Situada a menos de 15 km da capital, pertencente ao Município da Ribeira Grande de Santiago, Porto Mosquito tem uma comunidade de pouco mais de mil habitantes e é essencialmente piscatória. É nesta localidade que encontramos Samira Moreira de 26 anos e presidente da Associação de Peixeiras de Porto Mosquito.
Samira nasceu e cresceu em Pico Leão até aos 18 anos, quando ficou grávida e teve de mudar para Porto Mosquito, onde iria viver com o seu companheiro.
Na altura, a jovem ainda frequentava o 11.º ano na escola de Salineiro, mas a gravidez e a maternidade precoce empurraram-na para longe da sala de aula.
“Quando passei para o 12.º ano deixei de ir à escola e essa é a minha maior mágoa hoje”, conta.
Privada da continuação dos estudos e inserida numa comunidade cuja principal fonte de sustento é a pesca, Samira não ficou de braços cruzados.
“Naquele momento tinha que pensar no filho que tinha de dar de comer. Como tudo em Porto Mosquito gira à volta do peixe, decidi vender peixe também”, recorda.
Sem experiência, mas com muita força de vontade, Samira, ainda grávida, comprou uma banheira que encheu de peixe que comprava à beira-mar e começou a percorrer localidades como Pico Leão, Belém e Tronco.
Conforme a jovem, era uma rotina dura, agravada pela escassez de transportes nessas localidades e pelas exigências da maternidade.
“Fiz isso até o final da gravidez e quando o meu filho nasceu, continuei. Ia vender com o meu filho às costas e a banheira de peixe na cabeça. Ainda tinha de levar um saco com leite e comida”.
“Quando me cansava tirava o bebé das costas, dava de mamar, sentava um pouco e depois continuava a jornada”, narra.
Esta realidade prolongou-se durante mais de um ano. E hoje, Samira diz que mesmo nova já começa a pagar pelo cansaço físico.
“Sinto muitas dores nas costas, cansaço, dores de cabeça devido ao sol, mas é o que garante o sustento da minha família”, afirma.
Por esta razão, continua a vender peixe à cabeça, e enfrenta, seis dias na semana, subidas íngremes e longas distâncias. Mas Samira sonha mais alto.
“Vou fazer de tudo para concluir o meu 12.º ano. Ainda sou nova e não quero levar a vida assim. Quero encontrar outra oportunidade porque a vida do pescador ou peixeira às vezes é triste, principalmente quando há uma desgraça”, reconhece.
O futuro que Samira deseja para os seus filhos está longe do mar. Mas isso não significa que queira abandonar por completo a ligação à pesca. Pelo contrário, vê no sector um potencial por explorar, sobretudo com mais formação e apoio.
“Quero ter oportunidades de formação para transformar o peixe, viver do peixe, sim, mas de outra forma”, afirma.
Isto porque, conforme aponta, a venda diária de peixe, apesar de essencial, está, longe de ser estável.
“Numa banheira cheia de peixe às vezes ganhamos num dia dois mil escudos, e às vezes nada”, complementa.
Quando o peixe não se vende todo, nem sempre há alternativa. “Se passar de 24 horas tenho de me desfazer desse peixe porque não conseguimos comer tudo em casa”, lamenta.
A formação, segundo a representante das peixeiras de Porto Mosquito, seria uma forma de mudar esse cenário.
“Faz falta uma formação para podermos fazer mais pratos à base de peixe, ao invés das formas tradicionais que fazemos todos os dias como caldeirada, peixe frito ou grelhado”, defende.
Porto Mosquito recebe turistas, especialmente mergulhadores, mas poucos ficam para consumir. “Vão comer noutras localidades porque aqui não hánada. Com essa formação poderíamos fazer com que os turistas deixassem aqui um pouco mais de dinheiro”, argumenta.
Novas formas de trabalhar o peixe
Edna Fidalgo, hoje com 43 anos, carregou na cabeça, desde os 13 anos, não só os peixes, mas também o sustento da família. Conforme relata, começou a trabalhar porque a mãe tirou-a da escola.
“A minha mãe tirou-me da escola na 6.ª classe e pôs-me a vender peixe. Alegava que não ia mandar a filha para a escola para aprender a escrever cartas de amor”, recorda.
Por não querer que os filhos tenham o mesmo futuro, hoje Edna incentiva os filhos a estudar. Um dos filhos já estuda no estrangeiro, uma conquista que, segundo Edna, carrega o peso de todos os atuns que transportou à cabeça e não só.
A mulher também trabalhou na apanha de areia e de lenha, já que nem sempre há peixe em abundância. Porém, por razões de saúde, viu-se forçada a abandonar algumas dessas actividades.
“Já cheguei a carregar um atum de 80 quilos na cabeça e às vezes ficava com vontade de colocar a banheira no chão, mas não colocava porque senão não conseguia mais voltar a carregar. Actualmente, se conseguir um atum de 40 quilos, divido em quartos para evitar carregar muito. Não devia carregar nada, mas carrego porque não tenho outro pão”, admite.
Assim como Samira, Edna pede uma formação que lhe permita vender o peixe de outra forma.
“Eu fui proibida de carregar, se tivesse outra forma de trabalhar com o peixe, com certeza praticava”, argumenta.
Aliás, Edna refere que quando o peixe escasseia, vira-se para o forno onde faz pão, bolo torrado, bolo de mel e vende na sua localidade.
“Aqui não podemos nos dar ao luxo de fazer uma única coisa, porque nem sempre o mar dá-nos peixe em abundância. Tal como eu, há muitas mulheres com talentos culinários, mas precisamos de certificados”, reforça.
Edna salienta que as peixeiras de Porto Mosquito chegaram a receber uma formação de culinária a base de peixe, mas que a mesma não chegou à parte prática.
“Recebemos a parte teórica, chegada a altura de colocar em prática as receitas que aprendemos para depois recebermos os certificados, aquilo acabou e até hoje não sabemos o que se passou”, ressalta.
Nesse sentido, afirma que gostaria de aprender a preparar hambúrgueres de peixe, por exemplo, para vender ao final do dia, aproveitando o potencial turístico da localidade.
“Nós recebemos muitos turistas, mas não há um lugar para lanchar ou almoçar. A Associação de Peixeiras daqui tem um bom espaço e se um de nós tiver formação podemos até usar o espaço da Associação para abrir um negócio do tipo. Assim, quando os turistas chegam aqui, ao invés de irem consumir noutro local, consomem aqui. O dinheiro fica aqui”, argumenta.
“Que vejam a nossa situação”
O Expresso das Ilhas também falou com Agnalda Correia de Pina, de 61 anos, e que começou a vender peixe desde os 10 anos, quando ainda nem podia carregar uma banheira de verdade, e desde então nunca mais parou.
“Na altura nem podia carregar a banheira. Aqui não havia carro e íamos a pé até à Cidade Velha onde apanhávamos ocarro para ir a outras zonas vender o peixe”, conta.
Filha de pescador, Agnalda recorda-se bem das madrugadas passadas no mar e das viagens intermináveis a pé para vender o pescado em zonas como Lebrão de Engenho, Rui Vaz ou Pico Leão.
“Andava mais de seis horas de caminho com peixe à cabeça. Antes, salgava-se o atum porque não havia geleira. Pendurava-se o peixe e, no dia seguinte, íamos vender na Praia”, relembra.
A escola, narra, foi quase uma miragem. Frequentou apenas a primeira classe. “Naquele tempo os pais não obrigavam os filhos a estudar. Lembro-me de uma professora que insistiu com o meu pai para me mandar à escola, mas ele disse que eu não queria e pronto, não fui. Hoje é diferente, os pais obrigam e o próprio sistema obriga as crianças a estudar”, compara.
Com a venda do peixe, Agnalda criou os seis filhos. O preço desse esforço chegou em forma de dor. Agnalda sofre hoje com dores nas costas e dores de cabeça.
“Antes carregar 50 quilos à cabeça era uma brincadeira. Agora nem cinco quilos posso carregar. Fui a Dakar consultar e disseram que foi por começar a carregar ainda muito nova. As minhas costas estão todas abertas”, detalha.
A realidade actual da pesca em Porto Mosquito, segundo Agnalda, é dura.
“A nossa vida aqui é de peixe, sem peixe não temos nada. A peixeira vive do peixe, se o pescador não pegar um peixe, nós não comemos”, relata.
Segundo a peixeira, as dificuldades intensificaram-se nos últimos tempos. Como exemplo, conta que no mês de Julho de 2024 não vendeu um único peixe, em Agosto vendeu três e em Setembro nada.
“Nestes últimos oito meses, só vendi peixe antes de ontem. Mas o meu bote foi ao mar todos os dias. Imagina gastar mais de 30 mil escudos com gasolina e não pegar nada”, lamenta.
Sem alternativas, o apelo vai para as autoridades. “Que vejam a nossa situação. Se formos apoiadas com alguma coisa que possamos fazer quando o mar não dá peixe, poderíamos viver mais tranquilos”, apela.
“Gostaria de saber fazer conserva mesmo sem ter grandes equipamentos. Gostava de aprender a fazer mais coisas à base de peixe, tudo o que é possível fazer com o excesso de peixe que deitamos muitas vezes fora”, sugere.
A valorização do peixe, diz, também precisa mudar. “Compramos caro e às vezes nem conseguimos vender nada. Se pudéssemos fazer algo diferente com esse peixe, seria uma mais-valia”, conclui.
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Alternativas criativas e acessíveis para confeccionar e conservar o peixe
Ao Expresso das Ilhas, a nutricionista Silvana Horta propõe diversas formas simples e criativas de preparar o peixe, com o objectivo de facilitar o seu consumo, sobretudo entre crianças e pessoas que apresentam alguma resistência ao sabor ou textura do alimento.
Entretanto, a especialista aconselha garantir que o peixe utilizado nas receitas esteja devidamente limpo e livre de espinhas.
“Por exemplo, nós temos hambúrgueres de peixe. O importante é verificar se realmente não tem qualquer resíduo, tipo espinha, por exemplo”, explica.
Silvana Horta refere ainda outras sugestões como bolinhos, muffins salgados, pâtés e lasanhas, sempre com a ressalva de que “o importante é ter atenção aos resíduos do peixe”.
Também os espetos, habitualmente feitos com carne, podem ser adaptados ao peixe, para promover uma alimentação mais variada e saudável.
No que diz respeito à conservação, a nutricionista lembra que nem todas as famílias têm acesso a equipamentos de refrigeração, mas há alternativas viáveis e tradicionais.
“Sabemos que temos aquelas formas tradicionais, que nós podemos secar e também salgar o peixe. Estas são opções baratas e fáceis de fazer”, complementa.
Quanto ao armazenamento em frigorífico, recomenda que o peixe deve ficar no máximo até dois dias. “Nós também podemos congelar, que já sabemos que demora muito mais tempo, ou podemos salgar, defumar ou fazer secagem ao sol”, indica.
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As peixeiras de Porto Mosquito estão a trabalhar, actualmente, com a primeira cabo-verdiana instrutora PADI (Professional Association of Diving Instructors) de mergulho, Josy Silva, mentora do projecto SPRITU DI MAR. Uma iniciativa em construção e visa reforçar a consciência para a conservação do oceano e valorizar a ancestralidade viva, transmitida pelos antigos conhecedores do mar. No futuro, propõe-se ser um espaço de formação, empoderamento e partilha em áreas como mergulho, natação conservação marinha e gestão comunitária, fortalecendo capacidades locais e cultivando uma relação mais consciente com o ser e o oceano.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.