliações, é então necessário provar com evidências concretas, não apenas afirmar que algo foi feito, e Cabo Verde teve dificuldades em demonstrar com evidências que estava bem nesse aspecto. Se analisarmos “de cabeça”, não vemos grandes problemas no sistema cabo-verdiano em termos de LC/FT. No entanto, a incapacidade de o provar faz toda a diferença e é um problema comum a todos os países da CEDEAO: a capacidade de registar, demonstrar, avaliar e medir as suas acções. Falha-nos a todos. Mas, temos estado a dar passos enormes, depois dessa avaliação. Em relação à conformidade muito foi feito. Por exemplo, agora temos uma estratégia nacional e uma comissão interministerial de coordenação, que antes não existiam. Também implementamos legislação sobre activos virtuais, com a previsão dos bancos digitais. Na eficácia também melhoramos muito. Por exemplo, fazemos recolha de dados estatísticos específicos quando é necessário para podermos ter evidências no futuro.

Também diziam Avaliação Nacional de Risco (ANR) era frágil…

Estávamos a dar os primeiros passos. Na altura terá sido usada uma ferramenta do Banco Mundial que tem formas específicas, exigentes. Actualmente, estamos a fazer nova ANR sectorial e sentimos essa exigência de termos dados a este nível. Então, na altura, o que se detectou é que a ANR possui uma caracterização específica que pode não coincidir com a avaliação mútua posterior. Portanto, é necessário iniciar as ANR identificando e estudando a ferramenta adequada para alimentar [os dados] da melhor forma, e evitar esse tipo de avaliação.

Estamos a trabalhar nisto. Tivemos assistência técnica e financiamento do GIABA, que fez um seminário dedicado a essa parte da ferramenta. Logo a seguir foi feito um seminário regional com outros Estados para garantir uma compreensão adequada. Porque se não se entender bem a ferramenta, tudo vai falhar.

E quanto à troca de informações? A avaliação Mútua apontava que não há um sistema de troca de informações financeiras, incluindo com a PJ, e que a UIT recebe poucas informações relevantes para as investigações BC/FT?

Temos tido apoio, principalmente do Reino Unido, a nível de eficácia. Seminários foram realizados para focar em resultados imediatos, especialmente em implementar políticas e medidas conforme as leis existentes. Ou seja, a melhor implementação daquela conformidade [de que falamos] para que de facto tenha impacto. Estamos a trabalhar em projectos específicos para fortalecer a capacidade das entidades não financeiras para implementarem as medidas que são previstas na lei. A lei diz, por exemplo, que o organismo tem que ter políticas e medidas de políticas, manuais de procedimentos, regulamentos internos para fiscalização e controle de vários aspectos e todos temos de dar esse salto. Estamos a desenvolver políticas internas, manuais de procedimentos e regulamentos necessários. Em colaboração com o Banco Central, iremos lançar um projeto para apoiar essas entidades, incluindo painéis de supervisão para garantir a aplicação prática das normas. Estamos progredindo a avançar nesse sentido.

No que diz respeito à PJ, este é um ponto detectado na nossa avaliação, mas também um ponto que as autoridades mundiais estão a exigir. Ou seja, neste momento, produzimos a inteligência financeira e esta só vai para o Ministério Público. A recomendação actualizada é não pode ir só para o MP, se não é um sistema ineficaz. Por exemplo, no caso da evasão fiscal, [neste momento] não podemos simplesmente enviar os relatórios para a autoridade tributária ou outras entidades como o BCV. O sigilo bancário e outras restrições impedem a disseminação dessas informações. É o sigilo bancário também que proíbe de tomar o relatório da UIF, a inteligência financeira, como prova pericial imediata. A nossa proposta legislativa visa resolver essas limitações, permitindo que a UIF identifique onde as suas informações podem ser melhor utilizadas. A configuração constitucional de Cabo Verde limita a capacidade de enviar directamente para a Polícia Judiciária, que depende da autorização do Ministério Público para abrir investigações criminais. Essas restrições são reconhecidas como uma deficiência que estamos a abordar na revisão da legislação da UIF para tornar o sistema mais eficaz e ágil.

Entretanto, estamos agora a tratar da questão tecnológica na UIF, com suporte das Nações Unidas, para implementar uma plataforma sofisticada focada em LC. Esta plataforma integra comunicação automática, análise financeira avançada e disseminação de relatórios para o MP e outras entidades. A sua implementação é custosa e técnica, mas o objetivo é fortalecer a produção de inteligência financeira para que os relatórios da UIF sejam decisivos em investigações, incluindo na recuperação de activos ilícitos. É essencial demonstrar o impacto dessas ações, especialmente no confisco e recuperação de activos, aspectos cruciais para combater a LC e garantir eficácia nos processos judiciais. O que se está a exigir é que os organismos que fazem a investigação tenham capacidade de, em vários crimes, poder verificar a LC. Ou seja, em uma denúncia que aconteceu sob outra via, uma operação de droga que foi feita, poderem também ter capacidade de detectar, analisar, verificar e acusar pela LC e ao nível também dos julgamentos poderem garantir a recuperação dos activos. É fundamental recuperar os activos que foram produzidos ou que estão a ser movimentados de forma ilegal. Por isso que há muita insistência para os países terem um departamento de recuperação de activos.

Cabo Verde tem?

Tem há mais de 10 anos. Temos um bom sistema de recuperação de activos que está na PJ e onde fazem também análises financeiras e patrimoniais. Além disso, existe um gabinete dedicado à administração de bens. Recentemente, compartilhamos a nossa legislação e expertise com a UIF da Costa do Marfim, que está a instituir agora uma agência de recuperação de activos. Isso destaca nossa posição avançada em termos de conformidade legal e cooperação internacional, fortalecida por diversas parcerias, incluindo com a União Europeia.

E quanto ao quadro legal de Cabo Verde em matéria LBC/CFT?

É um bom quadro. A nossa legislação contém opções que, em alguns casos, mesmo a nível mundial não houve grande coragem de se tomar, como no caso do confisco e está alinhado com padrões internacionais mais avançados. As recomendações e interpretações das recomendações são actualizadas regularmente para acompanhar o dinamismo das próprias práticas ilícitas. O país tem de readaptar-se continuamente às novas práticas, sendo que é importante fortalecer as competências da UIF, dando-lhe, por exemplo, iniciativa de abrir um processo de averiguação interna, independentemente da comunicação de operação suspeita (COS).

Neste momento não pode?

Não. Tem que receber a COS. No início, o sistema internacional não tinha grande necessidade de lidar com situações de LBC devido à escala limitada desses crimes e ao tamanho reduzido do sistema financeiro bancário. Hoje, com o crescimento significativo de práticas comerciais, com o boom imobiliário, todos os países estão a ser exortados a darem esse salto. Isso inclui atribuir mais competências às UIF, não apenas para combater LC/FT, mas também para lidar com crimes cibernéticos. Actualmente, há um movimento para transformar as UIF em verdadeiros centros de inteligência financeira. Todos os países estão a ir nessa direcção, e a nossa proposta legislativa também já vai neste sentido.

E o Plano Estratégico, de Fevereiro de 2023, o que traz de novo?

A Estratégia Nacional é uma recomendações do Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI), e visa obrigar os países a terem ideia clara daquilo que é necessário. O princípio fundamental, no qual o GAFI, GIABA e outros organismos regionais insistem, é a abordagem baseada no risco. Ou seja, é fundamental entender o risco específico do país e da região para desenhar a legislação adequada, os organismos necessárias e seu funcionamento, e os instrumentos. A abordagem do risco é dos principais, se não o principal princípio e regra de todo o sistema nacional de prevenção e combate. Isto porque se percebeu que durante muitos anos os países estavam a dar grandes passos na legislação e na montagem do sistema, mas tal não estava a ter impacto. O que a Estratégia Nacional faz é, com base nas avaliações mútuas e de risco, congregar em um único documento as deficiências e recomendações. A nossa Estratégia é baseada na avaliação mútua de 2019 e actualizações subsequentes, e ajusta-se às novas recomendações para priorizar as prioridades de actuação do país.

Já referiu que estamos bem no quadro legal. Mas quais são os grandes problemas ou desafios na LC / FT?

Essa questão da transformação da UIF. Os países têm de ter, como está nas 40 recomendações do GAFI, um organismo que possa cuidar do sistema, mas também verificando operações internas e internacionais que depois se conectem com o país em concreto. Então, impõe a questão a centralidade da UIF, permitindo a produção de relatórios de alta qualidade com o suporte de ferramentas tecnológicas avançadas para análise de dados. Com o aumento das transações financeiras, incluindo bancárias e não bancárias como nos Correios, há uma necessidade urgente de processar informações rapidamente antes que elas desapareçam. As transacções, o dinheiro, num segundo desaparecem. Então, temos que ter também essa capacidade tecnológica de responder. A nível do próprio sistema nacional, a integração e engajamento dos organismos que lidam com transacções financeiras. Esse é um dos pontos que nós temos estado a trabalhar, que também está identificado na nossa avaliação mutua. Antigamente eram apenas as instituições financeiras, bancárias, hoje não. Hoje migra-se cada vez mais para as instituições e actividades de instituições não financeiras para estas práticas, porque o sistema financeiro está cada vez mais apetrechado, é muito mais controlado. Então, o aumento, a introdução das actividades e profissões não-financeiras designadas (APNFDs) é um desafio enorme para Cabo Verde e outros países, pois essas actividades são reconhecidas como potenciais alvos para práticas ilícitas. Mas, temos estado a ter muito bons resultados. Vamos ter um encontro nacional com todas as entidades, designadas e não designadas, para apresentar um projecto de assistência técnica da UIF para esses sectores, mas também para os apoiar na implementação de medidas internas preventivas, os países têm que adoptar.

E como é que tem sido a relação com as outras entidades do sistema?

O relacionamento, por acaso, é muito bom. A UIF é central, mas não existe sem as outras entidades. O nosso trabalho, por exemplo, a nível da análise financeira depende das comunicações dos bancos, entidades financeiras e não financeiras, com quem mantemos constante comunicação. Esta colaboração é não apenas uma exigência, mas uma recomendação internacional para fortalecer a cooperação nacional. Hoje, temos também a Comissão interministerial que inclui mais dez instituições - entidades independentes, polícia, serviços judiciários, ordens profissionais, entre outros – o que facilita a cooperação. Temos, mensalmente, a reunião do comité executivo da comissão interministerial, que engloba vários desses organismos e temos trimestralmente as reuniões da Comissão, então, todas essas entidades estão em conversação constante. Temos protocolos com praticamente todas elas, quer dos sectores concretos, no âmbito do sistema de prevenção de combate de risco, quer em sectores que não estão integrados no sistema, mas que poderão ser úteis, como as universidades ou os órgãos de comunicação social.

E em relação ao Ministério Público como é que tem funcionado com essas autoridades?

Perfeitamente. Com a UIF é quase impossível não funcionar porque nós, confirmando as suspeitas, produzimos o relatório de inteligência financeira para enviar ao sistema investigativo. É uma relação que não há como não existir. Produzimos essa inteligência financeira para alertar e ajudar o sistema, integrar o sistema financeiro e a conformidade das instituições. No entanto, o foco principal é que essa inteligência resulte em processos investigativos, sendo um meio eficaz de combate.

Mas quem faz a investigação é o Ministério Público?

É. A UIF faz só análise financeira. Recebemos as comunicações de operação suspeita (COS) e vamos buscar todas as outras informações necessárias. Por exemplo, se um banco envia a COS, vamos a todos os outros bancos, a todos os outros sectores financeiros para obter informação.

Também recorremos ao sector patrimonial, como registos, e às polícias para verificar a existência de processos.

Isso não é investigação?

A lei chama-lhe averiguação. No entanto, o nosso foco não é detectar a criminalidade concreta para acusação, mas sim confirmar e detectar suspeitas. Posteriormente, o MP possui outras ferramentas para verificar se o crime se confirma.

A UIF é a informação…

O termo em inglês é de inteligência financeira. Nós, inclusive, queremos fazer essa alteração. O que fazemos é o cruzamento de informações e dados múltiplos para produzir uma análise detalhada. O objectivo é que isso evolua para a produção de perícias em termos de prova, e isto está previsto na alteração legislativa. Actualmente, produzimos essa perícia em resposta a uma COS, funcionando como um laboratório pericial na análise financeira. O MP também pode solicitar ao UIF a realização de uma determinada perícia financeira, e nós realizamos essa tarefa. O salto que tem de se dar que nossos relatórios sejam reconhecidos como prova pericial no processo. Mas, por enquanto, o nosso papel é analisar e confirmar as suspeitas para o MP, que então realiza o trabalho investigativo para confirmar a existência do crime e identificar seus agentes. Nosso foco não é a detecção inicial do crime, mas sim confirmar ou refutar as COS recebidas sobre determinadas entidades.

Como tem sido a evolução da COS? Sei que houve um boom de COS em 2012 mas depois caíram…

Isso tem justificação. A UIF nasceu como um departamento dentro do Banco de Cabo Verde. A partir de 2012, com nova legislação, que reconfigurou toda a UIF, e que resultou também da avaliação mútua de 2007, houve um grande impacto. Essa reconfiguração trouxe alívio para o sistema, com a criação de uma instituição autónoma, dotada de novas capacidades e ferramentas. A UIF apresentou-se então ao sistema financeiro, afirmando sua presença e capacidade de produção de inteligência financeira. Esse boom de 2012 foi, pois, devido à nova configuração da UIF. Naturalmente, nos anos seguintes, houve uma redução gradual no volume de COS, pois foi realizado um trabalho de conscientização e disseminação de melhor informação sobre o que é LC/FT. Até então, não havia uma grande compreensão sobre esses temas, e os relatórios da época indicam essa falta de entendimento específico. Um aspecto que é tido em conta nas avaliações é o número de COS. Se forem muitas, isso pode ser visto como um indicativo de baixa qualidade das mesmas. Isso ocorre porque esta é uma área muito específica e rigorosa, onde nem todas as COS se referem à lavagem de dinheiro. Na maioria dos casos, a lavagem está relacionada a crimes precedentes, sendo necessário partir desses crimes para identificar a lavagem de dinheiro. Então, são apenas alguns casos. Por outro lado, se há poucas COS, alguma coisa também não está certa. É por isso que a abordagem do risco teve que vir sendo implementada. A partir de 2012, foi-se fazer um trabalho formativo concreto, nas ilhas, com todos os bancos a dar formação, para preparar o nível da compreensão sobre LC. Isso ajudou a desenvolver a consciência de que LC/FT são áreas muito específicas e concretas. Muitas COS que inicialmente eram feitas não se referiam à LC, mas sim a crimes que deveriam ser encaminhados ao MP ou à Polícia PJ, em vez de à UIF.

Mas qual é a média de COS, actualmente?

No ano passado, foram 101 COS; em 2022, 107; em 2021, 115…

É bastante para um país como Cabo Verde?

É bastante. Como mencionei, se olharmos para o país em números exagerados, percebemos que muitas são COS de operações bancárias e financeiras entre entidades estrangeiras, passando por Cabo Verde devido à presença de bancos correspondentes. Dizemos que não há LC, mas, na verdade, vai havendo. E em situações que nem imaginávamos, nem tínhamos capacidade de detectar. Mas o que estamos a fazer agora é ser mais rigorosos nas exigências. Um dos projectos é actualizar o formulário de COS de modo a reduzir as comunicações que não estão relacionadas à LC. Acredito que, com isso, o número de comunicações irá diminuir.

Dessas COS, quantas é que têm sido, em média, encaminhadas para o Ministério Público?

Não são todas. Em cada COS há multiplicidade de informações envolvidas. Por exemplo, vamos buscar informações em todos os bancos e são muitos documentos, vamos aos registos, às polícias, à Interpol – pedimos cooperação internacional. Ou seja, são muitas informações. É por isso que falo da necessidade de reforçar tanto o quadro de pessoal quanto a capacidade tecnológica. Queremos aproveitar a inteligência financeira para tal. É quase impossível respondermos a todas as COS, há muitas são muito exigentes, que envolvem operações complexas e de grande escala, muitas vezes na ordem dos milhões. No ano passado, por exemplo, só em COS, o valor ronda os 8 mil milhões de escudos. Ou seja, operações que os bancos e as entidades não financeiras suspeitaram que não eram lícitas. Ao MP, enviamos oito ou nove relatórios finais, correspondentes a 32 COS confirmadas como suspeitas. Muitas delas, como há uma conexão, juntamos o processo e produzimos uma única inteligência, um único relatório.

E que fenómenos criminais mais se ligam a essas práticas? Tráfico de droga? Imobiliária?

Um dos avanços que queremos ter na UIF é ter a capacidade de fazer essa leitura estratégica, de perceber. É uma obrigação inclusive, mas os países não têm estado a conseguir fazer isso, porque exige alguma tecnicidade, alguma expertise científica e tecnologia. Nós já vamos tendo. Ou seja, capacidade em cada comunicação de retirar múltiplas informações para construirmos e percebermos tendências e padrões. Já conseguimos de alguma forma ter essa ideia. Por exemplo, sabemos que na ilha do Fogo há muita circulação de dólares, e muitas COS estão relacionadas a câmbios informais e ilegais. Temos essa informação devido ao trabalho que temos realizado. Mas neste momento o que posso dizer é que praticamente 100% das COS, dessas operações, estão ligadas à evasão fiscal. Quase todas essas operações têm uma dimensão que evita os circuitos formais normais e não declara o dinheiro. Em relação aos crimes que geram esses fundos, o tráfico de drogas está na linha de frente. Mas, o nosso objectivo é desenvolver capacidade tecnológica para detectar com mais precisão, porque normalmente as COS não identificam o crime precedente. É uma operação que, baseada em determinados indicadores internacionais, nos leva a concluir que é suspeito. Por exemplo, quando o perfil do cliente não condiz com os movimentos financeiros observados, como uma empregada de limpeza movimentando 2 mil contos todas semanas. O nosso foco principal é detectar, confirmar e investigar essas suspeitas, o que pode revelar crimes precedentes associados. O MP assume, então, uma grande responsabilidade na verificação dos crimes precedentes, algo que, no entanto, sempre procuramos identificar. Solicitamos informações aos tribunais e ao MP sobre a existência de processos contra as entidades suspeitas para podermos fazer a inteligência conectada. Realizamos essa investigação não apenas a nível nacional, mas também em outros países, considerando a nacionalidade das pessoas envolvidas e os países onde as operações foram conduzidas; pedimos informações à Polícia Nacional a nível da fronteira; e encontramos muita informação em fontes abertas, como notícias e redes sociais, que relatam condenações e casos judiciais em andamento. Enfim, vamos procurar todas essas informações, para enriquecer a inteligência financeira produzida. Mas tráfico de drogas está na linha da frente. Depois há múltiplos casos de criminalidade interna que acabam por resultar em fundos utilizados para LC. Em termos de origem do dinheiro lavado, geralmente avalia-se três aspectos: o crime precedente acontece lá fora e o dinheiro é lavado aqui, ou esses fundos têm origem criminosa interna e o dinheiro é lavado também cá, ou então tem origem em Cabo Verde e lavado no estrangeiro. Em Cabo Verde, quando analisamos essa questão, percebemos que boa parte desses fundos não tem origem em crimes precedentes locais. O mercado económico e financeiro de Cabo Verde é diminuto e isso reduz a quantidade de LC no país. O que temos detectados nas nossas análises é que estamos muito ligados ao estrangeiro. Há muita transferência a nível de países europeus que passam por Cabo Verde, mas não como destino final.

E qual seria o destino final?

Há vários. São países com que há muita troca comercial e financeira. Mas, quando dizemos isso, não estamos necessariamente a afirmar que esses valores são provenientes de actividades criminosas. Trabalhamos com COS, onde alguns elementos podem faltar, e os bancos precisam concluir se pode haver LC. A UIF desempenha um papel crucial nesse processo, analisando essas comunicações que frequentemente envolvem relacionamentos com diversos países. Ao olharmos para a nossa sociedade, notamos também a significativa diáspora e a possibilidade de o dinheiro ter origem no exterior e ser lavado aqui, mesmo que em quantidades pequenas. Esse cenário reflecte como funciona a lavagem de dinheiro internacionalmente, oferecendo a ideia de que Cabo Verde não é excepção nesse aspecto, mas um país sujeito à LC, como qualquer outro no mundo. Enquanto existirem outras actividades criminosas precedentes, como corrupção, tráfico de armas, tráfico de drogas e homicídios, a LC será uma realidade em todos os países. A magnitude desse problema vai depender da posição geoestratégica, financeira e económica de cada país e, claramente, se formos para os países muito mais ricos, tem muito mais LC. Por exemplo, os grandes países da CDEAO, têm muito mais. Lá [as UIF] recebem milhares de COS.

Quanto ao financiamento de terrorismo, parece-nos, em Cabo Verde, um fenómeno muito distante…

Muitas vezes confunde-se o terrorismo com o financiamento em si. O risco de terrorismo em Cabo Verde é considerado muito baixo, dentro dos parâmetros internacionais. No entanto, a questão crítica é o financiamento do terrorismo, que pode ocorrer de maneiras mais simples do que geralmente se imagina. Este tipo de financiamento muitas vezes envolve entidades não financeiras. Enquanto na lavagem de dinheiro procuramos a origem dos fundos, no FT andamos atrás do destino desses fundos. Enquanto na LC a origem do dinheiro é sempre ilegal, no financiamento do terrorismo pode ser legal. Um exemplo de FT poderia ser um restaurante estrangeiro de um país conhecido por actividades terroristas, cujo foco oculto seria angariar dinheiro através de actividades legais para apoiar actividades terroristas. Esses casos são complexos de detectar devido à sua configuração específica e podem passar despercebidos sem uma vigilância adequada.

E há dados que indiciem financiamento de terrorismo em Cabo Verde?

Dos dados estatísticos nós temos, ainda não. A nível do FT, temos de trabalhar muito mais com as entidades não financeiras, porque essas é que são mais vulneráveis, mais utilizadas para esse tipo de práticas. Há inclusive a questão de eu, com o meu salário, poder financiar um determinado organismo, por uma questão de ideologia, de política. Mas o FT é um tema de crescente importância global, em contextos de conflitos internacionais como os recentes entre a Rússia e a Ucrânia, e entre Palestina e Israel, para o qual o GAFI pede mais atenção. Isto também se conecta com resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que também fixam algumas medidas preventivas e repressivas que os Estados têm de adoptar, e Cabo Verde tem estado a fazer isso. Essas medidas são importantes porque o financiamento pode ocorrer de maneiras variadas e inesperadas. Por exemplo, organizações ligadas à igreja ou associações comunitárias podem parecer inofensivas, mas precisam ser monitoradas de perto, pois podem ser utilizadas como meios de FT. Temos de estar sempre atentos. O que cria muito mais dificuldade é o facto de poder também ser feito com dinheiro lícito…

E há uma terceira questão que é a proliferação das armas de destruição massiva…

Toda a movimentação começou com a lavagem. Depois, principalmente com os ataques de 11 de Setembro, veio-se introduzir, primeiramente, o financiamento do terrorismo e muito conectado a questão das armas de destruição em massa. O surgimento do FT destacou a importância de combater práticas ilícitas que envolvem recursos financeiros. E hoje já se fala da cibercriminalidade. Ou seja, não tarda, acrescentaremos cibercriminalidades. O ponto comum em todas essas questões é o dinheiro, a utilização de recursos financeiros para práticas ilícitas, a que os países devem dar atenção. O foco é sempre a análise em relação à operação financeira. É uma questão até de economia aproveitar um organismo que já existe. Entretanto, boa parte das nossas comunicações provém dos bancos e há a exigência do GAFI de que os Estados promovam a inclusão financeira. Isso significa trazer o máximo possível de transacções financeiras para o sistema formal. Anteriormente, até mesmo o funcionalismo público utilizava cheques e cadernetas, mas agora todos os funcionários são obrigados a ter conta bancária. No nível da execução orçamental, implementamos um sistema específico, o DGOPE, e estamos avançando para uma cultura electrónica. A inclusão financeira visa trazer o máximo possível dos sectores e operações financeiras para as regras mais formais do sistema financeiro, para se poder ter essa capacidade de controlar, de detectar melhor.

Para terminarmos, em termos práticos e simples, para o cidadão comum, qual a importância de conter a lavagem de capitais e afins? Por que é que este tema deve interessar a todos?

O impacto da lavagem de dinheiro é mais amplo do que se imagina à primeira vista. Criminosos não buscam legitimar os seus ganhos para enriquecer a economia; seu objetivo é fortalecer seu próprio património pessoal de forma ilícita. Por exemplo, empresas criadas para esse fim têm uma existência limitada, como uma máquina de lavar roupa que só funciona enquanto há roupa suja. Quando o dinheiro sujo é lavado, essas empresas podem fechar abruptamente, deixando a sociedade sem os serviços que aparentemente eram úteis, como padarias ou supermercados. Isso impacta directamente o emprego, pois muitos perdem seus empregos quando essas empresas fecham. Além disso frequentemente, as condições de trabalho não são ideais. E a LC pode também distorcer a concorrência. Empresas envolvidas nesse processo não têm interesse em lucros. Seu objectivo é movimentar dinheiro rapidamente, sem se importar com a viabilidade económica a longo prazo. Isso cria uma concorrência desleal, onde essas entidades podem entrar e sair do mercado rapidamente, prejudicando empresas legítimas que operam dentro das normas económicas estabelecidas. Há ainda questão da fuga ao fisco. Prejudica o ambiente económico saudável, compromete o princípio do utilizador pagador ao utilizar serviços públicos sem contribuir adequadamente para seus custos. Isso gera um ciclo vicioso de não conformidade com as leis fiscais, onde impostos não são pagos e recursos públicos são mal utilizados. A acrescentar a tudo isso a lavagem de dinheiro está intrinsecamente ligada a crimes precedentes, como o tráfico de drogas, corrupção e outros actos ilícitos. Daí que é importante a recuperação de activos que não apenas remove recursos ilícitos do sistema, mas também impede que criminosos reinvistam os seus ganhos ilegais, reduzindo sua capacidade de operar continuamente. Por isso, é fundamental envolver a sociedade, educando e incentivando a comunidade a denunciar práticas suspeitas. A centralidade da UIF também vem por aí. A lei fala em sensibilização edivulgação do público em geral e tentamos fazê-lo.

E como envolver a sociedade?

Uma das evoluções que estamos a fazer é o projecto "Para Trabalhar a Sociedade ", que inclui a criação de um canal de denúncia no site da UIF. Isso faz parte de uma reforma legislativa que queremos implementar na UIF e permitirá iniciar investigações baseadas em observações da comunidade. Algo que lhe chame a atenção ou cause dúvida, por exemplo, uma obra de grande dimensão, ou um supermercado. Actualmente, não podemos fazer isso, mas a mudança legislativa vai-nos dar essa capacidade, tornando a participação da comunidade fundamental para detectar e denunciar actividades suspeitas. Então, queremos ter também de ter um canal específico para trabalhar com a comunidade sobre isto. É também de referir que a questão da LC é tão importante que o Grupo de Apoio Orçamental (GAO) e outras organizações internacionais, como o FMI e o Fórum Global da OCDE, têm solicitado informações sobre como está montado o sistema a nível da prevenção de combate à LC. Tem interesse em saber como o país está a combater a lavagem de dinheiro para garantir um ambiente de investimento saudável. O combate à lavagem de dinheiro também está ligado à segurança nacional. Cabo Verde pode não ter terrorismo interno, mas está próximo de regiões com actividades terroristas, o que pode ter impactos futuros. Trabalhar com a sociedade é, na verdade,essencial, usando uma linguagem acessível e envolvendo entidades como o Ministério da Educação em projectos de conscientização. Dessa forma, podemos garantir que a comunidade esteja bem informada e engajada na luta contra a lavagem de dinheiro e seus crimes associados. Em suma, a LC tem um impacto profundo, não apenas económico, mas também social e de segurança nacional.

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GIABA realiza Sessão Anual de Informação

O Grupo Inter-Governamental de Acção contra o Branqueamento de Dinheiro em África Ocidental (GIABA) realizou, dias 13 e 14 de Junho de 2024, a sua Sessão Anual de Informação dos Embaixadores dos Estados-Membros e dos Parceiros Técnicos e Financeiros e Conferência de Imprensa. O evento, que acontece em Dakar, destina-se à apresentação das actividades do GIABA e partilha de informação sobre os novos desenvolvimentos do seu trabalho, sendo igualmente uma plataforma para solicitar a cooperação na divulgação de mensagens sobre Lavagem de capitais e do Financiamento do terrorismo (LC/FT) na sub-região. Como explica Daniel Alves Monteiro, trata-se um evento em que a GIABA apresenta publicamente o seu relatório de actividades de 2023, documento já apreciado e aprovado na plenária do GIABA. “O trabalho da sensibilização, da divulgação, do trabalho com outros organismos da sociedade é de suma importância” e “a participação da sociedade é uma das partes prioritárias do próprio sistema quer nacional, quer regional”, sublinha.  A ideia, continua, não é apenas dar a conhecer as actividades realizadas, mas sim proporcionar “um momento de partilha e discussões inclusivas”.  O relatório apresentado inclui também secções relacionadas com os estados membros “para dar conhecimento do avanço da implementação das medidas dentro desses Estados”, sendo que a elaboração do relatório nacional é responsabilidade da Comissão Interministerial de cada país, entidade que engloba as várias instituições que fazem parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate (UIF, Ministério Público, o Conselho Superior de Ministério Judicial, entre outros).  A GIABA é uma instituição especializada da CEDEAO, responsável pela prevenção e controlo da LC/FT na África Ocidental. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1176 de 12 de Junho de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,15 jun 2024 6:25

Editado pormaria Fortes  em  17 jun 2024 11:44

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