Adeus ao pontífice que desceu da cátedra

PorSara Almeida,26 abr 2025 8:55

O Papa Francisco faleceu esta segunda-feira, 21, um dia depois da celebração da Páscoa a que ainda presidiu num último sopro. Fica o legado de um sumo pontífice visionário que abriu as portas da Igreja ao Mundo e a todos, sem excepção, e humanizou o Reino de Deus. O funeral decorre este sábado.

No domingo de Páscoa, um Papa Francisco, visivelmente fragilizado, abençoou as dezenas de milhares de fiéis reunidos na Praça de São Pedro.

“Queridos irmãos e irmãs, feliz Páscoa”, disse, da varanda da Basílica de São Pedro. Depois, sem fôlego, passou a palavra ao arcebispo Diego Ravelli, que leu a tradicional bênção papal Urbi et Orbi.

Horas depois, Francisco dava o seu último suspiro. Morria assim um papa que fez da alegria e tolerância tónicas da Igreja Católica e que não deixou ninguém indiferente.

Jorge

Antes de ser Francisco, Francisco era Jorge.

A 17 de Dezembro de 1936, no bairro de Flores, em Buenos Aires, nascia Jorge Mario Bergoglio, o primogénito de cinco filhos de uma família italiana, no seio da qual o catolicismo era omnipresente.

Um dia, quando tinha 17 anos, a caminho de se encontrar com os amigos, passou pela Basílica de São José. Sentiu vontade de entrar, como se uma força invisível o puxasse e compelisse à confissão. Foi aí que soube que queria ser padre.

Ordenado em 1969, assumiu a liderança dos jesuítas argentinos em 1973, enfrentando uma época conturbada. Durante a ditadura militar (1976-1983), a sua postura prudente valeu-lhe críticas e acusações de ter sido omisso e até cúmplice da repressão. Uma das mais pesadas foi a alegada falta de protecção a dois padres jesuítas sequestrados e torturados.

O Vaticano decidiu afastá-lo, enviando-o para a Alemanha e depois para Córdoba, num período que Jorge viria a descrever como de crise interior.

Em 1992, voltou ao activo como bispo auxiliar de Buenos Aires e, seis anos depois, tornou-se arcebispo. Recusou o luxo do palácio episcopal e escolheu viver de forma simples, num pequeno apartamento, onde ele próprio cozinhava as suas refeições.

Em 2001 foi nomeado cardeal pelo Papa João Paulo II, tornando-se uma figura proeminente na Cúria Romana e tendo passado por vários dicastérios (ministérios).

Foi o segundo mais votado no Conclave de 2005, que elegeu o Papa Bento XVI, da ala conservadora da Igreja. Em 2013, Bento renunciou e vários nomes perfilaram para a cadeira de São Pedro. Jorge não estava no centro das principais previsões. Porém, à quinta volta, foi escolhido.

Com humildade, terá dito: “Sou pecador, mas aceito”.

Francisco

A 13 de Março de 2013, Jorge tornou-se Francisco, nome inspirado em São Francisco de Assis, cujo exemplo iria nortear o seu pontificado.

Nessa noite, com os seus discretos sapatos ortopédicos pretos em vez dos tradicionais vermelhos, surgiu na varanda da Basílica de São Pedro como o 266.º Papa da Igreja Católica. A postura despojada e a fala simples desde logo indicaram qual seria a sua abordagem.

No Vaticano, tal como na Argentina, manteve o estilo de vida modesto, recusando-se, por exemplo, a ocupar o apartamento papal, optando por viver na Casa Santa Marta.

E se São Francisco lhe emprestou o nome e a visão do seu pontificado, esta seria consubstanciada na exortação Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho, 2013), um “manifesto” em que apela a uma Igreja missionária e próxima dos pobres e vulneráveis, numa nova fase evangelizadora com dinamismo e alegria.

Com isto começavam os 12 anos de papado de Francisco, um agente de mudança, que com uma postura descontraída, dialogante e um apurado sentido de humor – “o humor é aquilo que, no plano humano, mais se aproxima da graça divina”, diria -, se tornou aos olhos do povo e dos media, um ícone da actualidade.

12 anos Papa

A primeira viagem do novo Papa ocorreria em Julho de 2013. Simbolicamente escolheu Lampedusa, ilha italiana onde chegavam muitos dos migrantes que sobrevivem à travessia do Mediterrâneo, e onde alertou para a “globalização da indiferença”.

Aliás, desde então, até quase ao fim da sua vida deslocou-se às periferias mais pobres e “problemáticas” dos quatro cantos do mundo, incluindo zonas de conflito, sempre denunciando a indiferença, a guerra e as desigualdades. As suas viagens deram visibilidade a países esquecidos e a temas globais, como a paz, o ambiente e os direitos humanos, e trouxeram a empoeirada Igreja para o terreno, aproximando-a dos fiéis comuns.

Entretanto, os seus “escritos”, como referido, fazem a sustentação teórica das suas acções, com documentos como Amoris Laetitia (2016) e Gaudete et Exsultate (2018) reflectindo a alegria do seu pontificado. Todos eles trouxeram para cima da mesa questões que muitas vezes a Igreja tendia a não abordar. Se não houve mudança efectiva com Francisco, pelo menos houve uma abertura, um trazer para a discussão.

Amor e compaixão

É o caso de Amoris Laetitia, uma das suas mais “polémicas” reformas pastorais, pois mostrava abertura aos divorciados recasados, e outros em “situações irregulares”. Francisco não mudou a doutrina e ordem jurídica da Igreja sobre o casamento (continuou a defender-se que o matrimónio é indissolúvel), mas introduziu uma abordagem pastoral mais misericordiosa, uma visão que passa da rigidez moral para a responsabilidade individual e a compaixão.

Nesta sua exortação sobre a família, rompe ainda com o tom tradicional da Igreja ao falar da sexualidade e do erotismo de forma positiva, defendendo-os como dons de Deus, parte bela e legítima do amor no casamento.

O documento foi visto como herege pelos conservadores e demasiado limitado pelos progressistas.

No que toca à abordagem das relações humanas, uma frase do Papa sobre os homossexuais – “Quem sou eu para os julgar?” – já havia acirrado o espectro de uma dissidência católica.

E anos mais tarde, em 2023, um outro texto, viria reactivar a polémica: Fiducia Supplicans (2023). Este documento doutrinal vem permitir bênçãos a casais em busca de apoio espiritual, mesmo em situações não conformes aos ensinamentos morais católicos, incluindo casais do mesmo sexo. Muitos homossexuais congratularam-se com a posição de Francisco, destacando a sua importância para deslegitimar quaisquer condutas homofóbicas, enquanto outros apontaram que essas bênçãos não traziam mudanças na prática. Na Igreja, entretanto, muitos foram os que se afobaram.

Entretanto, outras questões, como a nomeação de mulheres para papéis mais visíveis, também geraram forte resistência interna. Contudo, apesar de abrir espaço ao debate e de beliscar consciências Francisco não causou rupturas e temas como o celibato e a ordenação de mulheres, que estariam na sua agenda, foram adiados.

Ambientalista

Quanto a encíclicas, marcos de qualquer pontificado, Francisco escreveu quatro: Lumen Fidei (2013), que foi iniciada por Bento XVI e que trata da fé como luz para o caminho do ser humano; Laudato si’ (2015); Fratelli tutti (2020), focada na fraternidade, no diálogo inter-religioso e numa economia solidária e Dilexit nos (2024), sobre compaixão e espiritualidade num mundo desumanizado.

Entre as quatro, Laudato si’ é provavelmente o texto mais emblemático do seu pontificado, e um dos expoentes daquele que é considerado um dos grandes méritos de Francisco: ter trazido a Igreja Católica de novo para os grandes debates da actualidade e agenda mediática.

Publicada em Maio de 2015, esta segunda encíclica é dedicada ao “cuidado da casa comum”, destacando a urgência de enfrentar as questões. O Papa aborda a crise ecológica como um problema moral.

Na altura, recorde-se os líderes mundiais discutiam o Acordo de Paris, e o Papa apresentava esse desafio à humanidade: a necessidade de um “novo estilo de vida”, baseado numa transformação radical na maneira como nos relacionamos com o ambiente. O Papa propunha ainda que a crise climática poderia ser superada através da transição para fontes de energia renováveis e da eliminação gradual dos combustíveis fósseis, bem como na adopção um modelo económico mais sustentável e menos consumista. A encíclica foi amplamente reconhecida e elogiada pela comunidade científica, como um apelo à acção global.

O escândalo dos abusos sexuais

Desde João XXIII, promotor Concílio Vaticano II (1962-65), a Igreja não tinha tido um impulso reformista tão profundo. Com Francisco, que pretendia “Igreja pobre e para os pobres”, tentou-se abalar as estruturas: reformou-se o banco do Vaticano, tornou as finanças mais transparentes e enfrentaram os jogos de poder dos bastidores da Cúria.

São, aliás, conhecidas as suas críticas à opulência da Igreja e vaidade dos clérigos e um dos seus legados foi ter desafiado a concentração de poder em Roma e favorecido uma abordagem colegial e descentralizada. Sínodos, por exemplo, passaram a ser oportunidades de discussão entre bispos, em vez de simples “aulas” por parte da Cúria.

Além disso, depois de hesitações iniciais, o Papa deu passos firmes contra os abusos sexuais no seio da Igreja, impondo regras para responsabilizar líderes religiosos – incluindo bispos – que cometem ou encobrem abusos.

Um dos maiores passos terá sido o levantamento, em 2019, do segredo pontifício – um sigilo máximo usado pela Igreja para casos sensíveis, que impedia que informações fossem partilhadas com autoridades civis, mesmo nesses casos de abusos sexuais.

Foi uma reforma importante, juntamente com a criação da Pontifícia Comissão para a Protecção dos Menores, mas não foi ao encontro de todas as exigências de transparência pedidas pelos defensores das vítimas.

A última visita

Francisco faleceu na segunda-feira, de AVC que foi o resultado de vários problemas de saúde.

Activo e atento até ao último minuto, depois da Urbi et Orbi de domingo, o papa recebeu na sua residência, em Casa Santa Marta, o vice-presidente americano, JD Vance.

Horas antes, Francisco condenara novamente, por mensagem lida pelo seu ajudante, na Praça de S. Pedro, as políticas anti-imigração de Trump. Aliás, antes já escrevera ao Presidente dos EUA, apelando ao respeito pela dignidade dos imigrantes e denunciando os planos de deportação como contrários ao espírito cristão. A acusação de que “Trump 'não pode ser cristão”, fora, aliás, já proferida em 2016. “Uma pessoa que só pensa em construir muros, sejam eles onde forem, e não em construir pontes, não pode ser cristã”, disse.

Mas a crítica ao sentimento anti-migratório e o surgimento de políticos populistas não se dirigia apenas aos EUA, mas a todo o mundo.

Um mundo que agora deixou e onde, sem ter mexido na doutrina, tirou a Igreja da sacristia e resgatou os valores cristão da alegria, compaixão e tolerância. Um papa que desceu da cátedra para se sentar no meio de todos.

Papabili

Com a morte do Papa Francisco, cujas cerimónias fúnebres ocorrerão este sábado, o Vaticano prepara a escolha do futuro sumo pontífice, uma escolha que irá definir o próprio futuro da Igreja num mundo em eminente evolução conflituosa. Cerca de 135 cardeais irão reunir-se no Conclave, que deverá começar entre 6 e 11 de Maio.

Os olhares voltam-se para os possíveis sucessores. Entre os nomes mais cotados estão dois cardeais africanos: Robert Sarah, da Guiné, conservador, defensor da liturgia tradicional e crítico aberto do Papa Francisco e Peter Turkson, do Gana, moderado e conciliador, com forte experiência no Vaticano e reconhecido pela sua visão social e pastoral.

Da Ásia, destaca-se Luis Antonio Tagle, das Filipinas, próximo de Francisco no estilo e nas ideias. É visto como um líder carismático, com grande capacidade de comunicação e forte ligação aos temas da justiça social.

Outros nomes em destaque são o do italiano Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano e favorito entre os mais institucionais, e Jean-Marc Aveline, francês com raízes argelinas, conhecido pelo seu trabalho no diálogo inter-religioso. 

__________________________________________________________

Reacções em Cabo Verde

A morte de Francisco foi chorada em todo o mundo e de todo o lado vieram os votos de pesar. Em Cabo Verde, o Cardeal Dom Arlindo Furtado, Bispo da Diocese de Santiago, destacou que será lembrado como "um dos grandes reformadores" da Igreja, com um legado inesquecível na preparação da Igreja para os desafios do mundo moderno. Para Dom Arlindo, o Papa desempenhou um papel essencial na linha de João XXIII, em tempos de complexidades sociais e injustiças.

Por sua vez, Dom Ildo Fortes, Bispo da Diocese de Mindelo, sublinhou o legado de Francisco como defensor dos pobres e imigrantes, e ressaltou o esforço do Papa para unir religiões e promover uma Igreja sinodal e inclusiva. O Presidente da República, José Maria Neves, também se manifestou, destacando o Papa como alguém que abriu a Igreja a todos sem excepção e destacando seu legado voltado para os mais pobres e questões globais, como as mudanças climáticas e as migrações. Já o Primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, enfatizou que Francisco foi um grande combatente pela paz, dignidade dos imigrantes e moralidade na Igreja, lamentando que a sua visita a Cabo Verde nunca se tenha concretizado.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1221 de 23 de Abril de 2025. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Sara Almeida,26 abr 2025 8:55

Editado porJorge Montezinho  em  27 abr 2025 22:10

pub.
pub
pub.

Rotating GIF Banner

pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.